O Homem

Jânio tentou jogada política, mas acabou abrindo caminho ao vice.

Jânio deixa Brasília após renunciar. Esperava voltar nos braços do povo

A renúncia de Jânio, seguida por um forte movimento no Rio Grande, a Legalidade, abriu caminho para a posse do vice-presidente João Goulart, após muitas conversações e acertos. Jango, político formado por Vargas, de quem muito se aproximou no retiro getulista de 45-50, desenvolvia uma trajetória exitosa, mas vista com reservas por setores militares radicais. Integrara o segundo governo Vargas, ocupando o Ministério do Trabalho, mas acabou visado por grupos militares radicais e foi substituído. Após a morte de Vargas em 1954 seguiu sua trajetória política assumindo uma liderança no PTB e chegando à vice-presidência na eleição que levou Jânio ao Planalto. A legislação à época permitia votar em candidatos de chapas distintas para presidência e vice. E os comitês Jan/Jan garantiram sua vitória eleitoral. Agora, a renúncia de Jânio constituía um desafio inesperado. Programado ou não por Jânio que sabia das resistências de grupos militares ao seu nome, o lance da viagem a China e a renúncia, colocava-o numa situação inesperada. Por isso o movimento liderado pelo governador gaúcho, Leonel Brizola e as ações políticas desenvolvidas pelo PSD de Tancredo, Juscelino e Amaral Peixoto procurando superar o cenário criado. Eles tinham bom relacionamento.

 

A volta e a fórmula
Um clima de tensão no país evoluiu para uma fórmula inesperada, a adoção do Parlamentarismo, na expectativa dos adversários de Jango de que seus poderes seriam reduzidos. Jogada política que durou pouco tempo, pois um plebiscito devolveu-lhe os poderes do presidencialismo. Mas bem antes, o cenário político foi tumultuado e ainda na etapa de tratativas para assumir a Presidência, o deputado Amaral Peixoto, presidente nacional do PSD, preferiu que o deputado Tancredo Neves fosse ao encontro de Jango (que voltava do exterior). Era o momento de negociações e avaliações mais atentas. Amaral apostava no bom relacionamento de Jango com Tancredo, ambos ex-ministros de Vargas. A primeira e decisiva reunião entre eles ocorreu ainda no Uruguai. Mais tarde, já no Palácio Piratini, onde se reencontrou com o líder da resistência, Leonel Brizola, Jango conversou longamente por telefone com Amaral Peixoto, presidente do PSD. E a primeira pergunta que fez logo refletiu o seu estado de espírito: “Comandante, querem me fazer uma rainha da Inglaterra?”
Era a primeira reação à adoção do parlamentarismo, mas Amaral logo contestou, explicando a situação e a proposta existente para debelar a crise institucional. Aos poucos foi sendo convencido e, mais tarde, já aceitando a realidade do momento, entrou no debate sobre a formação do governo e anotou num papel os nomes dos ministros que pretendia convidar. Foi, porém, mais uma vez alertado pelo mesmo Amaral Peixoto, presidente do PSD, que o apoiava sobre a composição do governo: “Jango o problema não é esse. O seu problema é escolher o primeiro-ministro. Ele escolherá o ministério e trará a proposta a você. Aí sairá a palavra final.”

A reação de Jango veio logo:“ Então eu não vou escolher o meu ministério?” E Amaral retrucou: “ Vai, mas junto com o primeiro-ministro, que você conhece bem.”

 

Negociações

Jango já estava acertado com Tancredo, apesar de surgirem mais sugestões para Primeiro-Ministro, oferecidas por integrantes das bancadas aliadas. Os nomes, porém, foram surgindo: Auro de Moura Andrade, Gustavo Capanema e Tancredo Neves, eram alguns deles. E como se esperava e desejava Jango, o nome de Tancredo com pequena margem de diferença sobre Gustavo Capanema, levou a melhor numa votação da bancada do próprio PSD, partido aliado. Era a confirmação oficial do que já tinha sido encaminhado.


