Assim Israel cava sua própria ruína

Assim Israel cava sua própria ruína
Custo do terror não é apenas moral e geopolítico. O genocídio e a agressão ao Irã desgastam economia. Emergem crise na agricultura, risco de colapso de serviços públicos e êxodo de jovens. E impactos ambientais do belicismo são incalculáveis
OutrasPalavras
por Luiz Marques

Boletim Outras Palavras
Título original: Genocídio palestino, cumplicidade e autodestruição de Israel
Uma solução pacificadora em dois Estados, nos marcos de 1947, aumentaria as chances de Israel se adaptar ao colapso socioambiental em curso. Ao invés disso, o governo de Netanyahu precipita a ruína de seu país. O abismo moral do genocídio, o declínio econômico, a poluição que emana da destruição de Gaza e as bombas retaliatórias do Irã, tudo isso muito ampliado pelos impactos do rápido aquecimento regional, condenam Israel a se tornar em breve um país onde ninguém quererá ou poderá viver. Hoje, 40% dos israelenses consideram emigrar. A emigração já começou e deve se intensificar nos próximos anos.
A substituição da política pela violência está se ampliando e se intensificando. Em 2024, o Programa de Dados sobre Conflitos da Universidade de Uppsala (UCDP) registrou 61 conflitos ativos no mundo, envolvendo pelo menos um Estado, “um aumento em relação aos 59 do ano anterior e o maior número desde o início das estatísticas em 1946. Onze desses conflitos atingiram o nível de guerra, definido como um conflito que causa pelo menos 1.000 mortes relacionadas a batalhas em um ano”.i Segundo Shaun Davies, analista sênior do UCDP:ii
“Na última década, assistimos a um aumento de conflitos interestatais e 2024 registrou o maior aumento desde 1987. (…) Vivemos em uma nova era com conflitos em maior número, mais intensos e complexos, o que impõe maiores demandas à resolução de conflitos internacionais e à melhor proteção de civis”.
Essa nova era de proliferação de guerras ocorre justamente quando, mais que nunca, a humanidade precisa de muito maior cooperação global para desacelerar o aquecimento e reverter a perda de natureza. Em 2024, o orçamento militar global superou 2,7 trilhões de dólares, um aumento de 9,4% em termos reais (já descontada a inflação) em relação a 2023. É o 10o ano consecutivo de aumento e o maior aumento anual desde os anos 1990. Em 2024, os aumentos mais significativos ocorreram na Europa (+17% em média, sendo +28% na Alemanha) e no Oriente Médio (+15%, sendo +65% em Israel).iii Malgrado a falta de transparência das emissões produzidas pela engrenagem militar, as estimativas são de que ela responde por cerca de 5,5% das emissões globais de gases de efeito estufa. Se essa engrenagem fosse um país, esse “país” seria o quarto mais emissor do mundo, após apenas a China, os Estados Unidos e a Índia.iv Entre os subprodutos dessa epidemia de guerras está a crescente ruptura do Direito Internacional Humanitário e das Convenções de Genebra (1929, 1949 etc.).v Como bem resume Thomas Fletcher, Sub-Secretário-Geral da ONU para Assuntos Humanitários e Coordenador dos Serviços de Socorro de Emergência: “As estruturas construídas no século passado para nos proteger da desumanidade estão ruindo”.vi
1. Sudão e Israel
Nesse contexto de um mundo em rápida regressão civilizacional, avançam impunes os dois maiores genocídios perpetrados neste século, ambos iniciados em 2023. O primeiro está de volta a Darfur, no oeste do Sudão, após o genocídio de 2003-2005. Trata-se agora de uma guerra intestina entre generais que disputam o poder, apoiados, de um lado, pela Arábia Saudita e, de outro, pelos Emirados Árabes Unidos, no âmbito de tensões geopolíticas regionais e do controle dos recursos hídricos, das férteis terras agrícolas e das reservas de petróleo, ouro, cobre, ferro e gás natural do Sudão.vii Esse genocídio visa sobretudo os povos Fur, Zaghawa e Masalit, grupos étnicos não-árabes,viii mas o país como um todo é vitimado. Segundo as últimas estimativas, a guerra e o genocídio mataram 150 mil pessoas, forçaram o deslocamento interno de 8,6 milhões de pessoas e o deslocamento externo de outros quatro milhões. O abandono da agricultura está levando 24,6 milhões de pessoas a um estado de insegurança alimentar aguda, das quais 638 mil estão sofrendo “fome catastrófica”, ou seja, morrendo de fome.ix
O segundo genocídio, foco deste artigo, ocorre desde outubro de 2023 em Israel, sobretudo na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, e tem por vítimas os palestinos. Trata-se, nesse caso, de um genocídio bem documentado e condenado, em vão, pelo Tribunal Penal Internacional, cometido pelas forças armadas de Israel contra a população civil palestina. Omer Bartov, cidadão israelense e estadunidense, soldado em Israel nos anos 1970 e hoje professor de estudos sobre o Holocausto e genocídio na Brown University (EUA), afirma:x
“O que Israel faz em Gaza não tem precedentes no século XXI. (…) A única comparação possível é com a Nakba, ou seja, a expulsão dos palestinos em 1948. Naquela época, cerca de 750 mil palestinos foram expulsos das áreas que se tornaram o Estado de Israel. E milhares de pessoas morreram. (…) Costumávamos pensar que o que os russos faziam na Chechênia e em Grozni era terrível, mas isso é em uma escala maior. É difícil comparar com qualquer coisa. Para o século XXI, certamente não há precedentes”.
