Como José Martí aliava "natureza" à construção de um mundo possível ao ser humano

Como José Martí aliava

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CULTURA

Como José Martí aliava "natureza" à construção de um mundo possível ao ser humano

Obra martiana destacou a necessidade de lutar pelo equilíbrio de um mundo cujo desequilíbrio anunciava seu ingresso em sua fase imperialista

GUILLERMO CASTRO H.

Diálogos do Sul Diálogos do Sul

Alto Boquete (Panamá)
 

A organização do mercado mundial como um sistema internacional ingressou em uma crise de transição para um futuro ainda indeterminado. Esse sistema constituiu-se depois da desintegração de sua prévia organização colonial ao longo da grande guerra de 1914 - 1945. O fundamental da obra martiana tomou forma entre 1875 e 1895, na transição entre ambas fases desse processo.

Não é de estranhar, portanto, que em sua plena maturidade essa obra prestasse especial atenção à necessidade de lutar pelo equilíbrio de um mundo cujo desequilíbrio anunciava seu ingresso em sua fase imperialista. A batalha por esse equilíbrio é tanto mais necessária porque esta transição tem lugar ao cabo de meio século de hegemonia neoliberal, que fez seu o apelo à luta da civilização contra a barbárie que caracterizou as vertentes colonial e oligárquica do liberalismo na segunda metade do século XIX.

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Uma parte substantiva da luta por um futuro que seja sustentável para o humano que virá se trava já em todos os campos da cultura. Ela exige encarar e transcender todas as formas do dogmatismo neoliberal, para abrir passagem à renovação das raízes do pensamento crítico em nossa América, que tem em José Martí um de seus principais expoentes, como fica evidente em particular em seu ensaio Nossa América, de 1891. Ali definiu em sua raíz o desafio que enfrentamos hoje, e o modo de encará-lo, ao advertir-nos que não se trata de uma batalha “entre a civilização e a barbárie, e sim entre a falsa erudição e a natureza”[2], descartando de uma só vez o próprio eixo do pensar oligárquico de seu tempo – e do nosso.

Esta situação demanda, assim, o domínio do pensar martiano como expressão de uma visão do mundo dotada de uma ética correspondente a sua estrutura. Esta tarefa exige ler Martí para além de sua indubitável atração imediata, para compreender o vínculo entre a atualidade do pensado em sua obra e a vigência de seu pensar no que nos toca fazer. Nesta leitura deve-se atender aos riscos do anacronismo e da fragmentação, para acessar o que é realmente essencial na obra martiana: seu compromisso com o melhoramento humano, a utilidade da virtude, e a luta pelo equilíbrio do mundo.

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Um exemplo simples destes riscos consiste em nossa reação diante de uma oração de Martí em que nos diz que o mundo “sangra sem cessar dos crimes que se cometem nele contra a natureza.” Uma leitura descontextualizada deste fragmento, escrito em 1892, tenderia a ser ecológica, e não faltaria quem proclamasse Martí como um grande precursor do ambientalismo de nosso tempo, etc.

Aqui cabe observar, primeiro, que o uso do conceito de natureza no pensar martiano é muito amplo e complexo, pois sempre concebe o natural em sua íntima relação com o social. Neste caso, o conceito é utilizado atendendo à criação das condições culturais e políticas para a luta contra o colonialismo espanhol em Cuba, um eixo fundamental do pensar martiano.

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Natureza, pátria, virtude são exemplos de simples complexidade, expressos com uma só voz

 

 

 

Deformações ao desenvolvimento humano

Visto assim, Martí se refere neste caso às deformações impostas ao desenvolvimento humano pelas sequelas culturais e morais da escravidão e do racismo, que em seu tempo constituíam um obstáculo à formação da frente patriótica necessária para concretizar aquela luta independentista. Assim se aprecia nas linhas que antecedem a citação, com a qual culmina Martí o fragmento de que fazem parte:

Vão e vem as correntes humanas pelo mundo, que hoje atropela os povos de cor que temeu ontem, e funde o ouro de suas coroas em cadeias com que atá-los ao carro do triunfo. Desdenhou um dia o saxão, e teve a menos, o trato e a amizade com o italiano ou andaluz, porque pelo moreno da cara se achava melhor que ele; e depois o andaluz e o italiano desdenham os de tez mais morena do que a sua.