 
Mais tarde
Nos tempos de Parlamentarismo, Jango teve mais de um Primeiro Ministro, em parte porque Tancredo se desincompatibilizou para concorrer. O sistema de governo, porém, tinha seus dias contados e o próprio Partido de Jango trabalhava nessa direção. O governador Leonel Brizola, entre outros, reivindicava, a recuperação dos poderes usurpados. As condições para um plebiscito foram sendo criadas e, mediante aprovação no Congresso, ele se realizaria no início de 1963. Jango, então, assumiu os poderes presidencialistas e começou a trabalhar nas reformas de base que viraram sua bandeira política, embora sem apoio do Parlamento. Mas a oposição se fez presente, aliada a grupos militares, e a crise política cresceu atingindo seu ponto culminante em março de 1964. Sobre os dias que antecederam o golpe militar, João Pinheiro Neto, superintendente da Supra no governo Jango, fez um relato da preocupação vivida dias antes pelo Presidente e que virou livro. Num encontro em sua residência que se estendeu pela madrugada, Tancredo fez um amplo exame de situação a Jango, análise reproduzida mais tarde pelo anfitrião em livro (“Jango, um depoimento pessoal”). E revela, nele, o teor da longa conversa num “exame de situação”realista oferecido ao Presidente por seu ex-Primeiro-Ministro. Trata-se de um depoimento pouco conhecido e que deixou Jango preocupado com o cenário descrito.
 
 
 
A origem de tudo
 
E como tudo começou? Foi sem dar nenhuma explicação e num ofício com três linhas que Jânio Quadros renunciou à Presidência da República no dia 25 de agosto de 1961. Jânio enviou a seguinte curta mensagem: “Nesta data e por este instrumento, deixando com o Ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de Presidente da República.
Brasília, 25 de agosto de 1961”
O ministro da Justiça era Oscar Pedroso Horta que não explicou nada a ninguém. Tempos depois o próprio Jânio cobrou também de seu Secretário de Imprensa, Carlos Castelo Branco, o fato de declarar que não conhecia as razões da renúncia. Castelo limitou-se a responder dizendo que realmente não sabia de nada e, assim, como iria explicar seu gesto...
 
 
A crise continua

O desdobramento da renúncia de Jânio envolveu a resistência do governador Leonel Brizola com o movimento da Legalidade, a demorada volta de Jango que estava na China, desenvolvendo negociações políticas, através de telefonemas, a cada trajeto e o acerto entre políticos e lideranças militares em torno da implantação do Parlamentarismo, com o qual os adversários de Jango tentavam limitar seus poderes. Jango retornou ao Brasil, via Porto Alegre, acompanhando de perto as negociações finais das negociações políticas. E assumiu a Presidência no dia 7 de setembro de 1961.

Carlos Fehlberg
 
 
Categoria: Legalidade
Data de publicação
Escrito por Alberto André - Sul 21
 
Os descontentes com o Parlamentarismo deram vivas à Rainha da Inglaterra
 
Brizola, Jango e Jânio: três personagens da crise de agosto de 1961
 
Alberto André *
Jânio Quadros foi empossado na Presidência da República em 31 de janeiro de 1961, data em que Juscelino Kubitschek se despedia, em Brasília, prometendo voltar em 1965. Renunciava a 25 de agosto, uma sexta-feira, com menos de sete meses de governo. Conforme vários depoimentos, Jânio deixou cópias da carta de renúncia com o Ministro da Justiça e o Chefe da Casa Militar, no Palácio do Planalto, por volta das 10h30min, após ter participado das solenidades do Dia do Soldado, com ordens para que fosse entregue o original ao Congresso às 13h da mencionada data. Depois de despedir-se dos seus auxiliares diretos e de rejeitar apelos dos Ministros militares, no Palácio do Planalto, seguiu para o aeroporto de Cumbica, no Estado de São Paulo, onde ficou aguardando a deliberação do Congresso, esperando que fosse a carta rejeitada e voltasse ele com plenos poderes.
Lida a mensagem na Câmara dos Deputados, em sessão extraordináría aberta após às 15h pelo deputado do PSD Dirceu Cardoso foi re-
cebida com surpresa geral. Na carta, Jânio afirmava que devia sair e que “nesta data, e por instrumento deixado com o Ministro da Justiça, exponho as razões do meu ato”, o de renúncia ao mandato de Presidente da República. Pouco depois, sob a presidência do senador Auro Moura Andrade, reunia-se também extraordinariamente o Congresso, que desde logo considerou a renúncia “ato pessoal e irrevogável”, ensejando a posse no exercício provisório da Presidência do deputado Ranieri Mazzili, até a volta do vice-presidente João Goulart, que concluía missão do governo na República Popular da China.
 