Esse genocídio sem precedentes em nosso século está se consumando com as armas, a logística e o apoio econômico e diplomático dos Estados Unidos e de vários países da Europa, bem como com a cumplicidade explícita da Comissão Europeia. Em março de 2025, em pleno recrudescimento do genocídio, a vice-presidente da Comissão europeia, Kaja Kallas, chegou ao cúmulo de fazer uma visita oficial a Israel, no âmbito da qual declarou: “É claro que somos ótimos parceiros. Em comércio e em investimentos, Israel é um parceiro muito relevante para a União Europeia e também um ator maior no crescente setor de tecnologia”.xi Em “Os últimos dias de Gaza”, Chris Hedges resume o que os “ótimos parceiros” da União Europeia estão cometendo:xii
“O genocídio está quase completo. Quando estiver concluído, terá não apenas dizimado os palestinos, mas terá também exposto a falência moral da civilização ocidental. (…) Dois milhões de pessoas estão acampadas entre os escombros ou ao ar livre. Dezenas são mortas e feridas diariamente por granadas, mísseis, drones, bombas e balas israelenses. Falta-lhes água limpa, remédios e alimentos. Chegaram a um ponto de colapso. Doentes. Feridas. Aterrorizadas. Humilhadas. Abandonadas. Destituídas. Famintas. Sem esperança”.
A essa cumplicidade ocidental, voltarei adiante. Por enquanto, é preciso ter bem presente que, até semanas antes de 7 de outubro de 2023, data do ataque mortífero do Hamas contra militares e civis israelenses, a intenção do governo de Israel nunca foi derrotar essa organização. Ao contrário. Durante anos, Netanyahu tentou usar o Hamas para enfraquecer Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina na Cisjordânia, e seus esforços para o reconhecimento do Estado da Palestina. Como afirma Tal Schneider:xiii
“Na maior parte do tempo, a política israelense consistiu em tratar a Autoridade Palestina como um fardo e o Hamas como um trunfo. (…) De acordo com diversos relatos, em uma reunião de uma facção do Likud no início de 2019, Netanyahu (…) foi citado dizendo que aqueles que se opõem a um Estado palestino deveriam apoiar a transferência de fundos para Gaza, pois manter a separação entre a Autoridade Palestina na Cisjordânia e o Hamas em Gaza impediria o estabelecimento de um Estado palestino”.
Mark Mazzetti e Ronen Bergman confirmam que durante anos, o Qatar enviou milhões de dólares para a Faixa de Gaza, fortalecendo o Hamas, e que “Netanyahu não apenas tolerou esses pagamentos, mas os encorajou”.xiv E isso, repita-se, até setembro de 2023… Netanyahu agora usa o ataque do Hamas como pretexto para pôr em prática sua real intenção: reduzir Gaza a pó,xv exterminar ou expulsar sua população desse território. Essa intenção foi abertamente proclamada por ele em uma declaração ao seu Parlamento: “O único óbvio resultado será que os habitantes de Gaza escolherão emigrar. Mas nosso problema é encontrar países que os aceitem”.xvi Também o ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, afirmou que “em alguns meses, poderemos dizer que vencemos. Gaza será totalmente destruída”.xvii Em uma mensagem na rede digital “X”, de 19 de março de 2025, um dia após o fim de uma trégua efêmera (19 de janeiro – 18 de março), o ministro da Defesa de Israel, Israel Katz, ofereceu aos palestinos a alternativa: “partir ou morrer”. Julian Fernandez e Olivier de Frouville, professores de direito internacional, denunciaram essa intenção explícita de consumar um genocídio:xviii
“Raramente na história se ouviu um alto funcionário do Estado, responsável por operações militares, expressar tão abertamente a intenção de destruir parte de um grupo humano. E nunca, até onde sabemos, tal intenção foi formulada tão claramente como na recente mensagem do ministro da Defesa israelense”.
Conforme apontado por Lawrence Wilkerson, com o genocídio e a destruição de Gaza, Israel pode também se apoderar das jazidas de gás natural no Mediterrâneo.xix Ocorre que, como se verá adiante, os planos de Netanyahu de criar uma “grande Israel” estão redundando na autodestruição de seu país.
2. Genocídio: fatos e números
Até setembro de 2023, a Faixa de Gaza concentrava uma população de cerca de 2,3 milhões de pessoas em um território de 365 km2. Para contexto, essa área equivale a apenas 24% da área do município de São Paulo (1.521 km2) e a densidade demográfica de ambas é (ou era) comparável, sendo a de Gaza, então, de cerca de 6.300 habitantes por km2. Essa população está sendo exterminada. Segundo o Euro-Med Human Rights Monitor, já no primeiro mês dos bombardeios, Israel lançou sobre a Faixa de Gaza mais de 25 mil toneladas de bombas, “o equivalente a duas bombas nucleares”.xx Até abril de 2024, foram lançadas 70 mil toneladas de bombas, mais que a soma das bombas lançadas sobre Londres, Hamburgo e Dresden na Segunda Guerra Mundial.xxi Em outubro do mesmo ano, 85 mil toneladas de bombas haviam arrasado esse território.xxii Segundo a ONU, até 29 de fevereiro de 2024, Israel já havia destruído 35% do patrimônio edificado da Faixa de Gaza e oito meses depois, mais de 66% desse patrimônio havia sido destruído ou danificado.xxiii A Figura 1 mostra que até 11 de janeiro de 2025, nove em cada 10 construções haviam sido destruídas por Israel nas quatro maiores cidades e em áreas circundantes na Faixa de Gaza.

Figura 1 – Cidades e territórios bombardeados ou demolidos por Israel até 11 de janeiro de 2025 na Faixa de Gaza. Fonte: Emma Graham-Harrison et al., “A visual guide to the destruction of Gaza”. The Guardian, 11 jan. 2025.
