Comunistas e a Nova Esquerda contra o Trabalhismo: Disputas Narrativas, Cooptação e a Verdade Histórica
Comunistas e a Nova Esquerda contra o Trabalhismo: Disputas Narrativas, Cooptação e a Verdade Histórica
DE: VINÍCIUS JUBERTE / ATRÁS
Para os olhares e ouvidos mais atentos fica bastante evidente uma retomada (ou deveria dizer reabilitação?) de figuras importantes da História do Trabalhismo pela esquerda brasileira desde 2018, com destaque para Brizola e Darcy Ribeiro, mas também vale citar o ressurgimento de Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez nos debates sobre a questão negra no Brasil, só para ficar nos principais exemplos. Algo que eu sempre digo é: Ciro Gomes pode até não se tornar presidente do Brasil, mas ele já deu uma contribuição enorme ao país ao resgatar o trabalhismo e suas lideranças históricas do ostracismo.
Quem acompanhou as eleições municipais desse ano pode se deparar, por exemplo, com um Guilherme Boulos ostentando atrás de si os três volumes da biografia de Getúlio Vargas escritas pelo jornalista Lira Neto na sua estante de livros, estrategicamente colocados para aparecer em toda e qualquer live. O famoso vídeo do debate presidencial em que Brizola chama Maluf e seus seguidores de “filhotes da ditadura” também foi utilizado por Boulos durante a campanha para falar sobre a importância dos debates, com o candidato do PSOL exaltando a figura do líder trabalhista. O que falar então sobre Benedita da Silva do PT, que nos debates defendeu o legado de Darcy e dos CIEPS, tão criticados e vilipendiados pelo próprio PT nos anos 1980 e 1990? Mesmo Manuela D’Ávila do PCdoB, mais de uma vez, exaltou as figuras trabalhistas, com destaque para Darcy.
Tudo isso pareceria normal, não fosse a luz da História que nos mostra o quanto a chamada “Nova Esquerda”, que tem como principais frutos o PT e o PSOL, e os comunistas (esses com exceção do período entre o fim dos anos 1950 e o golpe civil-militar de 1964) se empenharam durante décadas em um combate incansável contra o trabalhismo e suas lideranças. Vale sempre lembrar que a reconstrução da memória é justificada pelos interesses do presente. O sentido atribuído ao passado muda de acordo com as interpretações feitas pelos agentes sociais que produzem a memória, bem como se relacionando às condições do momento presente em que ela está sendo produzida.
Dessa forma o que se vê, na verdade, é uma tentativa de esvaziamento da História do Trabalhismo e da memória de suas lideranças, transformando-as em totens vazios de uma esquerda da qual nunca fizeram parte, negando a sua luta contra a “Nova Esquerda” social-liberal e os comunistas, na defesa de seu ideário que sempre teve como foco o desenvolvimento do Brasil guiado por um projeto que tem como cerne a questão nacional.
Nesse processo de tentativa de se reescrever a História, é importante retornarmos às fontes para colocarmos a narrativa no seu devido lugar. Durante a redemocratização dos anos 1970 e 1980 a chamada “Nova Esquerda”, que culminaria na fundação do PT, tinha como inimigas duas tradições do movimento operário brasileiro que haviam disputado entre si a hegemonia desse movimento até então: a comunista, mas principalmente, a trabalhista.
O comunismo alinhado a União Soviética já estava em crise e não tinha aquela altura nenhum nome de envergadura para disputar a hegemonia do movimento operário. Já no caso do trabalhismo, seu principal herdeiro, tido como inimigo número um pela Ditadura Militar, não só continuava na ativa, como se articulava para retornar do exílio e disputar a liderança da esquerda brasileira: Leonel Brizola. E não demorou para que a autointitulada “esquerda revolucionária” ressuscitasse na disputa política uma série de jargões contra Brizola: demagogo, pelego, manipulador, autoritário, e o principal e mais difundido deles, populista. E nunca é demais ressaltar que apesar de existirem divergências e disputas entre a “Nova Esquerda” e os comunistas, o inimigo comum de ambos eram Brizola e o trabalhismo.
Nesse combate contra a reorganização dos trabalhistas por Brizola podemos citar, por exemplo, o artigo “O fiasco do PTB” lançado nos anos 1970 pelo jornal Em Tempo, de uma corrente trotskista que participou ativamente da construção do PT. Nele podemos ler afirmações como:
“O pai do trabalhismo, Getúlio Vargas (a grande devoção de Brizola) é visto pelos operários como criador da legislação sindical fascista, e a social-democracia, por sua vez, não goza de melhores simpatias (…). O que compromete a viabilidade do PTB de reeditar um “populismo de tipo novo”.
Além de chamar a legislação social criada pelos trabalhistas de ‘fascista”, algo já refutado e, ao olhar de hoje, uma afirmação que beira o absurdo, o velho espantalho do “populismo” também retorna, como se as lideranças do trabalhismo fossem terríveis demagogos que durante décadas enganaram a classe operária, ingênua e sem capacidade de ter consciência sobre as suas próprias escolhas. Uma teoria paternalista, de cunho claramente elitista ao tratar dos trabalhadores, que sempre acusou o trabalhismo de ser…paternalista!