Ranieri Maziilli assumiu a presidência - Foto: wikimedia.org
Em meio, assim, à estupefação geral, a boatos de golpes e em ambiente de consternação, consumava-se a renúncia requerida por Jânio
Quadros.
No Rio Grande do Sul, havia os piores rumores desde as últimas horas da manhã, mas foi no começo da tarde, nas sessões da Assembléia Legislativa e da Câmara Municipal que a notícia realmente explodiu, trazida pelas emissoras de rádio, telefonemas das autoridades civis e militares de Brasília e ordens de prontidão dos comandos armados. No Legislativo de Porto Alegre, onde nos encontrávamos, como vereador, e tomamos conhecimento do evento pelo rádio, foi logo decidido, sob a presidência do vereador Alfeu Barcellos, convocar-se a Câmara em sessão permanente, a partir do dia 26 de agosto, tendo sido divulgada esta nota, firmada por todas as bancadas, com algumas ressalvas, no seu final, pelo PTB:
– A Câmara Municipal de Porto Alegre, em perfeita sintonia com os mais espontâneos e leais sentimentos do povo que representa, manifesta sua surpresa e profunda preocupação diante dos graves acontecimentos que culminaram com a renúncia do sr. Presidente da República. Com a responsabilidade que deseja honrar, mais do que nunca, declara-se pela manutenção, a qualquer preço, da Constituição e das franquias democráticas que dela emanam. Por outro lado, entendendo ser a vontade do povo, dirige veemente apelo ao Congresso Nacional para que esteja vigilante na sua augusta missão, fazendo cumprir as prerrogativas constitucionais, na certeza de que a crise será conjurada dentro da ordem e da legalidade, para que a Nação retome o caminho do progresso.
Foi também nomeada comissão pluripartidária para acompanhar os fatos e credenciar-se junto ao Palácio Piratini.
No mesmo sentido pronunciou-se o prefeito de Porto Alegre, José Loureiro da Silva, em nota publicada e por nós lida, como representante do PTB, na Câmara de Vereadores, em que o grande político se posicionava pelo respeito à Constituição e posse de João Goulart como presidente da República, isto na reunião de 29 de agosto de 1961.
Por sua vez, o governador Leonel Brizola, que desde logo se posicionou nos acontecimentos, segundo um dos seus depoimentos, preten
dia “dar garantias ao presidente Jânio Quadros pela preservação do seu alto cargo”. Através do jornalista Carlos Castello Branco, colunista poiítico do Jornal do Brasil, ficou sabendo de Cumbica que Jânio havia, efetivamente, renunciado e que sua renúncia fora aceita pelo Congresso. A partir daquele momento, ponderou Brizola, “passamos a dirigir todo o nosso protesto reivindicando a posse do Vice-Presidente” .
No dia da renúncia e da declaração de vacância da Presidência da República pelo senador Auro Moura Andrade — conivente, conforme
os historiadores, com as forças militares e civis que tentaram manter Jânio e não queriam o outro da dupla Jan-Jan, vitoriosa nas eleições de 1960 — João Goulart encontrava-se em Cingapura, depois de haver passado a noite em Hong Kong, após ter concluído sua missão de boas relações com a República Popular da China. Lê-se em Hélio Silva e nos arquivos de jornais da época que Jango se achava em companhia de dois senadores e assessores, pretendendo ali passar três dias antes de regressar ao Brasil. Escreveu Hélio Silva que “o Vice-Presidente do Brasil desligou o telefone quando a United Press International chamou o Hotel Raffles, para lhe comunicar que o presidente Jânio Quadros havia renunciado e que ele, Jango, devia assumir” .
João Goulart sabia, evidentemente, que desde sua atuação como ministro do Trabalho no governo constitucional de Getúlio Vargas –
quando prometeu conceder 100% de aumento no salário mínimo aos trabalhadores — e depois de sua visita à União Soviética, anteriormente, e à China comunista, agora, teria as Forças Armadas contra sua posse, divididas que ficaram com a derrota do marechal Teixeira Lott em sua candidatura à Presidência da República.
 

