O grupo paramilitar inspirado na Ku Klux Klan que atuou contra a esquerda no Brasil
A pouco mais de cinco meses da estreia da seleção brasileira de futebol no campeonato mundial no Chile, em 1962, aquele sábado de janeiro, dia 6, revelaria a atuação violenta contra a imprensa de um grupo anticomunista até então desconhecido no Brasil.
O grupo paramilitar inspirado na Ku Klux Klan que atuou contra a esquerda no Brasil
- Eduardo Reina
- De São Paulo para a BBC News Brasil
A pouco mais de cinco meses da estreia da seleção brasileira de futebol no campeonato mundial no Chile, em 1962, aquele sábado de janeiro, dia 6, revelaria a atuação violenta contra a imprensa de um grupo anticomunista até então desconhecido no Brasil.
A Ordem Secreta dos Primadistas, inspirada nas ações terroristas e no capuz do grupo supremacista branco americano Ku Klux Klan, invadiu a rádio Farroupilha, em Porto Alegre.
O objetivo era um ler um manifesto contra o comunismo nos microfones da emissora, considerados entre os mais potentes do Brasil, e gerar agitação em todo território nacional.
Paralelamente e no mesmo dia, a 1.570 quilômetros de distância da capital gaúcha, no Rio de Janeiro, outro grupo anticomunista metralhava a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE). O ataque foi promovido pela Ordem Suprema dos Mantos Negros (OSMN), também conhecida como Maçonaria da Noite.
A Ordem Secreta dos Primadistas era uma espécie de "filial no sul do país" da OSMN, que tinha sede em Niterói (RJ). Ambos eram formados por integrantes que agiam e pensavam de forma semelhante à Ku Klux Klan, eram conhecidos como a "KKK Brasileira" e atuavam sob o lema "Dominaremos os infernos".
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Nesse período no Brasil era amplo o movimento contrário ao comunismo, que criou uma série de grupos extremistas que atuavam contra as chamadas esquerdas em vários Estados. Muitas dessas organizações tinham inspiração no grupo racista norte americano, que surgiu no século 19, no fim da Guerra Civil americana, e passou a perseguir, torturar e matar pessoas negras nos EUA.
O ataque à UNE foi realizado junto com o Movimento Anticomunista (MAC), braço armado do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) no Brasil.
Além de conectados entre si, Primadistas gaúchos, a OSMN e o MAC também tinham ligação com o grupo que promoveria um atentado a bomba ao extinto jornal Última Hora no centro da cidade de São Paulo poucos dias depois, em 12 de janeiro de 1962.
O Última Hora pertencia ao mesmo grupo empresarial da rádio Farroupilha, os Diários Associados, de Samuel Weiner, cuja sucursal gaúcha ficava na Galeria Rosário.
A OSMN e seu fundador
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A OSMN possui registro de pessoa jurídica. Foi fundada por um conhecido agente anticomunista na década de 1960, Joaquim Miguel Vieira Ferreira, o Joaquim Metralha, também integrante do MAC. Ele foi secretário-geral da Cruzada Brasileira Anticomunismo e agente do Cenimar, o serviço de informações da Marinha durante a ditadura.
De acordo com o historiador Marcos Vinicius Ribeiro, "Joaquim Vieira Ferreira atuou como quadro anticomunista no Brasil desde os anos de 1950 até 1982, quando foi morto. Foi radicalmente contra Getúlio Vargas e João Goulart. Atuou na repressão na cidade de Niterói, Rio de Janeiro. Sua sagacidade e sevícia o rendeu a alcunha de 'Tiroteio'".
Alberto Santos, ex-militante da luta contra a ditadura brasileira, relatou que "Tiroteio" usava de métodos reconhecidamente terroristas para investigar seus alvos, sendo que o próprio Alberto Santos foi investigado por ele.
Os serviços prestados por 'Tiroteio' à repressão incluíam desde manipulação de correspondências, botins de investigação/invasão de propriedades de 'subversivos'.
"Segundo Alberto Santos, 'Tiroteio' foi um ativista histórico do anticomunismo brasileiro e seus serviços vão além do período relacionado ao Congresso de 1977 da CAL (Confederação Anticomunista Latino-americana)", escreveu Ribeiro em sua tese de doutorado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Ligação entre os grupos
Quem descobriu as ligações entre Primadistas gaúchos e os anticomunistas do Rio de Janeiro foi Raphael Alberti, Mestre em História, Política e Bens Culturais (FGV-RJ) e professor em escolas públicas em Caruaru (PE) e do Colégio Inovar em Toritama (PE).
"Eram organizações paramilitares de extrema-direita que promoviam atentados no início da década de 1960", diz Alberti, autor do livro Um Espião Silenciado (CEPE, 2020).
