Getúlio Vargas sobre a contrarrevolução de 1932
Getúlio Vargas sobre a contrarrevolução de 1932
Por Hora do Povo
O presidente Getúlio Vargas, no front, inspeciona a movimentação das tropas que combatem a contrarrevolução, em 1932
A carta abaixo foi enviada pelo presidente Getúlio Vargas ao general Tasso Fragoso, então chefe do Estado Maior do Exército, que pedira demissão, durante a sublevação reacionária que começara em 9 de julho de 1932.
Tasso Fragoso fora um dos jovens oficiais que, discípulos de Benjamin Constant, participaram, em 1889, do movimento de proclamação da República. Foi, além disso, um notável historiador militar, autor, entre outras obras, da História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai e de A Revolução Farroupilha (1835-1845). Em 24 de outubro de 1930, esteve entre os membros da Junta Governativa que depôs Washington Luís, último presidente da República Velha.
A importância da carta de Getúlio ao general Tasso Fragoso está em seu relato dos acontecimentos de 1932, quando a oligarquia cafeeira paulista, derrotada em 1930, tentou voltar ao poder, através de um golpe contra o governo revolucionário.
Getúlio, como o leitor poderá comprovar, desmascara os pretextos dos oligarcas contrarrevolucionários, a começar por seu suposto “constitucionalismo”
Este é, talvez, o texto mais claro de Getúlio Vargas sobre este tema. Por isso, neste 9 de julho, oferecemo-lo aos nossos leitores (C.L.).
Getúlio Vargas ao general Augusto Tasso Fragoso
“Em 20 de agosto de 1932.
Ilustre Amigo General Tasso Fragoso.
Ao receber a sua carta de 16 do corrente, pedindo exoneração da Chefia do Estado Maior do Exército, não me conformando com os motivos determinantes daquela resolução, solicitei-lhe um entendimento pessoal, para trocarmos impressões a respeito.
Na palestra que mantivemos, procurei, com sincero empenho, mostrar-lhe que as razões invocadas não deviam prevalecer e insisti pela sua permanência no posto em que, com tanto brilho e capacidade técnica, vinha servindo à Nação.
Diante das minhas ponderações, o ilustre amigo invocou, então, a necessidade de repouso, exigido pelo seu precário estado de saúde que, sobrelevando a quaisquer outras causas, não lhe permitia, como era necessário no momento, manter-se em atividade eficiente à frente do Estado Maior do Exército.
Lamentando, embora, a perda de seu valioso concurso, pela imposição das circunstâncias que a determinaram, decidi-me, finalmente, a conceder-lhe a exoneração solicitada, o que ora faço, cumprindo, ao mesmo tempo, o dever de expressar-lhe os meus melhores agradecimentos pelos inestimáveis serviços que a sua dedicação, inteligência, idoneidade moral e cultural prestaram ao Exército e ao País.
Em atenção, entretanto, ao relevo do alto cargo que vinha desempenhando, ao justo prestígio que desfruta no seio da classe militar, à destacada projeção de sua personalidade no meio social brasileiro e à lealdade de sua conduta para comigo, sinto-me obrigado a esclarecer, de minha parte, o assunto abordado pela sua carta. Nela, declara o preclaro amigo que o retinha na Chefia do Estado Maior a esperança de contribuir para o restabelecimento da paz de que tanto carecemos e, convencido de que não podia exercer a mínima influência para a terminação da luta fratricida, queria guardar coerência com a ação que desenvolvera em 24 de outubro de 1930.
Reiterando conceitos expressos verbalmente, devo dizer-lhe, antes de tudo, que, no desempenho da função de Chefe do Estado Maior, já estava cooperando para a pacificação do País, pois entendo que o melhor meio de assegurar a paz consiste em manter a ordem, reprimindo a desordem e a anarquia. Como bem sabe, o Governo Provisório foi surpreendido por uma agressão injusta e sem causas legítimas. Enfrentando semelhante agressão, o Governo apenas se defende. Tudo quanto São Paulo pedira, pela voz do povo e pelos políticos que diziam falar em seu nome, fora-lhe concedido. Nada mais tinham a alegar e, realmente, não alegaram, fazendo, afinal, as mais positivas afirmações de apoio e de colaboração pacífica com o Governo Federal, quando escusamente, preparavam a luta fratricida que hoje todos lamentamos.
O falso motivo com que pretendem justificar tão impatriótico e inglório movimento é o da constitucionalização do País. Neste ponto, impõe-se-me relembrar fatos que já se tornaram históricos. Vindo do Rio Grande, à frente de uma revolução genuinamente liberal, nas suas origens e ideologia, eu não poderia inverter os objetivos claros do movimento, tentando instituir e perpetuar um governo ditatorial. A causa principal da revolução de 1930 fora a completa falência do regime representativo vigorante, corrompido pela fraude eleitoral, estabelecida como norma, e abastardado pela irresponsabilidade do Executivo, sempre acobertada por um Congresso amorfo, nascido de eleições fraudulentas e de conchavos políticos.