Jango: viagem de volta passou por vários países

Devia João Goulart receber a faixa presidencial no dia 26 de agosto, o que foi impossível pela distância, já que se encontrava no outro lado do mundo. Em Paris, para onde viajou de Cingapura, hospedando-se no Hotel George V, após dois ou três dias de contato com Brasília, terminou aceitando a condição imposta pelos militares e seus adversários civis, estes chefiados por Carlos Lacerda e militantes udenistas, da emenda parlamentarista, convencionando-se, igualmente, a nomeação de Tancredo Neves para o cargo de primeiro-ministro, o que foi considerado um golpe branco.
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Do Aeroporto de Orly, Jango seguiu pela rota do Pacifico, a fim de evitar o Brasil oficial, tendo viajado num jato da Pan American. De No
va lorque, onde chegou na madrugada, rumou para a Argentina, chegando à tarde no Aeroporto de Ezeiza. Permaneceu ali três horas, sob forte cerco militar, que impediu até os contatos com os jornalistas e autoridades que foram recebê-Io. Isto não aconteceu no Uruguai, onde Jango chegou numa quinta-feira de inverno, às 14h4Smin. No dia 1º de setembro, chegava a Porto Alegre, à noite. Sua decisão de voltar pelo Rio Grande do Sul atendia ao perigo de outros pontos do Brasil e, aqui, à extraordinária mobilização operada pelo governador Leonel Brizola, seu cunhado, ao denso apoio popular recebido e à adesão do III Exército e demais instituições, bem como dos meios de comunicação social e seus profissionais de jornal, rádio e televisão, esta, na época, a TV Piratini.
O que se passou em Porto Alegre está, em termos gerais, na obra de Hélio Silva. Na madrugada de 27 de agosto, domingo, Brizola, atra-
vés das emissoras de rádio Farroupilha e Gaúcha, às quais aderiram outras posteriormente, lançou a “Cadeia da Legalidade”. Nossas emissoras de rádio foram requisitadas e suas transmissões passaram a ser transmitidas do “porão da legalidade”, no sub-solo do Palácio Piratini. Pela manhã, por volta das 11h, Brizola emitiu pela “Rede da Legalidade” sua emotiva conclarnação pela posse de João Goulart. Escolas e bancos foram fechados e os serviços públicos atuaram conforme as necessidades.
“Tenho os fatos mais graves a revelar. O Palácio Piratini, meus patrícios, está transformado em uma cidadela que deve ser heróica, uma
cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela da civilização, da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos dos senhores prepotentes’”, disse Brizola.
 
 
O apelo dramático, colhido em livro de Odilon A. Lopez, foi conseqüência da ordem dada pelas autoridades federais, ao general José Ma-
chado Lopes, comandante do III Exército, para que prendesse o governador, bombardeando até o Palácio Piratini e outros rebelados. João Goulart, a esta altura, estava em Paris, de retorno ao Brasil pelo Rio Grande do Sul, e Brizola o aconselhava, pelo telefone, a resistir, voando logo para Brasília ou, então, algum ponto seguro da América Latina. Foi o que aconteceu, só que Jango decidiu vir aos países do Prata e ao Rio Grande do Sul.
 
O Palácio Piratini, fisicamente, virou a curiosa praça de guerra, assunto ainda não de todo pesquisado e publicado. Entre autoridades e políticos, além dos naturais curiosos, avultavam os jornalistas e radialistas, todos empolgados com a “Cadeia da Legalidade”. Os profissionais e amadores de comunicação coletiva se espalhavam por todo o Palácio, desde o “porão da Legalidade”, até o telhado. Não temos número certo desta presença, poderia atingir a uma centena, que participaram de viagem de dois aviões mandados por Brizola a Buenos Aires e Montevidéu para receber e trazer Jango. Hamilton Chaves dirigia o Gabinete de Imprensa, Lauro Rodrigues, Flávio Tavares, Tarso de Castro, entre outros, acionavam as comunicações, enquanto Ronaldo Pinto, Naldo Freitas, Josué Guimarães, Lauro Hagemann, Flávio Alcaraz Gomes e outros conhecidos colegas acionavam as emissoras da Rede da Legalidade. Durante três dias, pelo menos, nos momentos decisivos, os jornalistas e radialistas viveram no Palácio Piratini, que se protegia com sacos de areia e outras barreiras no piso térreo e no teto. Quatro metralhadoras estavam postas: duas em cima e duas em baixo.
 