Não há registro sobre a autoria do atentado a bomba em São Paulo, mas a colocação do artefato explosivo ao lado da gráfica do Última Hora foi precedida de inúmeras ligações telefônicas com ameaças para a redação. A bomba não explodiu. Mas uma outra chamada telefônica ameaçou: "Nossos homens falharam, desta vez. Mas voltarão para incendiar o jornal!", relata reportagem publicada em 12 de janeiro de 1962.
Rituais e inspiração na Klu Klux Klan
O historiador Alberti relata que os integrantes dos grupos gaúcho e fluminense se inspiravam na seita dos EUA para criar suas vestimentas, mas em vez da cor branca para os capuzes, utilizava a cor negra.
De comum entre todos estava a organização de atos terroristas e participação de rituais com juramentos sobre a Bíblia, capuzes e luvas, à moda da Ku Klux Klan.
"Havia um ritual de iniciação onde o novato precisava escapar de golpes de punhal aplicados por integrante antigo da seita, além de fazer um pacto de sangue", conta.
Documento de registro de Joaquim Metralha na OSMN revela que ele era "templário da Ku Klux Klan", e no verso da carteirinha a menção sobre os cinco continentes - "África - Ásia - Europa - América do Norte e América do Sul" -, o que pode apontar um caráter internacional da organização.
O ataque à rádio Farroupilha
Um grupo com oito primadistas encapuzados entrou na Galeria Rosário, centro histórico de Porto Alegre, naquele sábado, dia 6 de janeiro de 1962, por volta das 20h30.
Quatro ficaram no térreo. Os outros subiram ao 22º andar, em direção aos estúdios da rádio. O objetivo era fazer com que o Repórter Esso, programa jornalístico de grande audiência, lesse um manifesto "contra a infiltração comunista nos meios governamentais e no seio do povo", segundo reportagem publicada no jornal Última Hora.
Depois, uma cópia do manifesto foi encontrada pela polícia gaúcha escondido debaixo do assoalho de uma casa localizada na rua Botafogo, no bairro de Menino Deus.
A pesquisa de Raphael Alberti mostra que os primadistas gaúchos diziam no manifesto que o Brasil passava por momento de emergência e que "todos os brasileiros patriotas" deveriam abandonar sua indiferença para "lutar organizadamente para salvar" o país do comunismo, "um grave perigo".
No térreo do prédio, o ascensorista Armindo Machado foi obrigado, sob a mira de revólver calibre 38, a subir diretamente, sem paradas. Ao chegar no 22º andar, foi rendido e lhe colocaram um capuz, semelhante ao que usavam.
Mas a leitura do manifesto não saiu como esperado, conta o professor Alberti.
Logo ao descer do elevador, os primadistas encontraram o guarda rodoviário Ulisses de Sousa Marçal e o porteiro Deomar da Silva.
Assustado, Deomar correu e se trancou na discoteca da emissora. Ulisses partiu para cima do grupo e entrou em luta corporal com um criminoso e o dominou. O revólver do guarda disparou, assustando aos outros três integrantes do grupo, que fugiram pelo elevador.
O primadista dominado foi identificado como Luís Augusto Fontela dos Santos, que era funcionário da TV Piratini, onde participava do programa infantil O Mestre Estrela.
"O Mestre Estrela era Antonio Gabriel, que todos consideravam ser um agente informante da Secretaria de Segurança Pública do governo do Estado", aponta hoje João Batista Melo Filho, integrante da Associação Riograndense de Imprensa e radialista.
Detido e levado para a delegacia, Fontela, que pertenceu à Marinha, contou sobre o plano e entregou o nome dos demais integrantes do grupo em Porto Alegre: Valdir Barbosa da Silva, sargento do Exército; Válter Cunha Santos, eletricista; Henrique Dias Cabral, tenente do Exército; José Renir dos Santos, barbeiro no quartel do III Exército, setor de intendência; Darcy Elesbão, relojoeiro; Osório Araújo Cavalheiro; Jorge Moraes Branco; Armando Henrique Dias Cabral e João Valmor Marques da Rosa.
Fontela também seria responsável pela leitura do manifesto que alertava sobre o que chamavam de "infiltração comunista no governo e na imprensa.
"Atenção, atenção gaúchos. Muita atenção brasileiros da rádio Farroupilha de Porto Alegre para este brado de alerta. Conclamamos a todos brasileiros a se organizarem para desarticular as forças estranhas aos interesses da soberania nacional que se infiltraram criminosamente em todos os órgãos governamentais".
A ação dos extremistas gaúchos passava pela organização de grupos de guerrilheiros, segundo Alberti, treinando-os em cidades vizinhas à capital rio-grandense.
Cada primadista teria sob seu comando cerca de dez homens. No Paraná, destaca o historiador, o MAC treinava mais de 500 homens em Curitiba, que participariam de ações terroristas contra o comunismo.