Israel impôs o deslocamento de mais de dois milhões de pessoas, praticamente a totalidade da população palestina, e muitas delas foram forçadas a se deslocar várias vezes.xxiv Também na Cisjordânia, o exército de Israel arrancou de suas casas e deslocou cerca de 40 mil palestinos, o maior ato de deslocamento de civis nesse território desde a guerra dos seis dias em 1967.
Qual é o balanço provisório e oficial das mortes e feridos desse genocídio? Segundo a ONU, até 18 de junho de 2025, Israel matou 55.297 e feriu 125 mil palestinos, perdendo 1.200 de seus soldados em Gaza.xxv O Escritório do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR), que verificou as fatalidades fornecidas por três fontes independentes, estimou que, durante os primeiros seis meses desse massacre, cerca de 70% das vítimas fatais identificadas eram mulheres e crianças, pois as bombas lançadas por Israel atingiam indiscriminadamente áreas muito amplas e densamente habitadas. O relatório concluía que essa ofensiva trazia níveis “sem precedentes” de violações da lei internacional, “crimes de guerra e outras possíveis atrocidades”.xxvi Ainda segundo o OHCHR, entre 18 de março e 9 de abril de 2025 “houve cerca de 224 bombardeios sobre imóveis residenciais e sobre tendas para os deslocados” em Gaza, sendo que as vítimas de 36 deles “eram unicamente mulheres e crianças”.xxvii Ademais, as forças armadas de Israel mataram centenas de agentes internacionais, funcionários da ONU e paramédicos. Em março de 2025, seus soldados mataram e enterraram numa vala comum 14 paramédicos, por estarem se movendo “de modo suspeito”, o que foi desmentido por evidências audiovisuais, conforme o jornal The Washington Post.xxviii A matança inclui jornalistas, igualmente protegidos pela lei internacional. O Committee to Protect Journalists (CPJ) denuncia que até 12 de junho de 2025, os soldados israelenses haviam matado 177 jornalistas palestinos.xxix
Ocorre que o número real de mortes palestinas é, com toda probabilidade, mais de três vezes maior do que as estimativas oficiais. Segundo cálculos de um estudo publicado na revista Lancet, Israel havia feito, até 19 de junho de 2024, mais de 180 mil vítimas fatais:xxx
“Aplicando uma estimativa conservadora de quatro mortes indiretas por cada morte direta às 37.396 mortes notificadas, não é implausível estimar que até 186.000 ou mesmo mais mortes possam ser atribuíveis ao atual conflito em Gaza. Utilizando a estimativa da população da Faixa de Gaza para 2022, de 2.375.259, isso representa a eliminação de 7,9% dessa população”.
A matança continua desde então, sendo que às mortes por bombas e balas, acrescentam-se mortes mais lentas e ainda mais cruéis por desnutrição, doenças e epidemias, dado que Israel continua bloqueando ou dificultando ao máximo qualquer assistência humanitária a essa população. Nils Adler e Farah Najjar relatam que “desde janeiro de 2024, os residentes na parte norte de Gaza têm sido forçados a sobreviver com uma média de 245 calorias por dia”.xxxi Segundo a ONU, as autoridades israelenses nada têm feito para reprimir gangues que roubam os comboios da pouca ajuda humanitária internacional consentida por Israel. Apenas em outubro de 2024, essas gangues roubaram US$ 9,5 milhões em mantimentos.xxxii Avigdor Lieberman, ex-ministro da defesa de Israel, afirmou que Netanyahu “está transferindo armas a grupos de delinquentes e de criminosos que se identificam com o Estado Islâmico”.xxxiii
3. O Estado da Palestina e a cumplicidade da Europa
Em março de 2025, 147 dos 193 Estados e territórios membros da ONU (>75%) reconhecem o Estado da Palestina, estabelecido pela ONU em novembro de 1947. A Figura 2 mostra os Estados que o reconhecem e os que não o reconhecem.

Figura 2 – Mapa dos 147 países que reconhecem o Estado da Palestina (em verde) e dos países que não o reconhecem (em cinza). Fonte: Wikipedia, “International Recognition of Palestine”, baseado em dados da ONU.
A Islândia, Suécia, Noruega, Espanha e Irlanda são exceções numa Europa obediente ao veto dos Estados Unidos ao reconhecimento da Palestina como um membro-pleno da comunidade das nações. Não a reconhecem também o Japão, a Austrália, Nova Zelândia, Mianmar e Camarões.
Esses países afrontam a comunidade internacional e o senso mais elementar de justiça. Desde 1948 e ainda mais em 1967, Israel ocupou militarmente mais e mais territórios além das fronteiras que lhe haviam sido outorgadas pela ONU em 1947, infligindo mortes e humilhação não apenas ao povo palestino, mas também aos povos do Líbano, Síria, Iêmen e Irã. Desde 1967, a Assembleia Geral da ONU adotou mais de 160 Resoluções contra Israel, exigindo seu desarmamento nuclear, o término de sua colaboração com o regime de apartheid da África do Sul e sua retirada dos territórios ocupados, bem como o fim das violações aos direitos dos palestinos.xxxiv Eis algumas delas, relativas à questão palestina:
- 19/XII/1968 (Resolução 2443): estabelece uma “Comissão Especial para Investigar as Práticas Afetando os Direitos Humanos contra o Povo Palestino” nos territórios ocupados por Israel, que negou o acesso dos funcionários da ONU a esses territórios.xxxv Em 11 de dezembro de 1969, a Resolução 2546 condenou Israel por “violações aos direitos humanos e às liberdades fundamentais” nos territórios ocupados.
