Junho de 2013 não foi a raiz de todos os males, por Luís Nassif

Junho de 2013 não foi a raiz de todos os males, por Luís Nassif

Junho de 2013 não foi a raiz de todos os males, por Luís Nassif

Antes de junho de 2013, já havia uma nova militância digital, o ciberativismo, utilizando os recursos da Internet.

Luis Nassif[email protected]

 

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

 

A piada é velha, mas cabe na nossa história. O japonês foi dar a descarga na privada. Quando puxou a cordinha, explodiu a bomba de Hiroshima. Morreu, pensando que foi o causador da tragédia.

É o caso das manifestações de junho de 2013, em defesa do “passe livre”. A tentativa de imputar aos jovens organizadores todas as tragédias políticas que se seguiram, não se sustenta. Há que se ter um mínimo de contextualização histórica.

Peça 1 – A nova militância digital

Antes de junho, já havia uma nova militância digital, o ciberativismo, utilizando os recursos da Internet. Em São Paulo, no início da Internet, houve o MMM, Marcha Mundial das Mulheres, de mulheres militantes de vários países que se comunicavam através da rede.

No sítio da MMM, há uma reconstituição histórica:

“A inspiração para a criação da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) partiu de uma manifestação realizada em 1995, em Quebec, no Canadá, quando 850 mulheres marcharam 200 quilômetros, pedindo, simbolicamente, “Pão e Rosas”. No final desta ação, diversas conquistas foram alcançadas, como o aumento do salário mínimo, mais direitos para as mulheres imigrantes e apoio à economia solidária”.

 Pouco antes de junho de 2013, houve uma motociata de entregadores na marginal Tietê. E houve outras tentativas posteriores, até explodir no inesquecível movimento de ocupação das escolas, em 2016, com estudantes exigindo serem ouvidos, rompendo a relação algo autoritária com professores, ainda perdidos no novo mundo de informações.

O dossiê  “Coletivos e o ciclo de protestos dos anos 2010: reflexões sobre horizontalidade e as tecnologias digitais da informação e comunicação”, de Caio Becsi Vallengo e Marília Jahnel de Oliveira, da Universidade Federal do ABC, levanta esse período:

“Nas décadas de 1990 e 2000, a luta de resistência à globalização neoliberal conferiu caráter internacional aos movimentos sociais. Seu repertório abrangeu desde o uso pioneiro das então novas tecnologias digitais, especialmente da internet, pelo movimento zapatista, à pluralidade de táticas do movimento altermundista e organizou a resistência ao processo de globalização capitalista articulando as singularidades de lutas locais com o global através da vinculação de aspectos neoliberais encontrados em diversos territórios com os impactos negativos na vida da população”.

Peça 2 – o Movimento Passe Livre

O Movimento Passe Livre surge nessa onda. Seu inspirador foi um grande urbanista, Lúcio Gregori, Secretário de Transportes de São Paulo na gestão Luiza Erundina. Em sua gestão lançou a ideia da “Tarifa Zero”, que enfrentou muita resistência e não chegou a ser votado.

O primeiro movimento em favor da ideia foi em Salvador, em 2003, a chamada “Revolta do Buzu”. O movimento ganhou expressão devido à reação violenta da Polícia Militar.

Em 2004, em Florianópolis, defensores da tese, fecharam duas pontes que dão acesso à cidade e desestabilizaram lideranças políticas locais.

Em 2005, no Fórum Social Mundial, houve a ideia de unificar nacionalmente o movimento, proposta pelo grupo Campanha do Passe Livre de Florianópolis. Ali foi inaugurado formalmente o Movimento do Passe Livre, com princípios típicos do ciberativismo:  movimento social autônomo, apartidário, horizontal (sem hierarquia) e independente de financiamento de partidos, ONGs ou instituições.

Peça 3 – a direita ganha as redes

No início de 2013, ocorreu um novo fenômeno nas redes. Os jovens progressistas, os movimentos populares – inicialmente principais protagonistas do debate em rede – perdem espaço para o discurso de direita.

Meses antes das explosões de junho, alertei pessoalmente a presidente Dilma Rousseff, em encontro para o qual fui convidado pela então Secretária de Comunicação Helena Chagas, após artigos alertando para o que poderia vir pela frente. Dilma vivia seu momento de maior popularidade. E disse-lhe que em poucos meses sua popularidade iria despencar.

