Neto de Jango, uma saga de família

Neto de Jango, uma saga de família

Neto de Jango, uma saga de família

 

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Neto de Jango, uma saga de famíliaÚltimo aniversário de Jango, em 1976, em Mercedes, na Argentina | Foto: Synapse Distribution/Divulgação

Christopher Goulart é um combatente da política como memória e projeto. Nasceu em 1976, na Inglaterra, durante o exílio do pai, João Vicente. Existe apenas uma foto do presidente derrubado pelo golpe midiático-civil-militar com o neto, ainda bebê. Essa foto está na capa do livro que Christopher acaba de lançar pela Minotauro, selo da poderosa Alta Books, E manchado de sangue terás que crescer, uma vida de lutas – memorial de um neto do presidente João Goulart, deposto da presidência da República. Leitura imperdível para quem queira ver outra face da história.

Em 400 páginas, o autor conta a sua vida e a da sua família no desterro uruguaio, entre saudades, luxos, expectativas, planos, desesperanças, apostas, visitas ilustres, fazendas e festas. O relato de Christopher marca um lado luminoso e outro sombrio. Fiz uma das apresentações da obra. A outra é do escritor Alcy Cheuiche. O leitor não deixará de notar o quanto Christopher Goulart conhece a história das ditaduras do Cone Sul. Além do que guardou na memória, estudou o período. Fiz muitas viagens com ele pelo interior do Rio Grande do Sul quando publiquei meus livros Vozes da Legalidade e Jango, a vida e a morte no exílio. Conheci um jovem apaixonado pela história do avô e um profundo conhecedor dos sofrimentos pelos quais ele passou fora do Brasil.

Parte da narrativa de Christopher não deixa de ser a de uma família a deriva, abalada para sempre pelo golpe sofrido e pela impossibilidade de voltar para casa. Trecho: “Teria que conviver com aquele fato. Eu era filho de João Vicente, neto de Jango e Maria Thereza. Praticamente um trampolim para pretexto de interesses mais lucrativos e pouco nobres de tantos ‘amigos’ que surgiam. A lembrancinha que os convidados levaram na minha festa de aniversário de um ano era uma foto minha com uma frase que dizia: “Meu coração está cheinho de gente que me quer bem. Se você quer um lugarzinho pode crer que ainda tem’”. Amigos de ocasião e objetivos.

Como resultado, uma vida em permanente transição: “Como um cigano, depois do meu primeiro aniversário, perambulei por muitas outras casas. E até hoje sigo perambulando. O estilo de vida seguro do lar tradicional, estabilidade e família unida, reproduzido na televisão por alguns comerciais de margarina, esse passou muito longe da minha realidade. Na adolescência eu me revoltava com essa instabilidade. Hoje eu aceito tranquilamente os valorosos ensinamentos que esse estilo de vida leciona”.

O livro de Christopher dá filme. Tem “segredos” de família”, revelações, confissões, desabafos, tudo. O autor não se poupa nem poupa os seus. Sobre certo período da sua vida, já em Porto Alegre, ele conta: “Nesses tempos, sem nenhum amparo familiar e jogado à própria sorte no mundo, tive acesso a algumas substâncias proibidas. Maconha, a título de exemplo, era natural […] No fundo, existia um vazio dentro da minha alma”. As festas seriam um ponto de fuga: “Lamentavelmente me vi obrigado a vender alguns objetos de dentro de minha casa para ter mínimas condições de sobrevivência. Sem nenhum recurso, me dói a recordação de ter vendido para o dono de um antiquário uma sela prateada de meu avô Jango, com enfeites em ouro”. Tudo está no livro: a relação com a avó, com o pai, com a mãe.

O herdeiro de um nome famoso apresenta-se nu, de corpo inteiro, diante do leitor. A coragem de Christopher para desvelar-se é impressionante e sem autocomiseração. O cenário da ditadura e de uma época é traduzido em termos familiares e históricos: exílio, tortura, prisões, descoberta da política, patrimônio consumido, apogeu, declínio.

Em tempos de autoficções umbilicais, a realidade em tamanho natural.