- 4/XI/1969 e 5 e 15/XII/1970 (Resoluções 2628, 2727 e 2728): pressionam Israel a implementar a Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU (“o respeito pelos direitos dos palestinos é um elemento indiscutível no estabelecimento de uma paz justa e duradoura no Oriente Médio”).
- 6/XII/1971 (Resolução 194), a partir de um relatório da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), a Assembleia Geral enfatiza mais uma vez “os direitos inalienáveis do povo da Palestina” e conclama Israel a não o confinar em campos de refugiados.
- 10/XI/1975 (Resolução 3379): iguala o sionismo ao racismo.
- 5/XII/1975 (Resolução 3414): convoca sanções econômicas e um embargo de armas a Israel até que garanta os “direitos nacionais inalienáveis” dos palestinos, retirando-se de seus territórios.
- 9/XII/1976 (Resolução 31/61): reitera condenações anteriores e convoca o Conselho de Segurança a tomar “medidas efetivas” contra Israel, requerendo sanções contra o país.
- 14/VII/1979 (Resolução 452) adotada por unanimidade pelo Conselho de Segurança em sua 2.159ª reunião: “apela o governo e o povo de Israel a cessar urgentemente o estabelecimento de colônias em territórios palestinos ocupados desde 1967, incluindo Jerusalém”.
- 14/XII/1979, 5/XII/1980 e 17/XII/1981 (Resoluções 34/136, 35/110 e 36/173): exigindo a soberania permanente dos palestinos sobre os recursos naturais de seus territórios ocupados.
- 19/XII/1983 (Resolução 38/180): apela a todas as nações a suspender ou romper vínculos diplomáticos, econômicos e tecnológicos com Israel
Resoluções de mesmo teor, emanando da Assembleia Geral da ONU, repetem-se até hoje, apelando, em vão, para que o Estado de Israel recue para suas fronteiras anteriores a 1967 e reconheça os direitos dos palestinos à constituição de um Estado nacional soberano. Em 10 de maio de 2024, em uma sessão emergencial, uma Resolução dessa Assembleia exortou o Conselho de Segurança a dar uma “consideração favorável” à admissão do Estado palestino como membro pleno da ONU. E em 18 de setembro de 2024, a mesma Assembleia “votou esmagadoramente” (124 países a favor, 14 contra e 43 abstenções) uma Resolução, exigindo que Israel “ponha fim sem demora à sua presença ilegal” no Território Palestino Ocupado.xxxvi
No âmbito do ordenamento jurídico internacional, Israel é, portanto, um Estado fora da lei, um Estado pária. A percepção pública global de Israel é hoje francamente negativa. Uma pesquisa de opinião realizada pela Pew Research em 24 países mostra que, em média, apenas 29% das respostas exibiam uma visão favorável ao país, sendo que nos 10 países europeus pesquisados ela caía em média para 25%.xxxvii Uma pesquisa do YouGov em seis países da Europa ocidental (Alemanha, Dinamarca, Espanha, França, Itália e Reino Unido) mostra que em 2025 a opinião pública em relação a Israel atingiu seu ponto mais baixo desde 2022.xxxviii Na Alemanha, uma sondagem da empresa Forsa mostra que três quartos da população são contrários à exportação de armas a Israel.xxxix Gigantescas e reiteradas manifestações populares em vários países europeus demonstram solidariedade com os palestinos e indignação contra Israel. Mas seus governos, que se proclamam democracias atentas à opinião pública, observantes do ordenamento jurídico internacional e dos direitos humanos, continuam submetidos ao Diktat dos Estados Unidos. Em maio de 2025, “o Parlamento italiano votou mais uma vez contra o reconhecimento da Palestina e contra o compromisso de tomar medidas práticas para pôr fim ao genocídio em Gaza”.xl De seu lado, o presidente da França, Emmanuel Macron, realizou a façanha de bater o próprio recorde de hipocrisia, ao afirmar que “a criação de um Estado da Palestina é não apenas simplesmente um dever moral, mas uma exigência política”. Como condições para tanto, todavia, impôs a desmilitarização do Hamas e sua “não participação” a um futuro governo palestino. Como se a França pudesse se arrogar o direito de determinar quem pode ou não pode governar ou participar de um governo de outro país.xli Enfim, em inícios de março de 2025, dias antes de sua atribulada posse como primeiro-ministro da Alemanha, Friedrich Merz convidou Netanyahu a visitar seu país,xlii afrontando assim o Tribunal Penal Internacional, que o condenara por “crimes de guerra de fome como método de guerra e de direcionar intencionalmente um ataque contra a população civil; e pelos crimes contra a humanidade de assassinato, perseguição e outros atos desumanos desde pelo menos 8 de outubro de 2023 até pelo menos 20 de maio de 2024”.xliii Até 2024, a Alemanha só aumentou suas exportações de armas a Israel, como mostra a Figura 3.

Figura 3 – Principais fornecedores de armas a Israel em porcentagens, entre 2016 e 2024. Fonte: Matthew Ward Agius, “Quem são os grandes fornecedores de armas de Israel?” DW, 30 maio 2025.