Os primadistas
A Ordem Secreta dos Primadistas no Rio Grande do Sul atuou durante o governo de Leonel Brizola, anos antes ao golpe militar de 1964, como uma organização paramilitar de extrema-direita responsável por vários atentados.
Foi criada por Valdomiro Ramos Pacheco em Caxias do Sul. Pacheco trabalhava como professor e chegou a integrar o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Mas foi expulso por promover discordâncias internas. Na seita, Pacheco era chamado de o "Venerável".
A sociedade secreta ostentava bandeira com listras pretas e vermelha, cinco estrelas e uma águia com duas cabeças - bicéfala. O preto simbolizava o luto pela morte dos irmãos primadistas e o vermelho, o sangue derramado pelos irmãos, definiram os integrantes do grupo.
As cinco estrelas representavam as cinco regiões geoeconômicas previstas na filosofia primadista.
Já a águia bicéfala, defendiam, era diferente daquela utilizada pelo líder nazista Adolf Hitler.
A águia primadista tinha uma cabeça agressiva e a outra pacífica. Arquivos policiais da época mostram que os primadistas, pelo menos por duas vezes, teriam recebido ordem de matar ou espancar integrantes infiéis.
A polícia do Rio Grande do Sul admitira à imprensa, durante os anos 1962 e 1963, que havia caráter de fanatismo dos integrantes da Ordem. Os primadistas possuíam duas outras organizações na região sul do país.
O Instituto dos Direitos da Criança (IDECE) e a Organização da Juventude (Orju), além de editarem a revista Renascimento, que veiculavam seus pensamentos. Tiveram publicações em artigos no jornal O Estado, de Santa Catarina, em 1958, segundo estudo de Raphael Alberti.
Não há como precisar a data de fundação do grupo. Em depoimento no dia 12 de janeiro de 1962, José Renir dos Santos afirma que participava do primadismo desde 1956 e que a Ordem Secreta dos Primadistas possuía mais de 3 anos, ou seja, funcionaria desde 1958 ou 1959.
Um relatório de 1966 da Seção do Rio Grande do Sul do Serviço Nacional de Informações (SNI) a confere o nome de "Sociedade Secreta Carbonária" e "Ordem do Cruzeiro do Sul".
Em 1962, após o ataque à rádio Farroupilha, a polícia abriu inquérito contra os envolvidos. Mas praticamente nada aconteceu. Raphael Alberti destaca que o Judiciário gaúcho, à época, negou prisão preventiva dos envolvidos.
"Alegaram que todos tinham residência fixa e profissões definidas", diz.
A 5ª Vara Criminal absolveu os acusados do atentado. De acordo com registro no jornal Correio de Povo, a sentença alegava que "não havia como fazer o enquadramento dos acusados nas leis penais", nem mesmo como simples tentativa de crime.
A Justiça considerou que a ação dos Primadistas foi realizada com o objetivo de promover "o resguardo das instituições sociais, políticas e religiosas" e ainda condenou o guarda Ulisses, que reagiu ao atentado.
Uma semana depois de ser absolvido, em 3 de outubro de 1963, João Valmor Marques da Rosa foi preso roubando carros. Ele integrava uma gangue que roubava carros em Porto Alegre e os vendia em Santa Catarina. De acordo com a ocorrência, já havia roubado 12 camionetes e dois jipes.
De acordo com João Batista de Melo Filho, radialista e que trabalhava na Farroupilha em 1962, não é possível se lembrar de detalhes do ataque à rádio. Mas falava-se muito em "baderneiros de direita que tentaram invadir a rádio".
Então repórter no jornal Última Hora de Porto Alegre e na TV Piratini, Marino Boeira conta que talvez o grupo anticomunista tenha escolhido a rádio porque os retransmissores eram muito potentes, e atingiriam grande parcela da população.
Mas ressalta que a escolha tenha se dado por causa da ideologia de jornalistas que lá trabalhavam. "O jornal tinha pessoas de esquerda. Pode ser que esse atentado tenha sido por causa dessas pessoas", questiona hoje.
Flávio Tavares, editor do Última Hora naquela época, também diz não recordar da invasão da rádio. Contudo, destaca que o ataque à sede da UNE no Rio de Janeiro era obra do MAC.
Atentado à UNE
Segundo reportagem publicada no jornal Última Hora em 8 de janeiro de 1962, o atentado a bala na sede da UNE no Rio de Janeiro na madrugada de 6 de janeiro teve a participação dos grupos anticomunistas ligados a Joaquim Metralha, inspiração dos Primadistas gaúchos.
"O Serviço Secreto do Exército está convencido da participação dessa Ku Klux Klan tropical no atentado a bala perpetrado contra a sede da UNE".
O Exército investigou o ataque à entidade estudantil. Vários militares estiveram envolvidos no fato. Nada aconteceu.
Sobre o atentado à sede do jornal na capital paulista, nada ficou esclarecido.