Na ocasião, tinha em mente a paralisia que tomava conta do governo. Nem imaginava que pudesse explodir algo com a intensidade ocorrida nas manifestações de 2013. Mas chamei a atenção para a perda de espaço da rapaziada. Na época, sem ideia sobre o uso dos algoritmos, atribuía a perda de protagonismo apenas à falta de bandeiras, o que era fato também.

O primeiro grande embate foi sobre os gastos da Copa do Mundo. Os críticos despejaram informações sobre a precariedade dos hospitais públicos, comparando com os estádios que estavam sendo construídos. Havia uma confusão óbvia entre gastos e financiamentos públicos.

Foi uma Copa muitíssimo bem organizada, com a criação de comitês envolvendo áreas de saúde, segurança, transportes das capitais que receberiam os jogos, mais Ministério Público e órgãos federais.

 Mas, no governo Dilma, o então Ministro dos Esportes Aldo Rebelo, já atuava como um autêntico quinta coluna, boicotando a defesa do governo. E, em cima desse boicote, houve decisões estaduais desastrosas de desapropriações e manobras para esconder a miséria dos visitantes estrangeiros.

Peça 4 – a frustração das expectativas

Há um fenômeno curioso, que certamente já foi estudado pelos especialistas em psicologia social. Pouco importa se determinada categoria melhorou de vida nos últimos anos. Seu estado de espírito é definido pelas expectativas dos próximos anos.

Era claro o que ocorreu com os metalúrgicos do ABC nos anos 70. Terminaram a década em muito melhores condições que no início. Mas as expectativas eram de anos duros pela frente. Ou seja, de interrupção da melhoria de vida. Explodiu um movimento que, para sorte do país, foi canalizado para a política graças à liderança de Lula.

O mesmo ocorreu em 2013. Havia uma nova classe média, incluída pelas políticas sociais dos anos anteriores. Mas não havia mais o sonho de crescimento, em parte pela ausência de um discurso público mobilizador, pela apatia dos partidos políticos e pelos efeitos da economia global no desaquecimento da economia interna.

Lembro-me bem de uma conversa com a Tita, nordestina dona do restaurante Canto Madalena. Ela foi ao nordeste. Os mais antigos idolatravam Lula, gratos pelo apoio dado aos pobres. Os mais jovens, não. Já se consideravam classe média e queriam mais.

Escrevi artigos na ocasião, tentando mostrar que os cidadãos pós-inclusão nada tinham a ver com os pré-inclusão. Depois que entram na classe média, passam a emular ideias e procedimentos da classe média. Tornaram-se críticos da má qualidade dos serviços públicos.

Parecia que tinha caído a ficha de Dilma para o tema. Na inodora gestão de José Eduardo Cardozo, na Justiça, havia uma Secretária do Consumidor que preparou um plano belíssimo de melhoria dos serviços públicos. O plano durou o tempo exato do dia do seu lançamento. Depois, nada mais se leu, nada mais se ouviu.

Além disso, o glorioso período de 2008 a 2012 criou uma nova geração de empreendedores, apostando que o ritmo de crescimento iria perdurar. Quando começou a crise, em 2013, começou também o processo de quebradeira e de fim de sonho. E aí, a frustração geral tem que se personalizar em uma pessoa: o presidente da República, seja qual for.

Lembro-se de um evento de resistência que fizemos, em contraponto às manifestações de rua pelo impeachment. A Laerte estava saudosista:

  • Nas diretas, o povo saía nas ruas para pedir democracia. Agora sai espalhando ódio.

A explicação era simples. Na crise dos anos 80, o presidente da República era um general; agora, era uma presidente, mulher e de esquerda.

Peça 5 – o início do movimento

O movimento começou repetindo os princípios acordados no Fórum Social Mundial. Era de jovens progressistas, em torno de uma causa social das mais relevantes, mas sem lideranças e sem envolvimento com partidos políticos.

Uma das cenas mais festejadas pela imprensa foi a de jovens do movimento expulsando manifestantes que carregavam bandeiras do PT.

A Polícia Militar investiu com uma ferocidade sem precedentes. Na época, eu tinha um escritório perto da Paulista e tive que abrir os portões para abrigar jovens fugindo da violência policial.

A violência despertou a solidariedade de outros setores. E o clima de mal-estar começou a levar para a avenida outros grupos, empregados de multinacionais, classe média alta. Sem apoio dos partidos da esquerda, apanhando da PM, sem lideranças – já que se apresentava como movimento horizontal -, o MPL perdeu o controle sobre as manifestações, que foram assumidas pela direita.