Os Estados Unidos lideram o belicismo global, com um orçamento militar de US$ 997 bilhões em 2024 (+5,7% em relação a 2023), correspondente a 36,7% do orçamento militar global. Em 2016, o país se comprometeu a fornecer US$ 3,8 bilhões por ano em ajuda financeira militar a Israel entre 2019 e 2028, com parte desses recursos sendo embolsados pelo complexo industrial-militar dos próprios Estados Unidos.xliv A França e o Reino Unido são igualmente cúmplices do genocídio. Embora afirme exportar “apenas” componentes desse arsenal,xlv o governo francês foi desmascarado por um dossiê da ONG Progressive International, produzido em cooperação com outras ONGs (Palestinian Youth Movement, French Jewish Union for Peace, BDS France e Stop Arming Israel France). Segundo esse dossiê:xlvi
“A França desempenhou e continua a desempenhar um papel central no tráfico de armas para Israel, não para fins defensivos, mas para serem usadas contra o povo de Gaza e dos territórios ocupados da Cisjordânia. (…) Elas incluem mais de 15 milhões de bombas, granadas, torpedos, minas, mísseis e outras munições de guerra no valor de mais de US$ 8 milhões, bem como 1.868 peças e acessórios para lançadores de foguetes, granadas, lança-chamas, artilharia, rifles militares e rifles de caça no valor de mais de US$ 2 milhões”.
Também as empresas do Reino Unido continuam a vender a Israel tanques de guerra, bombas, granadas, torpedos, minas e mísseis, mesmo após o governo britânico suspender licenças de exportação a esse país em setembro de 2024. Segundo John MacDonald, do Labour Party:xlvii
“O governo tem mantido em segredo seu fornecimento de armas a Israel. Ele precisa finalmente se declarar em resposta a essas evidências extremamente preocupantes e suspender todas as exportações de armas britânicas para Israel, a fim de garantir que nenhuma arma de fabricação britânica seja usada nos novos e aterrorizantes planos de Netanyahu de anexar a Faixa de Gaza e realizar uma limpeza étnica no território”.
4. A cumplicidade tácita do Brasil
Nesse contexto, a hipocrisia do governo brasileiro salta aos olhos. De um lado, o Brasil reconhece desde 2010 o Estado Palestino e Lula tem sido certeiro em suas palavras:xlviii
“O que nós estamos vendo não é uma guerra entre dois exércitos preparados, em um campo de batalha, com as mesmas armas… Não! O que estamos vendo é um exército altamente profissionalizado matando mulheres e crianças indefesas na Faixa de Gaza. Isso não é uma guerra, é um genocídio”.
Os atos não acompanham essas belas palavras. O Brasil encomendou à Elbit Systems de Israel 36 veículos blindados de combate, no valor de um bilhão de reais, um contrato de importação obstado por parlamentares do PT, PDT, PCdoB, Psol e pelo embaixador Celso Amorim, assessor internacional do presidente Lula.xlix Além disso, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, em 2024 o Brasil exportou US$ 725 milhões a Israel, quase 10% a mais do que em 2023. O Brasil foi responsável pelo fornecimento de 9% do petróleo bruto importado por Israel nos primeiros nove meses dos bombardeios sobre a Faixa de Gaza.l O Brasil pode não exportar armas para Israel, mas, através da Villares Metais S/A, exporta barras de aço para a indústria bélica israelense. Em 2024, o aço foi o décimo produto mais vendido do Brasil para Israel, com valor total de quase US$ 10 milhões. Como lembra Vinícius Konchinski, “toda exportação é feita com autorização do governo federal. Basta, portanto, uma ordem de Lula para que determinados negócios sejam proibidos”.li
As universidades e a ciência não estão acima da ética. Em 6 de agosto de 2024, o Conselho Universitário da Unicamp assumiu sua parte de responsabilidade no genocídio palestino e no regime de apartheid de Israel, ao rejeitar a proposta de 160 docentes de suspensão de um convênio de cooperação com a Technion, contendo cláusulas de confidencialidade.lii A Technion se define como a “coluna dorsal” da tecnologia militar de Israel e “tem se ligado inexoravelmente à segurança do Estado desde a sua criação”.liii Infelizmente, a Unicamp não está sozinha. Também a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a Technion celebraram um Acordo de Cooperação em setembro de 2024, quase um ano após o início do genocídio.liv Além disso, “o governo federal brasileiro, a Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) possuem 15 convênios e acordos científicos com universidades israelenses”, sendo que sete deles são mantidos pela USP e três, pela UFMG.lv
5. “Efeito bumerangue”, crises ambientais e emigração: a inviabilização de Israel
Chegamos aqui ao núcleo duro deste artigo. Dominado pelo sionismo de extrema-direita, pelo nacionalismo suprematista, pelo racismo, pelo revanchismo e pela teocracia, o governo de Israel está não apenas matando a riquíssima tradição cultural judaica, mas também a viabilidade mesma dessa sociedade.
Comecemos pelas consequências de uma economia de guerra. Entre 2001 e 2021, a guerra do Afeganistão custou aos Estados Unidos US$ 2 trilhões ou quase US$ 300 milhões por dia. E muitas das consequências econômicas dessa guerra estão ainda por vir.lvi O caso é didático, pois algo bem pior está acontecendo em Israel, cuja economia está em vias de colapsar sob o peso de uma atividade militar insanamente dispendiosa, evoluindo ao mesmo tempo em Gaza, Cisjordânia, Líbano, Síria, Iêmen e agora em mais uma guerra “preventiva” contra o Irã. Não é este o espaço para analisar essa nova guerra suicida de Israel. Limito-me aqui a cinco rápidas observações:
(1) O bombardeio das centrais nucleares iranianas pode causar uma grave contaminação radioativa no Golfo Pérsico.lvii Em resposta a Trump, o Parlamento iraniano votou pelo fechamento do estreito de Ormuz, por onde passam 20 milhões de barris de petróleo por dia.lviii Se efetivado, esse fechamento causará uma crise econômica gigantesca que pode ser o ponto de não retorno de um confronto militar generalizado.