Vale citar também esse trecho:
“Leonel Brizola parece tentar buscar apelo em setores marginalizados e que hoje apresentam um baixíssimo ou quase nulo nível de organização. (…) As colocações da Carta de Lisboa não são claras de todo, mas é inegável que deste discurso aos marginalizados decanta um certo tipo de demagogia que pode vir a ter algum efeito junto ao lumpem-proletariado”.
O que os futuros petistas chamam de “lumpem-proletariado”, o que no jargão marxista se refere a escória da sociedade, eram na verdade quatro grupos destacados na Carta de Lisboa: as crianças abandonadas e os jovens analfabetos, os negros e os índios, as mulheres e os trabalhadores nordestinos e nortistas. O PDT foi o primeiro partido a trazer no seu programa a discussão sobre a desigualdade com recortes de gênero e etnia, muito antes dos hoje “campeões do identitarismo”, que como vimos, sequer consideravam esses grupos como dignos de consideração.
Vale citar aqui também um outro periódico desse período, o jornal Movimento, sob controle do PCdoB. Também nos anos 1970, um artigo do jornalista Carlos Azevedo, colocava em cheque o trabalhismo como uma corrente de esquerda que visava o socialismo, já que segundo ele: “para se caminhar para o verdadeiro socialismo não se pode dispensar a ortodoxia marxista, isto é, a teoria científica do socialismo”, além disso, em uma crítica também direcionada a Carta de Lisboa, o jornalista afirma, referindo-se aos grupos defendidos por ela, citados anteriormente, que “o fato de serem os mais miseráveis não significa que sejam os mais revolucionários, que tenham uma posição de vanguarda”, os chamando posteriormente de lumpem-proletariado, e arremata, do alto da sua arrogância elitista, que a intenção dos trabalhistas era se aproveitar da “inocência e ignorância” desses grupos para conseguirem votos, logo, não seriam “socialistas verdadeiros”.
E assim o jornalista segue acusando o trabalhismo: “burguês”, conciliador de classes, “partido de grandes fazendeiros como Vargas, Jango e Brizola”, além de apelar para o discurso da corrupção. O objetivo era bastante claro: derrubar uma legenda de tradição popular visando a conquista de prestígio entre a classe trabalhadora e a hegemonia sobre a mesma.
Por fim, o jornal Voz da Unidade do PCB, que foi editado entre 1980 e 1991, não ficou atrás na desqualificação de Brizola e do trabalhismo, mas dessa vez pelo fato do líder trabalhista ser muito…radical! O PCB que desde o golpe civil-militar de 1964 havia se alinhado ao MDB, apostando em uma estratégia de Frente Democrática contra a Ditadura Militar, considerava o radicalismo de Brizola como o grande responsável pelo golpe. Ainda que, evidentemente, as críticas do periódico do PCB sejam muito mais brandas do que as críticas de Em Tempo e Movimento, já que o PCB estava unido aos trabalhistas e ao governo Jango quando ocorreu o golpe, logo atacar um passado do qual claramente fez parte era tarefa muito mais difícil.
Enfim, o que fica evidente é que tanto a “Nova Esquerda” quanto os comunistas construíram durante todo o processo de abertura dos anos 1970 e 1980 uma imagem bastante negativa do trabalhismo e do seu principal herdeiro, Leonel Brizola. Isso nos traz de volta a nossa discussão sobre a esquerda brasileira em 2020. Não é difícil perceber que narrativas muito parecidas voltaram a ser usadas contra o trabalhismo desde 2018, quando Ciro Gomes fez ressurgir essa corrente política como protagonista na política nacional.
Então, na verdade, o que assistimos de 2018 pra cá não é uma reabilitação, por parte dessa esquerda, do trabalhismo e de suas lideranças históricas, mas sim uma tentativa de cooptação da História trabalhista com um fim claro: a construção de uma narrativa contra o PDT e contra sua principal liderança atual, Ciro Gomes.
De livros na estante a postagens no Facebook, nada na política acontece por acaso. Dessa forma, que tenhamos em mente duas coisas: precisamos nós, trabalhistas, cada vez mais, aprendermos sobre a nossa História e investir na formação dos nossos quadros, pra que se tenha clareza de quem somos e de quem são nossos adversários. Em segundo lugar, independente de qualquer coisa, nós somos a corrente política mais visada da política nacional, temos um alvo nas costas desde a Revolução de 1930, e atiradores não faltam, tanto pela direita quanto pela esquerda. Não é à toa que Brizola deve se revirar no túmulo toda vez que um petista, um comunista ou um pessolista desavisado (ou não) diz que Brizola revira no túmulo com alguma ação do PDT.
A eleição de 2022 já começou e a disputa de narrativas também, por isso não nos confundamos com quem sempre nos teve como inimigos e só quer se utilizar da memória e da imagem de nossas lideranças, esvaziadas, em benefício próprio. Que a verdade histórica seja uma aliada dos trabalhistas nessa jornada.
Obs: A quem interessar recomendo a leitura do artigo “As esquerdas revolucionárias, Leonel Brizola e a refundação do trabalhismo” da historiadora Michelle Reis de Macedo, que serviu de base para esse texto e se encontra no livro “A Razão Indignada: Leonel Brizola em dois tempos (1961-1964 e 1979-2004)” organizado pelos historiadores Américo Freire e Jorge Ferreira.