Bolsonaro e o “golpe preventivo” às avessas

1954 não foi brincadeira. Uma tempestade perfeita se forma depois que o ministro do Trabalho João Goulart propõe um reajuste de 100% sobre o salário mínimo.

Bolsonaro e o “golpe preventivo” às avessas

Bolsonaro e o “golpe preventivo” às avessas

Claudio André* | [email protected]

 

1954 não foi brincadeira. Uma tempestade perfeita se forma depois que o ministro do Trabalho João Goulart propõe um reajuste de 100% sobre o salário mínimo. A revolta do empresariado e da ala conservadora das Forças Armadas contra a medida motiva sua demissão.

Em Copacabana, Carlos Lacerda sofre um atentado e acusa o presidente de ser o mandante, exigindo sua renúncia ou afastamento. Um golpe militar não está descartado. Na manhã de 24 de agosto de 1954, Getúlio se suicida, assumindo a presidência o vice-presidente João Café Filho.

Corta para o ano seguinte. A UDN e a ala partidarizada das Forças Armadas engolem a seco a candidatura JK-Jango e revidam com a “Carta Brandi”, uma farsa que visava ligar a candidatura de Juscelino ao contrabando de armas para milícias comunistas. JK é eleito com 35,68% (não existia segundo turno), mas há uma conspiração para afastar o Ministro da Guerra general Lott, último obstáculo antes que o Exército adira a um golpe para impedir a posse da chapa eleita.

Percebendo a conspiração, o Ministro Lott mobiliza oficiais para um “golpe preventivo” na noite do dia 10 de novembro de 1955. Cercaram o Catete, o Clube Militar e a Escola Superior de Guerra à procura do presidente interino Carlos Luz (que substituía Café Filho), mas a súcia golpista de Carlos Lacerda, temendo a iminente prisão, já tinha fugido a bordo do Cruzador Tamandaré.

Após o fracasso do golpe, Café Filho reassume a presidência, porém Lott consegue provar ao Congresso que o presidente licenciado também conspirara, o que resulta no seu afastamento da presidência. O congresso aprova estado de sítio até a posse do novo presidente, em 31 de janeiro de 1956, adiando em alguns anos o golpe que viria em 1964.

A digressão é necessária para entender o que se passa em Brasília hoje. Sem provas, dia sim e outro também, Bolsonaro diz que o sistema eleitoral brasileiro é fraudulento e defende que somente o voto impresso pode dar lisura ao pleito de 2022. Ele sonha com o “golpe preventivo” de Lott, só que às avessas: alerta para a existência de eleições sujas buscando preparar terreno para uma intervenção de alas militares completamente cooptadas por seu governo. Seu discurso encurrala as instituições, as quais só seriam legítimas se as urnas apontarem a sua vitória no próximo ano.

O sonho golpista do presidente também depende da cooptação efetiva das polícias militares estaduais, que, não sem coincidência, são responsáveis pela segurança das eleições e pelo transporte direto das urnas. Com perda de popularidade, e num momento em que o governo se vê acuado pela CPI da Covid-19, o Café Filho do Vivendas da Barra esbarrará em quantos generais Lotts até janeiro de 2023?

*Professor de Ciência Política da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) e um dos organizadores do Dicionário das Eleições (Juruá, 2020)