(2) Israel é a grande ameaça nuclear da região. O país não é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, tem hoje ao menos 90 ogivas de plutônio, possui material físsil para mais 100 a 200 ogivas e está aparentemente expandindo seu próprio arsenal nuclear.lix
(3) O Irã, ao contrário, é signatário desse Tratado e em março de 2025, em testemunho ao Congresso dos Estados Unidos, Tulsi Gabbard, diretora da Inteligência Nacional desse país, afirmou que o Irã “não constrói armas nucleares” e que Khamenei “não autorizou o programa de armas nucleares, que ele suspendeu em 2003”. Trata-se, segundo Piotr Smolar, de um consenso entre especialistas, referendado por Rafael Grossi, diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), que afirmou não ter provas de um esforço do Irã para a construção de uma bomba atômica .lx
(4) A agressão ao Irã tem, entre suas várias causas, desviar a atenção mundial do genocídio palestino.
(5) O primeiro-ministro da Alemanha, Friedrich Merz (já CEO da BlackStone alemã),lxi afirmou que, ao atacar o Irã, Israel faz “o trabalho sujo por nós”.lxii Para a Europa, a ilegalidade é sempre a dos outros.
Voltemos à economia de guerra de Israel. Segundo o SIPRI, em 2024 seu orçamento militar aumentou 65% em relação a 2023, atingindo US$ 46,5 bilhões, ou seja, 8,8% de seu PIB! Com exceção da Ucrânia, cujo orçamento militar alcança 34% de seu PIB, nenhum país do mundo joga no lixo das guerras uma porcentagem tão alta de seu Produto Interno Bruto. Em 23 de outubro de 2023, Bezalel Smotrich, ministro das Finanças de Israel, avaliou “os custos diretos da guerra [em Gaza] em aproximadamente 1 bilhão de shekels, o equivalente a US$ 246 milhões, por dia”.lxiii Desde outubro de 2023, essa atividade militar custou à economia e aos cofres públicos de Israel cerca de US$ 85 bilhões.lxiv Mas isso era antes do ataque ao Irã. Segundo o brigadeiro-general Re’em Aminach (reformado), ex-conselheiro financeiro das Forças Armadas de Israel, “os custos dos dois dias iniciais dos combates [contra o Irã] montaram a 5,5 bilhões de shekels (US$ 1,45 bilhão), divididos igualmente entre operações ofensivas e defensivas. Essa estimativa exclui prejuízos às propriedades privadas e consequências econômicas mais amplas”.lxv Já antes do ataque ao Irã, a economia de Israel estava em uma espiral negativa. Entre outubro de 2023 e agosto de 2024, a S&P Global Ratings, a Fitch Ratings e a Moody’s degradaram a confiabilidade de sua dívida soberana.lxvi Em maio de 2025, o Times of Israel intitulou um de seus artigos: “Os custos da guerra colocam os serviços públicos de Israel em risco de colapso”, a partir de uma advertência de Karnit Flug, ex-presidente do Banco de Israel.lxvii Em 2025, o turismo em Israel deve entrar em colapso.lxviii
Incomparavelmente mais grave e irreparável do que a crise econômica, são as perdas em vidas humanas em guerras e, sobretudo, em decorrência da devastadora crise ambiental ecológica, alimentar, sanitária e climática, apenas iniciada. A censura imposta à imprensa pelo governo de Israel impede estimativas sobre o número de vítimas da guerra contra o Irã, que entra em sua segunda semana sem perspectiva de fim.lxix Em 20 de junho, a imprensa reportava números oficiais: 657 mortos e mais de três mil feridos no Irã; 29 mortos e mais de 900 feridos em Israel.lxx Dada a insuficiência da defesa antiaérea de Israel, as vítimas israelenses devem superar em muito esse número. Desde 14 de junho, centenas de mísseis iranianos atingiram edificações militares e civis em Tel Aviv, Jerusalém, Haifa, Tamra, Rishon LeZion, Petah Tikva, Bat Yam e Beersheba, e o Ministério do Interior de Israel já classificou 5.110 israelenses como desprovidos de moradias por causa desse bombardeio retaliatório.lxxi
Isso posto, um saldo incomparavelmente maior de vítimas advirá do que se pode chamar de “efeito bumerangue” do bombardeio israelense sobre o povo palestino. Israel é um país de 21,9 mil km2, o mesmo tamanho de Sergipe e cerca da metade da área do estado do Rio de Janeiro (43,7 mil km2). Distâncias entre 80 e 120 quilômetros separam o Rio Jordão do litoral mediterrâneo. Assim sendo, toda a destruição imposta à Faixa de Gaza e ao Líbano não ficará apenas em Gaza e no Líbano. Cedo ou tarde, ela se voltará contra Israel, pois a poluição dos solos, da água e do ar (inclusive pelos milhares de cadáveres em decomposição sob os escombros dos edifícios destruídos) não conhece fronteiras. Os solos de Gaza e do sul do Líbano estão hoje saturados de metais pesados e dos resíduos de bombas incendiárias à base de fósforo branco, uma arma proibida pelo Protocolo III da Convenção das Nações Unidas sobre Certas Armas Convencionais (CCWC) em regiões com população civil.lxxii Israel, não signatária desse Protocolo III, já usou essas bombas na chamada Operation Cast Lead em Gaza (2008- 2009)lxxiii e, de resto, elas têm sido usadas também pela Ucrânia (Dragon Drone)lxxiv e pela Rússia. O fósforo branco, uma substância altamente tóxica, e os mais de 50 milhões de toneladas de detritos potencialmente tóxicos, inclusive 2,3 milhões de toneladas de amianto lançados à atmosfera até abril de 2024 pelas bombas israelenses em Gaza e no sul do Líbano já atingiram ou atingirão também a água e os solos israelenses, bem