Em 18 de junho de 2013, em plena efervescência, o GGN publicou o artigo “Não tenham medo dos jovens. Apenas os escutem”.

 

“Era um oceano de jovens. No meio, os não jovens sumiram – estavam lá como lembrança de ontem, com suas convicções democráticas intocáveis, indignados com a violência policial da semana anterior, com o conservadorismo político e com a pesada herança do passado autoritário que estava por trás de cada bomba de efeito moral e cada bala de borracha atirada pela polícia contra um jovem. Mas aquele não era o lugar para pessoas maduras. As ruas de São Paulo foram o endereço dos jovens na última segunda-feira – e naquele palco, o recado que deram em cada pedaço de papel empunhado como cartaz, cada um como parte de um mosaico caótico de miríades de reivindicações e protestos, é que o sistema político está velho. Estava velho antes. Envelheceu ainda mais, com maior velocidade, nas últimas semanas em que os jovens ocuparam as ruas”.

No dia 18 de maio de 2014, insisti no tema, no artigo “O PT e o movimento dos sem partidos”.

 

“Nas manifestações de junho, a primeira reação do PT foi de quase pânico, como se intrusos ousassem questionar seu predomínio sobre as manifestações de rua. Depois, as principais lideranças entenderam o fenômeno. Mas entre entender e definir formas de abrigá-los há uma enorme distância.

Há uma dificuldade de ordem interna do partido, de conseguir se arejar, o que significa os setores tradicionais abrirem (seu) espaço para os novos atores. E outra de ordem institucional: o governo Dilma é impermeável até ao PT tradicional, mas ainda aos novos movimentos”.

Já contei a história de minha ida para Guaranésia, trabalhando no computador enquanto a companheira dirigia. Lá pelas tantas fui dar em uma página com o comentário de Arnaldo Jabor, tratando o movimento como “trinta centavos de merda”.

Disse para a Eugênia: quer apostar que, daqui a poucos dias ele começará a elogiar o movimento?”.

Peça 6 – a direita toma conta

Não foram poucos dias. Foi no dia seguinte. Em pouco tempo, o Ministério Público Federal saiu a campo contra um Projeto de Lei que impedia que atuasse nas investigações. Fechava-se o pacto com a Rede Globo. De um lado, o MPF poupava a emissora nas investigações sobre a corrupção na FIFA e na CBF. De outro, fariam a parceria para a derrubada do governo.

ONGs ligadas aos “bilionários do bem”, do Partido Democrata, e à ultradireita do Partido Republicano, também vieram se somar aos manifestantes.

No artigo “Xadrez das insurreições bolsonaristas”, de 19 de novembro de 2022,  levantamos os fatores externos.

“Em 2015, o livro “Guerras Híbridas: Das Revoluções Coloridas aos Golpes”, de Andrew Korybko, traduzido para o português pela Expressão Popular, sistematizou os pontos em comum entre as diversas “revoluções coloridas”.

Um dos diagramas mostra o funcionamento desses movimentos.

No comando da organização, há os ideólogos fornecendo o cimento que juntará todos os tijolos. Abaixo deles, os financiadores e o social – os institutos e ONGs que passaram a organizar movimentos jovens por vários países, dentro das chamadas “revoluções coloridas”.

Essas ONGs, das quais a mais notória é a Atlas Network, monta treinamentos para jovens atuarem politicamente nas redes sociais e na vida real. A partir daí geram um conjunto de informações, fatos e teorias conspiratórias que alimentam a mídia”

O artigo mostrava os braços da Atlas Network no Brasil:

Houve o caso do Viva Rio, um movimento da cidade que recebeu o apoio de uma agência de publicidade ligada ao Partido Democrata, que se especializou em estimular ciberativistas em outros países.

Passo 6 – o desfecho de tudo

Estava tudo preparado para a explosão posterior. O discurso de ódio da mídia, o jornalismo de esgoto, o ativismo político do Supremo e do MPF a partir do “mensalão”, o afastamento do PT e do governo dos movimentos populares, o início da crise mundial refletindo-se no país.

Os efeitos da incompreensão sobre os eventos de 2013 vieram depois. O midiativismo que tomou conta da política, que elegeu Bolsonaro e um grupo enorme de filhos do imbecil coletivo, eram de direita. Os jovens progressistas, precursores do ciberativismo, foram atirados ao mar. E ainda hoje pagam a conta de terem gerado o bolsonarismo.