André Martin: Netanyahu está desesperado; até agora vitória estratégica é do Hamas

André Martin: Netanyahu está desesperado; até agora vitória estratégica é do Hamas

Foto: Moshe Milner/Governo de Israel (modificado)

MUNDO

André Martin: Netanyahu está desesperado; até agora vitória estratégica é do Hamas

O professor de Geopolítica da USP analisa o conflito em Gaza e acrescenta: "Estamos à beira de uma guerra global e o mundo está contra os EUA"

AMARO AUGUSTO DORNELLES

Diálogos do Sul Diálogos do Sul

São Paulo (SP) (Brasil)
 

Parece pesadelo de história em quadrinho, ‘Graphic Novel Deluxe’, mas é real. Conflito final da vida na Terra. “Clima de pura paranoia”, exaspera-se André Martin, professor de Geopolítica da USP. Na avaliação dele, o Império ianque não está contra o mundo: o mundo está contra os Estados Unidos, arautos da democracia do porrete. “Isso só pode dar em III guerra mundial”, vaticina o mestre, também pesquisador de instituições militares brasileiras. Pelo andar da carruagem, antevê, a chance de o conflito acabar com a vida no planeta aumenta a cada dia. 

Confira os destaques do texto e, a seguir, a entrevista completa com André Martin.

 

Destaques

1. A identidade judaica não se construiu territorialmente como os palestinos. Por que eles são palestinos? Ora, porque eles sempre habitaram a palestina, a província romana que depois se tornou turca. Então eles são palestinos. Agora, quem são os judeus? Eles estão no mundo inteiro. É o que eu quero dizer: a identidade judaica não se dá pelo território. 

2. O imperialismo inglês e depois o ianque tem usado judeus como massa de manobra para infiltrar presença anglo-americana no Oriente Médio. Com isso eles conseguem dividir os árabes e se valem da tecnologia de ponta (inclusive bélica) para se impor.

3. O plano que a ONU tinha feito não foi respeitado pelos israelenses desde o começo. Não combinava com os interesses estratégicos deles.

4. Israel, apoiado pelos EUA – acordos firmados em “Camp David” – rompe com o combinado, então fica evidente que não se pode confiar nos EUA. É a prova definitiva de que não é possível confiar nos anglo-saxões. Eles não cumprem acordos.

 

Lideranças americanizadas vs identificação do povo árabe com martírio

Amaro Augusto Dornelles – Muito conveniente para o Império do Norte, certo?

André Martin – Claro! Não são eles que estão contra o mundo. É o Mundo que está contra os Estados Unidos. Isso só pode dar em guerra mundial de novo. E provocada. Quem sabe o conflito final da vida na Terra? Está tudo muito perigoso no período em curso. Parece que uma guerra de civilizações está começando. Os dois partidos dos EUA estão inclinados a eliminar todas as demais potências para se firmar como única do planeta.

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O Egito não aceita o Hamas, adversário político-ideológico do governo egípcio. Vamos analisar a situação: há uma divisão no mundo muçulmano: xiitas versus sunitas. O Irã é o líder dos xiitas, espalhados em diversos países árabes. Já os sunitas são liderados pela Arábia Saudita. O grupo Hamas é ligado aos sunitas, mas em parte divergem dos sauditas, que têm sede no Catar. Então, quem tem ligação com o Hamas é o Catar. Por isso eles estão negociando a libertação de reféns e troca de prisioneiros.

Desse modo, é errado – como o Ocidente tem feito – vincular o Hamas ao Irã. Não tem nada a ver. O que antevejo é que – caso o Egito não apoie os palestinos – seu governo vai enfrentar problemas internos com a própria população. E mais ainda com a Irmandade Muçulmana do Egito, que está sendo reprimida há tempos. Trata-se de uma organização muito importante. Isso não impede que ela se mantenha como uma organização muito influente.

A tensão pode pressionar o Cairo a tomar uma posição mais enfática em defesa dos palestinos?

Diante da guerra em curso, os governos pró-EUA dentro do Mundo Árabe (elites) – Jordânia, Egito, Emirados Árabe e Arábia Saudita –, as lideranças árabes, se tornaram ainda mais comprometidas. Estão umbilicalmente atrelados ao projeto estadunidense de controle do petróleo do Oriente Médio e do mundo todo.

Tais ‘lideranças americanizadas’ (como em Pindorama) vão sofrer a reação dos árabes através de suas populações. Afinal, eles se identificam muito com a causa palestina. Porque a causa palestina é a causa árabe. Derrotados os palestinos hoje, amanhã serão os sírios, jordanianos, egípcios, em efeito dominó. Os povos árabes sabem disso, não há como não saber, é a história deles. Eles sabem que a luta dos palestinos é justa.

