A esquerda e a síndrome do dono da bola .
Quem não teve aquele amiguinho dono da bola que, para começar a pelada, exigia que ele mesmo escalasse os times, fosse o capitão e se escalava como centro avante, determinando que todo o time jogasse em função dele? Ou era isso ou ele ia embora com a bola. Ou, então, quem não conheceu aquela criança birrenta que exige que todos brinquem como ela quer, ou então quebra os brinquedos e não deixa ninguém brincar?
A vida política é dinâmica. Um único pequeno fato é capaz de estabelecer um cenário totalmente diferente do dia anterior, reconfigurando as composições e a correlação de forças. Nada é estático e somente pode influenciar as outras pessoas e sobrevive quem tem a capacidade de fazer a leitura correta do momento e fazer uma projeção razoável do futuro.
O eixo central da luta atual, a batalha que se trava no momento, é o combate ao fascismo e em defesa da vida, que se materializa na palavra de ordem “Fora Bolsonaro” e na exigência de um plano sanitário e econômico emergencial que objetive impedir o estabelecimento do caos. Do desenlace destas questões dependem todas as questões futuras.
Nesta quadra, em uma situação de dispersão das forças que se opõem ao governo do Capitão, nessa primeira semana de junho, como num estalo, vários fatos unificadores surgem, em especial nas redes sociais, apontando um caminho de esperança e motivando milhares de pessoas a se incorporarem a este enfrentamento. Torcidas organizadas rivais se unem em defesa da democracia e vão às ruas em diversas capitais no domingo retrasado, mais de 6 mil personalidades e perto de 300 mil pessoas assinam o manifesto Estamos Juntos, internautas aderem maciçamente ao movimento Somos 70%, 600 juristas e advogados lançam o manifesto Basta, e neste último domingo vigorosas manifestações de rua de caráter antifascista e anti-racista . Também não podemos deixar de incluir aqui as vigorosas manifestações do movimento Black Lives Matter que, apesar de focar na questão racial e ter como centro os Estados Unidos, espalha-se pelo mundo e coloca em cheque o principal símbolo da direita mundial, Donald Trump.
Porém, tão rápido quanto o surgimento dessas iniciativas, foi frustrante a rapidez como algumas personalidades de peso no campo da esquerda se lançaram a questioná-las. Lula, por exemplo, não aderiu aos manifestos e orientou os petistas a não assinarem, afirmando que “têm pouca coisa de interesse da classe trabalhadora, “não se fala em classe trabalhadora, nos direitos perdidos”. Na onda de Lula, vários petistas passaram a afirmar que não assinam se o manifesto não se posicionar explicitamente pela restituição dos direitos políticos de Lula. Muitos outros passaram a afirmar que não assinam o mesmo manifesto que fulano ou beltrano assinam, ou, ainda, que não entram em frente que abrigue aqueles que apoiaram ou participaram do impeachment de Dilma ou apoiaram a candidatura de Bolsonaro na campanha presidencial.
Quanto a esses posicionamentos, em primeiro lugar, há que se questionar se, sem garantirmos a vida, a liberdade e a democracia, será possível assegurarmos e resgatarmos os direitos perdidos dos trabalhadores. Vida, liberdade e democracia não são interesses dos trabalhadores? Os direitos políticos de Lula serão restituídos sem a garantia de liberdade e democracia? Um manifesto representa necessariamente a formalização de uma frente?
Mais longe foi o ex-senador e ex-governador Roberto Requião que lançou um artigo/manifesto em contraposição aos manifestos amplos, afirmando serem vazios de conteúdo e propondo uma plataforma que deveria condicionar a composição de uma frente.
Poderíamos aqui imaginar que talvez fuja da compreensão de tais personalidades, em especial do ex-senador, o significado de frente. Frente é aquilo que reúne pessoas ou organizações que pensam de forma diferente – às vezes até antagônicas – em torno de um ou mais objetivos pontuais. A reunião ou organização de pessoas que pensam politicamente da mesma forma ou de maneira similar constitui uma corrente de opinião, um partido, ou algo do gênero, e não uma frente. Por outro lado, os manifestos lançados e seu rol de assinantes nos permitem vislumbrar a formação de um embrião de frente ampla e não a sua constituição.
Em uma frente, é natural e até mesmo fundamental que cada posição seja explicitada, até mesmo para tornar público que indivíduos que pensam de formas diferentes se unem, naquele momento determinado, em torno de um objetivo comum. E formalizada a frente, pode -se, sim, traduzir as intenções do grupo em uma plataforma, ainda que exígua. Assim, o artigo/manifesto do Requião não teria nenhum problema e até jogaria um relevante papel, caso fosse a manifestação de sua posição dentro de uma frente formada, ou se, aproveitando sua representatividade, se prestasse a unificar uma frente de esquerda para atuar dentro de uma frente mais ampla. No entanto, o que o torna inadequado e inoportuno é o fato, em primeiro lugar, de não ser uma manifestação de posição, no sentido de influenciar os participantes, mas sim uma contraposição aos manifestos, afirmando ser vazia de conteúdo a bandeira de união em “defesa da vida, da liberdade e da democracia” e, demonstrando portanto, uma incompreensão quanto ao significado de frente ampla e de como ela é gestada. Segundo, porque mesmo que a proposta fosse de constituição de uma frente de esquerda, nem este seu artigo/manifesto unificaria.
Se perguntássemos a Lula e Ciro (faça-se a ressalva que este último de que assinou o manifesto Estamos Juntos) se concordam com a plataforma proposta por Requião, provavelmente ambos responderiam que sim. Porém, se os convidássemos a assinar tal artigo/manifesto, Lula responderia que só assinaria junto com Ciro se ele se desculpasse por ter ido a Paris no segundo turno das eleições de 2018 e este afirmaria que só assinaria junto com Lula se ele se desculpasse por não tê-lo apoiado no primeiro turno.
É verdade que algumas feridas nunca cicatrizam, mas tanto Lula quanto Ciro são macacos velhos o suficiente para saber que política se faz com a razão e não com a emoção, de forma que tais desculpas, assim como o próprio artigo/manifesto do Requião, nada mais são do que discursos para suas respectivas plateias. Então, o que está por trás da resistência de tais personalidade e correntes políticas em compor ou participar de frentes, ainda que sejam de esquerda?
Creio que o governador Flávio Dino, na sua inigualável perspicácia e peculiar polidez, matou a charada nessa mesma semana ao afirmar que “nessa frente ampla a esquerda pode ter de renunciar a hegemonia”. Mesmo colocando em risco a nação, a sociedade e seus próprios projetos pessoais, o que impele segmentos e determinadas personalidades da esquerda a rejeitar frentes e composições é o fato de sua própria hegemonia não estar estabelecida a priori. Ou seja, comportam-se como os meninos donos da bola que exigem que sejam eles a escalar o time, estabelecer as regras do jogo e determinar em que posição irão jogar. Em vez de tentar convencer os coleguinhas da sua forma de brincar, exigem que todos brinquem como eles querem, e acabam isolados em um canto, brincando sozinhos.
por Jorge Gregory