como o ar que eles inalam. Como afirma Bill Cookson, diretor do National Centre for Mesothelioma Research em Londres: “os escombros de Gaza criam um ambiente muito, muito tóxico. As pessoas sofrerão intensamente, mas também, a longo prazo, com consequências que as crianças podem carregar por toda a vida”.lxxv O mesotelioma é um tipo de câncer do mesotélio, um tecido que reveste vários órgãos humanos. Sua causa principal é a exposição ao amianto. Nathalie Rozanes reitera esse diagnóstico: “palestinos, israelenses e outros seres vivos na região continuarão a sofrer as consequências pelos anos vindouros”.lxxvi Em fevereiro de 2025, a Oxfam publicou as seguintes denúncias: (a) menos de 7% dos níveis de água pré-conflito são ainda disponíveis para Rafah e o Norte de Gaza; (b) mais de 80% de toda a rede de água e de saneamento básico de Gaza já havia então sido destruída pelas bombas israelenses e (c) das 84 estações de coleta e tratamento de esgoto, 73 haviam sido destruídas.lxxvii Repita-se: o que ocorre em Gaza não fica apenas em Gaza. A infiltração de água poluída nos lençóis freáticos e no mar, e o colapso da gestão de resíduos urbanos, aumentarão os riscos de epidemias por bactérias, vírus, fungos etc. Tudo isso ganhará outra dimensão nos próximos extremos climáticos, pois os coliformes termotolerantes reproduzem-se intensamente à temperatura de 44 °C, recorrentes em Israel. Em sua empresa de extermínio dos palestinos, Netanyahu e os seus estão condenando também os israelenses a morrer ou a adoecer por câncer, intoxicação e infecções sem precedentes.
Também a agricultura de Israel foi atingida, pois os militares tornaram inacessíveis aos agricultores israelenses os territórios próximos à Faixa de Gaza, ao Líbano e à Síria, com impactos crescentes sobre a segurança alimentar no país. Segundo Chen Herzog, economista-chefe da empresa de consultoria BDO Israel, “cerca de 30% das terras agricultáveis encontram-se em áreas de conflito, especificamente perto de Gaza e na fronteira norte. As colheitas foram grandemente impactadas”.lxxviii E é lícito se perguntar o que esses solos contaminados reservam aos futuros agricultores e consumidores israelenses.
No que se refere à emergência climática, Israel fornece um exemplo superlativo do negacionismo contemporâneo. Desde outubro de 2023, a máquina de guerra israelense causou mais de 32 milhões de toneladas de CO2-equivalente (CO2e), um montante superior às emissões anuais de 102 países.lxxix Quase 30% dessas emissões provieram do transporte em aviões e navios das 50 mil toneladas de armas fornecidas a Israel pelos Estados Unidos, armazenadas sobretudo na Europa.lxxx As piores consequências dessas emissões estão ainda por vir, mas o clima atual já tem causado secas e incêndios gravíssimos. “A área de Jerusalém tem sofrido incêndios florestais maiores, o mais grave dos quais em finais de abril [2025], quando uma onda de calor desencadeou incêndios considerados entre os piores da história de Israel”.lxxxi Em 30 de abril, o fogo destruiu cerca de oito mil hectares de florestas, levou aos hospitais 19 vítimas, fechou estradas, causou a evacuação de milhares de pessoas e obrigou o governo a declarar estado de emergência nacional. Eis os números brutais do aquecimento nesse país:
- um aquecimento médio de 1,8 oC no período 2014-2024 e de 2,8 oC nos meses de julho no período 2016-2024, ambas as medidas em relação ao período 1950-1979.lxxxii
- “nos últimos 30 anos, a temperatura em Israel aumentou a uma taxa de cerca de 0,6 oC por década, taxa essa que deve aumentar ao longo do século XXI”.lxxxiii
- “a taxa de aquecimento por década nas últimas três décadas em Israel já é o dobro da taxa de aquecimento médio global”,lxxxiv e “o ritmo do aquecimento médio em Israel triplicou nas últimas décadas”.lxxxv
No próximo decênio, mesmo sem mais aceleração do aquecimento, os israelenses sofrerão picos de calor insuportáveis, pois desde 2019 o país registra temperaturas máximas entre 46,7 oC (na região do Mar da Galileia) e 49,9 oC (nas margens do Mar Morto).lxxxvi Yosef Abramovitz, líder do Fórum Presidencial sobre o Clima, afirmou em 2023 que cerca de 2.000 israelenses morrem anualmente devido a riscos ambientais, vale dizer, “mais mortes do que as ocasionadas pela soma de atos de terrorismo, acidentes de tráfego e violência doméstica”.lxxxvii Além disso, desde 1992 o nível do Mediterrâneo oriental subiu em média 4,7 mm por ano, uma velocidade 40% maior do que a elevação média global.lxxxviii Nos próximos 20 anos, o mar ameaçará cidades, estradas e estações de dessalinização israelenses.lxxxix
O medo, a instabilidade política, a crise econômica e socioambiental, em suma, a percepção da rápida inviabilização dessa sociedade já se reflete na crescente emigração do país. Em outubro de 2024, o Jerusalem Post anunciava: “A Grande Emigração: Israel vê números sem precedentes de emigração”.xc Já em maio de 2024, o The Times of Israel publicava dados impressionantes:xci
“Quase 60.000 israelenses deixaram o país no ano passado e não retornaram – mais do dobro do número registrado em 2023. 81% eram jovens e famílias, geralmente entre 25 e 44 anos (…) E a empresa Ci Marketing descobriu que cerca de 40% dos israelenses que ainda estão aqui estão considerando partir”.