 

"Coisa maluca"

Antijornalismo “by TimeLifeGlobo” é lavagem cerebral diária na plebe. Telejornais repetem sempre ‘terroristas’ ao citar o ‘bárbaro Hamas’. Como se Israel historicamente não expulsasse, colonizasse e matasse palestinos como moscas – com total apoio do Império.

Nessa hora é importante precisar os conceitos. O que os israelenses fizeram em 1948 foi uma série de ataques terroristas. Eles atacaram de forma militar os palestinos e executaram sua primeira limpeza étnica. 

Esse episódio passou para a história como...

Nakba, em árabe, Catástrofe. Mas para os ocidentais foi o nascimento de Israel. A catástrofe dos palestinos foi celebrada como algo heroico. Assim é a guerra. Mas o sionismo propagandeou que eles teriam ‘conseguido’ a pátria dos judeus, contra o resto do mundo. Isso é muito importante. Parte da ideologia do estado israelense usa essa narrativa, de que o mundo está contra eles. Eles precisam se defender do mundo. Ora, isso é uma grande falácia, pois Israel não existiria mais se não houvesse os EUA por trás.

Na verdade, se a gente for trocar em miúdos, o imperialismo inglês e depois o ianque tem usado os judeus como massa de manobra para infiltrar presença anglo-americana no Oriente Médio. Com isso eles conseguem dividir os árabes e se valem da tecnologia de ponta (inclusive bélica) para se impor.

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Desde o início, quem está por trás o tempo todo? Primeiro o Reino Unido, EUA depois. Tanto é que atualmente assistimos, horrorizados, ao massacre do povo palestino por bombardeios aéreos. Temos de perguntar: de onde vieram as bombas que estão matando em massa? Ora, foram os Estados Unidos que enviaram. Eles aproveitam e põem em marcha planos secretos, estratégicos, que passam pela limpeza étnica do território palestino. Querem expulsar os árabes do território sobre o qual eles julgam ter direitos bíblicos. Coisa maluca.

Direitos bíblicos é forte, hein? Como começou o entrevero entre palestinos e hebreus, professor?

Vamos lá: os judeus deixaram a Palestina no ano 70 depois de Cristo. Mas os palestinos não. Eles permaneceram o tempo todo na terra deles, que sempre foi deles. Veja bem, a partir do trauma do holocausto, resolveu-se criar um clima para criar o Estado de Israel. O objetivo era assegurar um local capaz de proteger os judeus. Tal estado seria protegido como e por quem? Portanto, desde o início o novo estado nasce protegido pelos EUA.

 

Falta Identidade Nacional israelense

Acabaram se transformando na ponta de lança dos interesses do Império no Oriente Médio da Opep...

Exatamente. Do imperialismo estadunidense no mundo árabe. O fato comprovado pela história é que não há uma identidade nacional israelense – infelizmente ela não existe. Porque ela exclui os árabes que lá estavam antes. Ela cria uma identidade falsa dos territórios dos judeus. Sendo que estes – por identidade – não têm território. Então é uma contradição. Ou seja, a identidade judaica não se construiu territorialmente como os palestinos. Por que eles são palestinos? Ora, porque eles sempre habitaram a Palestina. Província romana que depois se tornou turca. Então eles são palestinos.

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Agora, quem são os judeus? Eles estão no mundo inteiro. É o que eu quero dizer: a identidade judaica não se dá pelo território. Palestinos são árabes que moram na Palestina, eis a identidade territorial. Mas o israelense, quem é? É estranho, eles vêm de tudo quanto é lugar. Se ele nasceu em Israel, o pai não nasceu necessariamente lá. É muito complicado isso. O fato histórico é que Israel foi avançando – o tempo todo – sobre territórios não previstos pela ONU para serem deles.

 

Escolhido a dedo

E o ‘doce Bibi’ segue ‘anexando’ terras palestinas com retaguarda de ianques bonzinhos...

Mas tudo isso se baseou no quê? Como geógrafo posso dizer: no controle do território, no controle da informação geográfica, nos mapas. Como é que foi desenhada a fronteira de Israel dentro do território árabe/palestino? Ora, foi tudo escolhido a dedo. Onde estava água, onde se encontravam os melhores recursos naturais. Na verdade, o plano que a ONU tinha feito não foi respeitado pelos israelenses desde o começo. Isso por que não combinavam com os interesses estratégicos deles. Depois os israelenses vieram com a ideia de ser muito superiores aos árabes – superioridade racial até. Enquanto esteve na mão de árabes, a região era um deserto. Depois passou para os israelenses e virou um Jardim do Éden. Ora, eles simplesmente capturaram todos os mananciais de água palestinos e ainda ostentam.