As emissoras transmitiam em idiomas misturados, português, francês, inglês, e os boletins eram também espalhados por emissoras não
identificadas de Santa Catarina e outros Estados. As torres das rádios locais, nas ilhas da Pintada e dos Marinheiros, estavam sob proteção da Brigada Militar, convocada por Brizola para os assuntos de segurança. Brizola, quando entendia, descia aos porões do Piratini e formulava seu discurso. Apresentava-se com barba por fazer, no tempo em que não existia ainda a moda dos barbudinhos, fortemente armado de revólver e metralhadora na mão.
O repórter fotográfico Nery Garcia, à frente de um grupo havia comparecido às Lojas Taurus, na Avenida Farrapos, dali recolhendo par-
te de 3.000 armas requisitadas pelo Governo do Estado. Garcia não sabe quanto trouxe, mas os proprietários colaboraram. Nossos colegas, conta ele, andavam assim armados e “muita gente tinha revólver na cintura sem saber atirar”. Garcia disse ter visto em Montevidéu Tancredo Neves e o deputado Hugo de Faria. Acha ele que mais de 100 jornalistas vieram de Montevidéu para Porto Alegre, onde se acumularam com os daqui e de outras partes do Brasil, aguardando o aparecimento de Jango no Palácio Piratini. Com bancos, churrascarias, restaurantes e muitos estabelecimentos fechados, a alimentação se tornou rara. No Palácio, onde o preparo da comida era da responsabilidade da Casa Civil com a ajuda da Casa Militar e da Brigada, alguém inventou uma espécie de café que se chamaria “cascaria”, ou “cascarijo”, contendo leite e outro composto cujo nome ele não lembra. Garcia, finalmente, explicou que a alimentação tornara-se difícil, mas o pessoal ia resistindo.

 

Wilson Müller, jornalista, que era assistente do secretário do Interior e Justiça, o saudoso Francisco Brochado da Rocha, conta que o pessoal dormia nas cadeiras e poltronas do Palácio, onde houvesse um cantinho, tendo ficado, a maior parte, dias sem trocar de roupas. Lembra que no Mata-Borrão, aquele curioso pavilhão onde hoje está o edifício da Caixa Econômica Estadual, na Avenida Borges de Medeiros, foi montado um posto de alistamento para as eventuais ações militares em defesa de Jango. Na ausência dos bancos, fechados, o Governo do Estado pagava com vales.

O jornalista Melchíades Stricher, por sua vez, lembra o Hino da Legalidade, de autoria de Paulo César Peréio e Lara de Lemos, com arran-
jo de Hamilton Chaves, chefe de Imprensa de Brizola, e de Madeleine Ruffier. Dos fatos que não se esquece, Melchíades narra o aspecto anedótico dos tanques do Exército subindo pela íngreme Rua Espírito Santo. A situação, que era por demais tensa e incerta, se aliviou quando o general José Machado Lopes, que foi prender o Governador e cumprir ordens do Ministério da Guerra, aderiu ao movimento e, atendendo a pedido de Brizola, chegou às sacadas do Piratini e apoiou a Campanha da Legalidade. O mesmo teria acontecido com o cardeal Vicente Scherer, que foi ao Palácio em missão de paz e acabou aderindo, sob palmas dos presentes.
 