Realizar nova eleição logo após a vitória, sob o império da mesma lei, do mesmo alistamento, da mesma máquina eleitoral adestrada e manejada na prática de quarenta anos de corrupção e ludíbrios dos princípios básicos das organizações democráticas, seria falsear, em absoluto, os objetivos determinantes do movimento renovador, fazendo apenas simples substituição de homens. A esse papel não me prestei, porque, consciente das responsabilidades assumidas, desejava entregar o Governo do País a quem fosse, realmente, escolhido pela soberania popular, sob o amparo de uma lei que assegurasse a liberdade do voto e garantisse a apuração autêntica dos sufrágios.
Constituiu minha preocupação constante, desde o início do Governo Provisório, preparar a Nação para governar-se a si mesma. Tive ocasião de demonstrar, em recente documento público, a inanidade do pretexto constitucionalista explorado pelos rebeldes de São Paulo, principalmente no momento em que se revoltaram. Com efeito, decretara-se o Código Eleitoral, marcara-se o dia para a eleição dos constituintes, estavam organizados os Tribunais Eleitorais, nomeados os seus funcionários, autorizadas as despesas necessárias e, por fim, postas em prática as medidas julgadas indispensáveis para iniciar e tornar mais rápido o alistamento.
Não poderíamos, logicamente, ter Constituição sem Assembleia Constituinte, esta, por sua vez, não poderia reunir-se sem prévia eleição, nem fazer eleições sem eleitores e, muito menos, eleitores sem alistamento, base indispensável para promovermos a volta do País ao regime legal. Pois bem, precisamente quando o alistamento devia ter início, os políticos paulistas, de posse de todas as funções do Governo civil e nomeado comandante da Região um general tão do agrado deles, que logo aderiu à sedição, deflagravam o mais injustificável e antipatriótico movimento armado, que a ninguém era lícito esperar. Ora, ressalta com evidência que esse movimento não era contra uma ditadura a prazo certo e com data marcada para fazer-se substituir pelos representantes eleitos da Nação, ainda mais quando os próprios paulistas se mostravam satisfeitíssimos com o Governo que se lhes dera, de tal modo que, mesmo depois de insurreicionados, mantiveram-no integralmente. Não era, também, pelo que ocorria no resto do País, que se rebelavam, porque este permanece ao lado da ordem e do Governo Provisório. Não era, ainda, para apressar a volta ao regime constitucional, porque, para tanto, faltavam apenas meses, e o meio mais expedito consistia em abreviar o alistamento, escopo claramente incompatível com uma revolução. Cabe, agora, a interrogação: — Qual, então, o objetivo do movimento sedicioso? A resposta única se impõe, logicamente: — A posse do poder caracterizada por um assalto de revanche contra a revolução de 1930.
A conclusão acima aduzida torna-se tanto mais evidente se observarmos que, apercebidos os sediciosos do isolamento em que ficaram e consequente derrota que os aguarda, começaram a expedir emissários, propondo acordos parciais, paz em separado e até ditadura militar, ora aos generais que comandam nos diversos setores, ora ao Governo Mineiro e a membros do próprio Governo Provisório.
Embora fracassadas estas tentativas, reveladoras de deslizes morais decorrentes da traição inicial, o Governo Federal, demonstrando seus propósitos pacificadores, concordou que o Dr. Maurício Cardoso, como enviado do general Flores da Cunha, cuja lealdade, firmeza e bravura emparelham-se a sentimentos generosos e magnânimos, promovesse démarches em favor da paz, dentro das seguintes condições: 1.°) deposição das armas; 2.°) anistia; 3.°) adoção de uma Constituição provisória que estabelecesse, imediatamente, as garantias peculiares ao regime normal. As fórmulas propostas pelo Dr. Maurício Cardoso foram recusadas, opondo-se-lhes exigências absurdas e irritantes. Mas, se o fim ideológico do movimento, como querem fazer acreditar os rebeldes, era a Constituição e o Governo lhes oferecia uma Constituição imediata, para vigorar, provisoriamente, até a Assembleia Constituinte reunir-se e promulgar a definitiva, por que tal recusa? É fora de dúvida, porque pretendem unicamente escalar o poder, para a satisfação de despeitos pessoais e ambições inconfessáveis.
Devia ao ilustre amigo esta demonstração das intenções dos promotores do movimento sedicioso paulista e da atitude magnânima mantida pelo Governo Provisório, com o fim de restabelecer a tranquilidade nacional e evitar o derramamento do generoso sangue brasileiro, sacrificando numa luta, que não provocamos e nos foi imposta, impatrioticamente.
Finalizando, peço aceitar a reiteração da minha melhor estima e inalterável apreço,
(a) Getúlio Vargas.”
(Extraído de Hélio Silva, “1932: A Guerra Paulista”, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1976, pp. 283-287)