Portanto, quase 90 mil israelenses deixaram o país e não retornaram em 2022 e 2023. Dados do Israeli Population and Immigration Authority mostram que apenas entre 7 de outubro e 7 de dezembro de 2023, 470 mil israelenses deixaram o país e houve uma diminuição de 50% de judeus imigrantes.xcii Em 2023, 59% dos emigrantes haviam nascido fora de Israel (72% dos quais na ex-União Soviética) e 41% em Israel. Além disso, uma pesquisa realizada em março de 2024 pela Hebrew University revelou que 80% dos israelenses que vivem no exterior não pretendem voltar a Israel.xciii Segundo Chris Hedges, esses emigrantes “são, com frequência, as pessoas com mais alto nível de escolaridade, que tendem a ser a parte secular da sociedade”.xciv Em maio de 2024, Eugene Kandel e Ron Tzur alertaram sobre as consequências dessa emigração:xcv
“Há uma probabilidade considerável de que Israel não consiga existir como um Estado judeu soberano nas próximas décadas. (…) A locomotiva do crescimento de Israel é a inovação, e esta é impulsionada por um pequeno grupo de dezenas de milhares de pessoas em um país de 10 milhões. (…) O peso da sua emigração é imenso em comparação com o seu número”.
Enquanto isso, o governo de Israel tenta convencer seus cidadãos de que a ameaça existencial que paira sobre o país advém… dos palestinos e do Irã! Condena, assim, à morte e a sofrimento inaudito seu próprio povo em nome da sacrossanta missão de garantir a conquista final da “Terra prometida”. Já a crítica a um Estado teocrático e genocida que se torna dia a dia mais autodestrutivo é desqualificada como antissemitismo pela engrenagem sionista de difamação.
6. Estados Unidos e Europa, ávidos de guerras
Uma máxima de Antonio Gramsci, escrita em 1921, à sombra da grande catástrofe europeia, vem mais uma vez à mente: “A ilusão é a erva daninha mais tenaz da consciência coletiva: a história ensina, mas não tem alunos”.xcvi Poucos são, de fato, os alunos do que a história ensina: a política é a única via através da qual é possível obter um triunfo (mesmo relativo e provisório) do direito sobre a força; no caso presente, o direito dos judeus e palestinos a viverem em segurança em dois Estados soberanos e respeitosos dos limites geográficos estabelecidos pela ONU em 1947. Como bem sentencia Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da Comissão Internacional Independente de Inquérito da ONU sobre a Síria, “não há solução militar para uma crise política”.xcvii
Pensador de um momento em que ainda predominava o credo de que a dialética do progresso era uma lei da história, Marx afirmava, no rastro de Hegel:xcviii “A violência é a parteira de toda velha sociedade grávida de uma nova”.xcix Em nossas sociedades parturientes de um colapso socioambiental global, essa parteira tem dado à luz apenas monstros que geram monstros ainda mais abomináveis. Ao contrário da física, a história é irredutível a leis. A história é imprevisível e encerra, quando muito, lições sobre probabilidades. Vejamos algumas delas:
(1) a guerra NÃO é “a continuação da política por outros meios”, como pensava Clausewitz, um general prussiano de triste memória. A guerra é a negação da civilização (a palavra civilização deriva da palavra civil), pois implica morticínio e sofrimento indizível de populações indefesas por militares cuja profissão consiste em levar ao paroxismo a agressividade primal ínsita em nossa espécie;
(2) guerras, genocídios e ecocídios tendem a desencadear as próximas guerras, genocídios e ecocídios;
(3) a propaganda estatal e a grande imprensa são exímias em instilar ódio e em repetir a velha mentira de que a paz pode ser alcançada pela guerra. Assim, as vítimas dessa mentira tendem a considerar a “sua” específica guerra como inevitável e defensiva contra um “outro”, reduzido à encarnação de todo Mal.
“A Europa deve adotar uma mentalidade de guerra”, afirmou em 2024, Mark Rutte, secretário-geral da Otan.c Mesmo se evitado o confronto total (e terminal) proposto por Rutte, essa “mentalidade de guerra” apenas acelerará o já perigosíssimo aquecimento constatado na Europa e demais países da Otan.ci O mesmo ocorre com Israel, que, em seu delírio messiânico, aprofunda e acelera seu próprio processo de colapso moral, econômico e socioambiental.
Isso posto, estamos assistindo, ainda que tardiamente, a um sobressalto de ética e de consciência humanitária em muitos países, inclusive no nosso. Milhares de pessoas têm saído às ruas para pressionar o governo Lula a ir além da retórica, endossando na prática o Movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS),cii bem como os cinco pontos da pauta proposta pela Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), a Aliança Latinoamericana pelo Desarmamento e Justiça Social, a Comissão Justiça e Paz de Brasília (CJP-DF) e a Comissão Justiça e Paz de São Paulo (CJP –SP): (1) o imediato cessar-fogo e fim da ocupação militar em Gaza e em todos os territórios palestinos; (2) o fim do bloqueio a Gaza e a garantia de acesso irrestrito à ajuda humanitária; (3) o boicote econômico e diplomático a Israel até que cesse a violência e sejam respeitados os direitos do povo palestino; (4) a punição pelo Tribunal Penal Internacional dos responsáveis por crimes de guerra e genocídio e, principalmente, (5) o reconhecimento pleno do Estado da Palestina nas fronteiras determinadas pela ONU.ciii Esses cinco pontos são cruciais para a sobrevivência do povo palestino e, não menos, para a sobrevivência dos próprios israelenses.