João Goulart chegou a Porto Alegre, segundo minhas notas, no dia 1º de setembro, uma quinta-feira, à noite. O hoje vereador e secretário do Planejamento Municipal, Geraldo Brochado da Rocha, assistente do Governador, confirma que o automóvel que o trazia ingressou no Palácio Piratini pela entrada da Casa Civil, aquela ruazinha entre a Catedral Metropolitana e o Palácio. Das janelas do veículo, Goulart acenava para a multidão, em frente, que lotava a Praça da Matriz. Geraldo recorda que nos dias da campanha ninguém dormia, a alimentação era mesmo difícil e a roupa escassa para mudas. “A gente perdera o medo e estava disposto a tudo”, disse Geraldo. A chegada de Jango foi alentadora para todos, mas havia atrás algum aborrecimento. Numerosos jornalistas, em quantidade que não conseguimos apurar, principalmente gaúchos, descontentes com sua adesão à emenda parlamentarista, deram vivas à Rainha da Inglaterra. Conta-se, igualmente, que o próprio Governador teve atrito com o Vice-Presidente.
João Goulart entrou no salão do Palácio vindo da residência do Governador, cerca de 20 para 21h. Foi cumprimentando autoridades, parlamentares e jornalistas, na medida do possível, chegando até as sacadas para cumprimentar o povo. Depois, cruzou por uma das janelas, em que nos encontrávamos juntamente com a comissão especial de vereadores. Fomos a ele apresentados, apertamos-lhe as mãos e vimos no seu rosto a ansiedade e o cansaço, mas a calma decorrente de sua paz de consciência de que havia evitado uma guerra civil e não queria que se derramasse sangue dos brasileiros pela sua causa, embora plenamente justa. Esteve três dias no Palácio Piratini, num dos quais saiu para visita à então 6ª DI, na Rua Luiz Afonso. 
 
Consultei vários trabalhos, reportagens e obras, ouvi colegas que viveram aqueles momentos graves e perigosos da vida nacional, em que mais uma vez se buscava rasgar a Constituição e anular os direitos dos cidadãos, como se fez parcialmente e se consumou dois anos e meio mais tarde.
 
Vargas, Jango e a nova política trabalhista no período 1951-1964!!
Vargas, Jango e a política trabalhista no período 1951-1964!


Como já explicitei anteriormente, no tópico intitulado 'A Herança Varguista', o projeto Varguista original visava controlar e tutelar os trabalhadores, submetendo-os ao controle do Estado, e esta foi a política adotada no período 1930-1945.

Porém, Vargas muda essa política quando do seu 2º governo, já como presidente democraticamente eleito em 1950, que foi de 1951 a 1954, como é do conhecimento de todos.

Neste segundo governo Vargas, a política em relação aos trabalhadores passará por uma mudança radical.

E quem implementou esta mudança foi, justamente, Jango, que Vargas escolheu para ser o seu herdeiro político, visto que Jango já era a principal liderança política do PTB gaúcho (depois de Vargas, é claro), era um antigo aliado varguista e as suas famílias eram aliadas de longa data.

Para compreender melhor essa mudança, sugiro a leitura do capítulo ‘Memórias em disputa: Jango, ministro do Trabalho ou dos trabalhadores?’, publicado no livro “João Goulart: Entre a Memória e a História”, coordenado por Marieta de Moraes Ferreira.

Neste capítulo, mostra-se, claramente, que Vargas encarregou Jango, como Ministro do Trabalho, de adotar uma nova política, visando uma crescente aproximação com os trabalhadores organizados. Entre outros aspectos desta política, estavam:

1) Não intervenção nos sindicatos de trabalhadores, permitindo que estes se organizassem de maneira independente em relação ao Estado, mesmo que tivessem direções controladas pelos comunistas, que eram rivais dos trabalhistas no movimento operário naquele momento;

2) Diálogo e negociações francas e abertas com os trabalhadores, a fim de atender às reivindicações dos mesmos;

3) Recusa do governo Vargas em reprimir a ‘Greve dos 300 mil’, que ocorreu em S.Paulo, o que jogará o empresariado contra o mesmo;

4) Concessão de um aumento de 100% para o salário mínimo, pelo governo Vargas, em 1954, o que foi um dos principais fatores que colaborou para detonar o movimento golpista contra Getúlio e que resultou na sua morte em Agosto do mesmo ano;

5) Criação da CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), com o apoio de Jango e que, legalmente, não poderia existir;

6) Criação, pelo governo Jango, do Estatuto do Trabalhador Rural, que estendeu os direitos sociais, trabalhistas e previdenciários para os trabalhadores rurais e que Caio Prado Jr. considerou como sendo mais importante do que a Abolição da Escravidão.