 

Justificar a hegemonia 

Foi isso o que eles fizeram. E Iisso não é verdade, pois ali tinha olivais milenares cultivados por palestinos. Dentro do Mundo Árabe, era uma região relativamente próspera. O que se tem é uma invenção para justificar a hegemonia de Israel. Mas veja bem, esse contingente vem de onde? Ora, é gente perseguida pelos europeus, fundamentalmente. Porque quem está na América do Norte – os judeus dos EUA – não precisam deixar o país. Quem precisou sair perseguido foram os europeus assolados pelos nazistas.

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Então, todos aqueles países deram migrantes para Israel. Era um povo que estava territorializado na Europa e foi expulso. A partir daí inventou-se uma territorialidade imaginária nas terras bíblicas, que estariam então preservadas a eles, desde o início: a Terra Santa. Só que não há na Bíblia nenhuma menção ao retorno dos judeus à tal Terra Santa. Ao contrário: há na Bíblia uma condenação aos judeus para serem um povo errante na Terra. Chama atenção esse fato para quem estuda o livro sagrado dos católicos. Tem que ler um pouco melhor. 

 

Netanyahu derrotado

Tua avaliação dos últimos fatos no front, por favor: troca de reféns e de prisioneiros, cessar-fogo, alimento, remédio... São reflexo do susto pelo rumo que as coisas estavam tomando? Geopoliticamente falando, o apoio árabe aos EUA aumentou ou minguou?

Minha hipótese é a seguinte – só que isso não passa na mídia do Brasil: no mundo todo está havendo manifestações gigantescas contra os ataques de Israel. Isso começou a prejudicar o projeto de Joe Biden para sua reeleição. Se o estadunidense achar que os israelenses estão indo longe demais – que o país não deveria apoiar tudo o que Israel faz – a situação se complica e o governo fica desesperado.

O que eles fizeram? Já mudaram um pouco de opinião. Não estão mais apoiando a limpeza étnica de Gaza. Essa é a primeira mudança importante. Enquanto Netanyahu segue com seu discurso falastrão, que vai acabar com o Hamas, que ninguém vai lhe impedir, onde ele quer chegar? Para falar a verdade, o senhor Netanyahu está derrotado estrategicamente. Portanto, está desesperado.

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O Hamas sabia exatamente como os israelenses agiriam. Por isso afirmo: quem está vitorioso até agora – a despeito de todo o massacre do povo palestino – é o Hamas. Porque ele agiu sabendo como Israel iria reagir. Sendo que Israel não sabe como o Hamas vai agir. Isso dá uma vantagem estratégica no jogo. Tanto é que o fato de aceitar troca de prisioneiros é reconhecer que você está lutando com um grupo combatente. Se é um grupo combatente, então não é terrorista. É um grupo legítimo de um povo em luta por seu direito. Isso muda o conflito de patamar e Israel tem de reconhecer.

 

Impossível confiar em anglo-saxões

Esse que é o drama. Israel não quer aceitar que no futuro Gaza seja governada pelo Hamas, quando não há outra alternativa. Vai ficar muito patente que Netanyahu foi derrotado.

Só sobrou o Hamas...

O povo palestino percebeu que o Hamas, com todos os seus problemas, é quem está lutando por eles. O Fatah vai ter de seguir com sua política de contemporização na Cisjordânia. Pois ali os colonos judeus estão avançando. Estão matando palestinos naquela região também.

Vai ficando evidente que, diante de Netanyahu, a única resposta a sua política de limpeza étnica é a militar. Foi isso que diferenciou Hamas de Fatah. Esse último tinha aceitado negociar com Israel, as coisas estavam andando. Mas na medida em que Israel, apoiado pelos EUA – acordos firmados em “Camp David” – rompe com o combinado, então fica claro que você não pode confiar nos EUA. É a prova definitiva de que não é possível confiar nos anglo-saxões. Eles não cumprem acordos. Foi o que aconteceu no caso da Ucrânia. Havia os acordos de Minsk – que não previam a entrada da Ucrânia na Otan – mas os EUA romperam os tratados.

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As eleições na região de Donbass foram vetadas por Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia. Ele também impede a eleição presidencial – prevista para março de 2024. Terá eleição? “Ah, não, estamos em guerra”. Zelensky queria a guerra justamente para suspender as eleições. Netanyahu está repetindo Zelensky. E vai ser derrotado assim como o ucraniano.

Amaro Augusto Dornelles | Jornalista e colaborador da Diálogos do Sul.