Reestruturação capitalista como legado da pandemia

Ainda que o seu fim pareça improvável, o neoliberalismo sofre forte abalo desde o início da pandemia da Covid-19. A retomada do Estado com a imediata adoção das políticas anticíclicas para assistir tanto empresas como famílias evitou maior contração no nível de atividade econômica.

Reestruturação capitalista como legado da pandemia

Reestruturação capitalista como legado da pandemia

 

Por Marcio Pochmann

(Reprodução/Moneybar)

Créditos da foto: (Reprodução/Moneybar).


Ainda que o seu fim pareça improvável, o neoliberalismo sofre forte abalo desde o início da pandemia da Covid-19. A retomada do Estado com a imediata adoção das políticas anticíclicas para assistir tanto empresas como famílias evitou maior contração no nível de atividade econômica.

Embora protegida, a taxa média de lucro não refletiu homogeneamente a situação geral do sistema capitalista. Enquanto determinados setores foram penalizados fortemente, como os pequenos negócios, turismo, transporte, automobilístico e cultura, outros registraram desempenhos muito positivos, como bancos, fármacos, telecomunicações e comércio varejista.

A desigualdade de performance nos setores econômicos e de lucratividade maior nas grandes empresas e menor nas pequenas firmas gerou impulso adicional à monopolização capitalista. O reforço do poder de mercado das grandes corporações se expressou tanto por fusões que evitassem “a falência de empresas” como por “aquisições matadoras” das firmas inovadoras concorrentes[1].

Ao mesmo tempo, a constatação de que a mudança na intervenção estatal a partir da pandemia não tem se limitado ao mero socorro de empresas e famílias. Pelo menos para alguns países, o maciço gasto adicional público foi direcionado ao estímulo econômico travestido da retomada de investimentos estatais e das mudanças na regulação competitiva, ambas questionadoras do próprio neoliberalismo.

Como paradigma social e político dominante nos últimos quarenta anos, o receituário neoliberal se caracterizou por impor funções disciplinares e coercitivas ao Estado voltadas a transformar o público em privado. Na expectativa de elevar a taxa média de lucro do sistema capitalista em queda na década de 1970, devido ao esgotamento do modelo fordista, a inflexão na intervenção do Estado buscou abrir novos mercados lucrativos, ao passo que reduzia custos de uso e remuneração da força de trabalho.

Como legado da pandemia da Covid-19, emerge uma grande reestruturação capitalista em alguns países do Ocidente. Em função disso, outro tipo de consenso hegemônico pode estar sendo forjado através recuperação do Estado a reassumir o poder e o status perdidos.

Novas coalizões políticas nacionais almejam renovar a legitimidade necessária para enfrentar insatisfações e protestos reveladores do quadro geral de desespero que resulta da deterioração interna dos países. No cenário internacional, por exemplo, a tentativa de fazer valer as tradicionais fórmulas de natureza colonial e imperialista contemporâneas em países do Ocidente compreende o desespero frente ao deslocamento da centralidade econômica dinâmica para o Oriente.

Assim como na grande Depressão de 1929, quando o capitalismo caiu em desgraça, em meio ao avanço da União Soviética, assistiu-se nas recentes crises econômicas de 2008 e 2020 que abalaram o sistema mundial, o inegável fortalecimento chinês. Diferentemente do modelo soviético de construção de um mundo novo em paralelo ao capitalismo, modelo chinês persegue as próprias veias do sistema do capital, contaminando-o pelo próprio mérito de sua exitosa concorrência.

Plenamente perceptível na convergência das posturas dos Estados Unidos e da União Europeia em reação recentíssima, adotadas no primeiro semestre de 2021 para fazer frente ao domínio produtivo, tecnológico e comercial chinês. Tanto a atualização da Estratégia Industrial para as transições verdes e digitais da UE quanto o plano da Casa Branca de Biden para uma nova política industrial dos EUA apontam nesse sentido.

Em resposta, a China segue construindo acordos de cooperação com mais de 140 países, fortalecendo cada vez mais a iniciativa do cinturão e rota da seda, que permitem avançar suas empreiteiras e parcela crescente do seu setor produtivo. Da mesma forma, ergueu o plano econômico de montagem das dez bases emergentes e estratégicas com influência global em conexão com cem clusters de manufatura avançada de competitividade internacional e mil ecossistemas industriais com vantagens únicas, capazes de ofertar tecnologias de competitividade internacional, superiores às ocidentais.

Diante das hostilidades externas, como a lista de embargos tecnológicos realizada pelos EUA visando estrangular tecnologicamente a China, a reafirmação da conduta de um novo salto interno para a inovação doméstica. Desa forma, a planificação da inovação doméstica, ao se concentrar em tecnologias centrais, materiais essenciais, técnicas e algoritmos básicos, entre outros, busca substituir a manufatura tradicional com uso de mão de obra intensiva pela manufatura muito miais avançada.

Em síntese, a pandemia da Covid-19 estimulou novo movimento de reestruturação capitalista, especialmente nos EUA e UE que reagem ao sucesso chinês. Na mesma medida, a China responde com a aceleração da transformação de sua manufatura que impulsionada pela tecnologia, consolida sua posição de oficina do mundo moldada pela dominação da digitalização econômica.

Marcio Pochmann é professor e pesquisador do Cesit/Unicamp e da Ufabc
***
[1]. Wollmann, T. How to Get Away with Merge, 2021Milani, M. The next four waves of mergers and acquisitions, 2020; Khurana, T. et al. The next wave of M&A in advanced industries, 2021.