7) Estímulo à sindicalização dos trabalhadores rurais pelo governo Jango;

8) Apoio às lutas das ‘Ligas Camponesas’ pela Reforma Agrária que era uma das ‘Reformas de Base’;

9) Adoção, pelo PTB e por Jango (escolhido por Vargas como o seu legítimo herdeiro político), da defesa das ‘Reformas de Base’, que incluíam, entre outras inúmeras e significativas mudanças, a Lei de Remessas de Lucros para o exterior (foi adotada em 1962), o direito de voto para os analfabetos, o combate ao analfabetismo (programa este que foi comandado pelo Paulo Freire).

Assim, os governos de Vargas (1951-1954) e de Jango (1961-1964) promoveram uma mudança radical nas políticas trabalhistas. No lugar de tutelar e controlar os trabalhadores, os governos democráticos de ambos (1951-1954 e 1961-1954) estimularam a sua organização de maneira independente em relação ao Estado.

Eles não fizeram isso porque eram ‘bonzinhos’, mas em função do fato de que havia uma crescente capacidade de mobilização e de organização dos trabalhadores e que se processava de maneira cada vez mais independente em relação ao Estado

Tais mudanças caracterizaram um total abandono daquela política anterior, de ‘tutela e controle’ do movimento operário pelo Estado, e que vigorou no período de 1930-1945, pois a manutenção de tal política num ambiente democrático era totalmente inviável.

Vargas e Jango tiveram a sensibilidade política para perceber isso, daí as mudanças que promoveram na maneira de se relacionar com as classes trabalhadoras, que se organizavam e se mobilizavam cada vez mais.
Entendimento não saiu diante da discordância de Juscelino. Anos depois, porém, a aliança seria realidade, surgindo a Frente Ampla.
Na primeira noite da crise após a vacância na Presidência da República, em 1961, anunciada pelo presidente do Congresso, Auro Soares de Moura Andrade, Carlos Lacerda tentou um acordo com Juscelino. Armando Falcão, ex-ministro de JK, mas também antigo amigo pessoal de Lacerda, tentou aproximá-los. E o que Lacerda queria? Sua proposta era a de que Juscelino assinasse um manifesto, junto com ele, contra o comunismo... E não abordava a posse de Jango, que estava voltando da China.

Lacerda encontra Juscelino em Lisboa
Juscelino não concordou até porque ainda tinha bem presente ainda a tentativa de impedir a sua posse em 1956. E não confiava em Lacerda. Sentia um objetivo oculto. Só mais tarde, três anos depois que ambos, Lacerda e Juscelino tinham sido atingidos pelos militares, a aproximação entre eles se viabilizou. Mas aí a situação era outra. E materializou-se com o lançamento da Frente Ampla, presente também no movimento o ex-presidente João Goulart, já deposto.
 
Outro cenário
Em 1966 era outra a realidade. Desta feita, ambos se encontraram, por intermediação do ex-deputado Renato Archer, em Lisboa. Lacerda foi ao seu encontro e lá concordaram em lançar a Frente Ampla, que tivera o apoio de Jango. Ele levava uma sugestão de documento. Poucas alterações foram feitas, e afinal surgiu a redação final. Havia uma colocação estratégica das lideranças civis ao elaborar o documento. Ele partia do princípio de que a Revolução era um fato consumado, por isso não se tratava de contestação.
 
Evolução
Os três líderes políticos que assinaram o documento criando a Frente Ampla que visava a redemocratização, sem confronto, ainda mantiveram alguns contatos através de mensageiros e enviados de confiança, mas quem mais usou o movimento, fazendo conferências foi Lacerda. Num artigo para a revista Manchete, no entanto, Juscelino contou como foi o encontro em Lisboa com Lacerda: “Estávamos à vontade como se nos encontrássemos todas as semanas. E no encontro, Lacerda revelou-me o convite malicioso que recebera de Castelo para ser embaixador do Brasil na ONU.”
 
