Quieto, Bolsonaro, quieto

Os donos do poder querem apenas que o ex-capitão não lhes morda a mão

Quieto, Bolsonaro, quieto

Que risco de golpe corre o Brasil? É real a ameaça, há indícios sólidos de que os militares querem tomar o poder e colocar o ex-capitão no trono? Ou os arreganhas golpistas do próprio , de seus amarra-cachorro palacianos e de alguns oficiais aposentados são blefes? A crer nas declarações das lideranças do Congresso e do Judiciário, o risco não existe e podemos ignorar os rosnados . Os comentaristas, editorialistas e articulistas da "grande" imprensa dizem o mesmo, assim como os especial istas em política do mercado financeiro . Todos estão, provavelmente, certos , nem que seja por enquanto .

Os argumentos são muitos. Bolsonaro fala barbaridades apenas para açular sua tropa e não é para levá-lo a sério. As Forças Armadas deram (ou tentaram dar) vários golpes de Estado ao longo da história , mas nunca para inventar um ditador (e não seria agora, com um capitãozinho). O mundo transformou -se dos anos 1960 para cá e pega mal um golpe militar à moda antiga. É ruim para os negócios .

Depois que recrudesceu a retórica golpista do bolsonarismo, uma parte das elites se assustou, no entanto. Foram acalmadas, com os mesmos argumentos usados na época da eleição: não haveria motivos para temer Bolsonaro, um falastrão que late, mas não morde. Nossas instituições seriam suficientemente fortes para contê-lo (daí, aliás, o motivo de terem votado nele sem dor de consciência) .Quem não acredita nisso e sempre se preocupou com o golpismo intrínseco ao bolsonarismo é a esquerda e os democratas sinceros . Mas ficaram dois anos falando sozinhos, apresentados como "alarm istas" ou "aproveitadores" , inventores de riscos imaginários.

De repente, os tempos mudaram. Não com Bolsonaro, que permaneceu onde esteve a vida inteira: orgulhoso de seu autoritarismo tosco, suas influências ideológicas obscurantistas, sua proximidade com as milícias, o militarismo e o policial ismo. Nem com a esquerda, que tampouco mudou, pois nunca teve a ilusão de que o cargo o civilizaria . Papagaio velho não aprende a falar. Quem mudou foi a direita, promovendo manifestos, editoriais de página inteira, declarações ominosas , civismo virtual. Ela agora quer dar aulas de boas maneiras à sua criatura, ensinando -a a não falar palavrões, como "ditadura ", "censura", "prender ministros do Supremo" e outras obscenidades. Porque, de resto, é apenas isso que deseja de Bolsonaro. No fundamental, ele faz o que queriam dele.

O Brasil caminha para o fundo do poço, incapaz de responder a uma gravíssima crise sanitária e econômica . Nossa construção institucional mais próxima de um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social mal sobrevive, depois de quatro anos de desmonte promovido pela dupla Temer e Bolsonaro. As regras de convivência civilizada se deterioraram completamente. Temos picaretas e idiotas destruindo anos de políticas sociais, ambientais e culturais .

Na pandemia, contabilizamos diariamente mais mortes que China, Índia, toda a Europa (incluindo a Rússia) e a África, somadas. Ou seja, o Brasil, sozinho , nos últimos dias , ultrapassa o número de mortes notificadas nos lugares em que vivem mais de 60% da população mundial, apesar de representar apenas 2,7% desta. Este é o tamanho do buraco em que nos meteram a incompetência e a irresponsabilidade do capitão e sua tralha.

Alguém quer motivos para decretar a incapacidade de Bolsonaro para governar, como aconteceu com Fernando Collor e Dilma Rousseff, e que é necessário removê-lo (até fabricando motivos, como fizeram com Dilma)? Precisa haver mais algum, além da catástrofe humanitária que experimentamos e que apenas começa? Quem se dispuser a procurar, terá muito a encontrar.

A esta altura da conversa, sempre aparece alguém dizendo que Bolsonaro "ainda tem uma base", os tais 30%,apesar de todas as pesquisas mostrarem que seu apoio efetivo mal chega à metade disso. Como se houvesse uma regra aritmética que estabelecesse o ponto em que a sociedade está autorizada a se livrar de alguém como ele. Como se consensos e maiorias não fossem formados e redefinidos no jogo democrático . A lorota dos 30 % é uma das desculpas para preservar o que interessa às elites no bolsonarismo: a ortodoxia neoliberal na política econômica e a promessa de erradicar a esquerda. Querem somente que, enquanto isso, não morda a mão do dono. Para o Brasil, todavia , um Bolsonaro de focinheira é tão nefasto quanto o que late alto.