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Os escravos, brancos ou negros, foram depostos em longas gerações, pela lembrança da escravidão mais do que pela culpa da cor, do direito de igualdade, na aptidão e na virtude, de seus antigos senhores. O mundo sangra sem cessar dos crimes que se cometem nele contra a natureza. E quando, com o coração cravado de espinhos, um homem ama no mundo aqueles que o negam, este homem é épico.” [3]

Estas nuances fazem parte da história de nossa cultura e, portanto, da nossa vida política. Essa riqueza já acumulada permite propor já a tarefa de identificar os conceitos fundamentais do pensar que nos ocupa. Natureza, pátria, virtude são exemplos de simples complexidade, expressos com uma só voz. Outros, como o de melhoramento humano, têm uma estrutura mais complexa. 

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Diante destas dificuldades, este processo de pesquisa deve distinguir dois planos convergentes de trabalho. O primeiro deles, vinculado à estrutura do pensar martiano, distingue entre os elementos estruturantes da visão do mundo que nos oferece a obra de Martí, e aqueles elementos estruturados por esta visão ao longo do tempo.

O estruturado expressa aqui a maior ou menor atualidade do pensado por Martí em sua circunstância. O estruturante, por sua vez, dá conta da vigência do pensar martiano na nossa época. Tal pode ser, por exemplo, a relação entre suas advertências sobre a necessidade de lutar pelo equilíbrio do mundo no período ascendente do imperialismo, e a noção deste equilíbrio como referência ativa na análise do conflito em curso entre a visão unipolar e a multipolar que caracteriza a etapa em curso no processo de transição que vivemos hoje.

 

Formação e transformação

O segundo plano refere-se ao processo de formação e transformação do pensar martiano no que decorre de seus tempos até o nosso. Os tempos de Martí – no que vai de sua passagem pelo México em 1875-1876 a seu exílio em Nova York, entre 1881 e 1895 – são os da consolidação em nossa América do Estado Liberal Oligárquico, por um lado, e por outro os do desenvolvimento da oposição liberal democrática a este Estado, que iria culminar no grande ciclo revolucionário das primeiras três décadas de nosso século XX. Como se pode imaginar, o sentido dos elementos do pensar martiano amadurece ao longo destes tempos, tornando imprescindível conhecer o alcance desse processo no que se refere a seus sentidos para os nossos tempos.

O fundamental da tarefa - como nos diz Antonio Gramsci com relação ao estudo da obra de Karl Marx -, consiste em “estudar o nascimento de uma concepção do mundo que não foi exposta sistematicamente por seu fundador”. E isto requer “reconstruir o processo de desenvolvimento intelectual do pensador”, para identificar os elementos “que se tornaram estáveis e ‘permanentes’, isto é, que foram assumidos como pensamento próprio”, pois apenas eles “são momentos essenciais do processo de desenvolvimento.” [4]

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A escala do problema ultrapassa a capacidade de um indivíduo isolado. Trata-se, na verdade, de uma tarefa de geração, que combine a abordagem interdisciplinar do problema com a organização em rede do estudo para facilitar o diálogo entre aqueles que tenham adiantado a pesquisa sobre diferentes aspectos do tema.

O Centro de Estudos Martianos de Havana, por exemplo, criou já um vasto  acervo filológico, histórico, cultural e político – ainda em processo de incremento - mediante a edição crítica das Obras Completas de José Martí que concretiza. Dispõe-se ainda da contribuição de intelectuais vinculados ao estudo da obra martiana em Cuba, nossa América e outras regiões do mundo.[5] De fato, a tarefa já está em curso. Vai-se abrindo assim o caminho para chegar a formas cada vez mais ricas da presença de Martí em nossos quefazeres, comprovando uma vez mais que fazer é, sem dúvida, a melhor forma de dizer.

Alto Boquete, Panamá, 29 de maio de 2023

 

Notas

[1] “A Gonzalo de Quesada y Benjamín Guerra. Cabo Haitiano, 10 de abril [1895]”. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. IV, 121.

[2] “Nuestra América”. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891. Ibid, VI, 17.

[3] “Rafael Serra”. Patria, 26 de marzo de 1892. Ibid, IV, 380-381.

[4] Gramsci, Antonio: Introducción a la filosofía de la praxis. Seleção e tradução de J. Solé Tura

https://marxismocritico.files.wordpress.com/2011/11/introduccion-a-la-filosofia-de-la-praxis.pdf

Gramsci, Antonio, (1999: 385) Antología. Seleção, tradução e notas de Manuel Sacristán. Siglo XXI Editores, México e Espanha. “Cuestiones de método.” Textos dos Cadernos posteriores a 1931.

[5] A esse respeito, por exemplo, Martí, José (2003): En los Estados Unidos. Periodismo de 1881 a 1892. Edição crítica. Roberto Fernández Retamar e Pedro Pablo Rodríguez. Coordenadores. Casa de las Américas. Havana.

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Guillermo Castro H. | Colunista na Diálogos do Sul.
Tradução: Ana Corbisier