Sequência
O trio então lançou a Frente Ampla, mas viu o regime político no Brasil sofrer um inesperado endurecimento com a morte do marechal Castelo Branco e o novo presidente Costa e Silva. Logo viria o AI-5, a Frente Ampla colocada fora da legalidade, prisões (inclusive de Lacerda) e fechamento do Congresso. E um dado curioso: os três morreriam na década de 70, ainda sob o regime militar: Juscelino e Jango em 1976 e Lacerda em 1977.
Carlos Fehlberg


Renúncia de Jânio leva comandos militares a convocar presidente da Câmara. Mazzilli atende o chamado e pede para Alkmin segui-lo
 
As lideranças da Câmara praticamente não dormiram depois do pronunciamento de Carlos Lacerda, pela TV, atacando o presidente Jânio Quadros, de quem fora o principal cabo eleitoral. A sensibilidade parlamentar concluía que alguma coisa aconteceria. E foram alertados por Amaral Peixoto e José Maria Alkmin da necessidade de prontidão. Logo depois, às 9 horas da manhã, novamente reunidos, os deputados souberam da apresentação à mesa de requerimentos pedindo a convocação do ministro da Justiça, Pedroso Horta. E um outro pedia que a Câmara se constituísse em Comissão Geral para a convocação do governador Carlos Lacerda para debater a denúncia que ele formulara pela TV contra o Presidente Jânio Quadros, na noite anterior quando falou mais de uma hora.

Presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, fala como presidente depois da renúncia de Jânio. A seu lado, o ministro da Guerra
Suspensa a sessão, tanto o presidente da Câmara, Rainieri Mazzilli como o líder José Maria Alkmin foram informados de que fatos anormais na política estavam em desdobramento e deveriam ficar atentos. A Câmara queria, por isso, convocar o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta para falar sobre as denúncias de Lacerda.
 
Revelações
De volta à Câmara, o seu presidente Rainieri Mazzilli foi avisado que havia um coronel na casa que desejava falar-lhe. E convidou-o para uma reunião com os ministros militares no gabinete do Ministro da Guerra. Disse-lhe que era muito importante: os ministros não poderiam se ausentar e sua presença era requisitada. E Mazzilli, temeroso, travou um diálogo próprio para o momento com o líder José Maria Alkmin, em outra dependência:
 
"Preciso que você me siga. Vá no outro carro atrás de mim, pois quero saber para onde estou sendo levado. Depois vá para minha residência, onde nos encontraremos. Se o tempo parecer demais fique sabendo, desde logo, que fui convocado para ir ao gabinete do Ministro da Guerra.”
Lá Mazzilli soube, afinal, o que acontecera e ouviu com surpresa a manifestação dos ministros que a ausência do Vice-Presidente João Goulart que estava na China tornava a sucessão do poder até mais tranquila...
 
Mazzilli perguntou qual era a causa da renúncia e o Ministro Denys respondeu: “Temperamento!”
Os ministros chegaram a dizer a Mazzilli que tentaram demover Jânio, perguntando se havia algo que pudesse ser feito ou que ele desejasse, mas de nada adiantou.
 
Mazzilli deixou a residência do ministro e foi ao encontro de Alkmin, contando tudo e pedindo que ele reunisse os líderes. Enquanto isso, quase ao mesmo tempo, o presidente do Senado e do Congresso, Moura Andrade, recebia das mãos trêmulas de Pedroso Horta o ato de renúncia de Jânio. E logo comunicou o plenário e convocou os líderes para uma reunião em seu gabinete. Mas em meio a essa reunião, sigilosa, chegou mensagem do ministro Afonso Arinos, levada por dois diplomatas:
 
“Os Ministros Militares não podem tomar conhecimento do documento de renúncia antes do Congresso Nacional, e o Congresso Nacional, por sua grande maioria, é concitado a recusar a renúncia, sem o que será o caos, a guerra civil.”
Mas de nada adiantou. As razões de Jânio, contidas no documento, foram lidas pelo presidente do Congresso, Moura Andrade que logo depois convidou para assistir a posse do Sr. Rainieri Mazzilli na Presidência, horas mais tarde. Às 17h15 min.
 
Por Carlos Fehlberg


LOTT e a posse de Juscelino -Jango em 1955
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