Presidente da SBPC defende levante pela soberania nacional
Renato Janine Ribeiro detalha os principais pontos da conferência, pautada por uma profunda reflexão sobre os 200 anos da independência do Brasil e as desigualdades
Presidente da SBPC defende levante pela soberania nacional
Renato Janine Ribeiro detalha os principais pontos da conferência, pautada por uma profunda reflexão sobre os 200 anos da independência do Brasil e as desigualdades
Jáder Rezende
O presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro - (crédito: Alex Reipert/Divulgação)
Com o tema Ciência, Independência e Soberania Nacional, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) promove, pela quarta vez em sua história, mais uma reunião anual na Universidade de Brasília (UnB). A partir do próximo domingo (24), até o dia 30, o evento reunirá representantes de sociedades científicas, autoridades e gestores do sistema nacional de ciência e tecnologia, que debaterão políticas públicas nas mais diversas áreas e difundirão os avanços da ciência para toda a população.
Em entrevista exclusiva ao Correio, o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, detalha os principais pontos da conferência, pautada por uma profunda reflexão sobre os 200 anos da independência do Brasil e as desigualdades que, desde então, imperam no país. “Os indígenas não ganharam nada com a independência, continuaram sendo explorados e oprimidos”, exemplifica.
O ex-ministro da Educação comenta ainda sobre a jamais vista fuga de cérebros para países desenvolvidos e os planos da SBPC para contribuir na redução da pobreza. Contesta os cortes orçamentários das universidades federais, que comprometem o ensino e as pesquisas científicas, a condução negacionista da pandemia, e os constantes ataques às urnas eletrônicas e à democracia. E chama a atenção das entidades estudantis e também da sociedade como um todo para que ganhem as ruas por um país melhor e mais justo. “É isso que está faltando”, sentencia.
O que o senhor destaca da próxima edição da SBPC, a quarta a ocorrer na UnB?
Será de extrema importância, pois vai refletir os 200 anos da independência do Brasil e isso vai ser o principal destaque da reunião anual. Significa, essencialmente, duas coisas: que optamos pela independência sem soberania nacional, destacar que a história da independência não deve ser somente lembrada pelo 7 de setembro em São Paulo e atuações políticas no Rio de Janeiro, que levaram à separação de Portugal. Por conta disso, vamos falar da outra colônia portuguesa que havia aqui, que era o Grão-Pará, vamos falar do Acre, que na época não se uniu ao Brasil, somente se tornou nosso em 1903, e vamos falar também sobre os indígenas, que não ganharam nada com a independência, continuaram sendo explorados e oprimidos. Enfim, abranger uma história mais completa. Outro lado é olhar para frente, não pensar na independência somente como algo que está só no passado, relevada ao que aconteceu, mas perguntar o que precisamos fazer para ter uma soberania nacional efetiva. Perguntar às várias áreas científicas como cada uma delas pode contribuir para a soberania nacional. Por exemplo, a engenharia elétrica, de que maneira a gente pode ter uma matriz energética limpa e autônoma, que contribua para o Brasil ser um país soberano, sem necessitar dos outros para essas cirurgias básicas, de que maneira isso vale para a física, química, biologia, com toda a biodiversidade brasileira, e também para a sociologia, literatura. Enfim, fazer essas perguntas para todas as áreas. E também questionar a cada um de nós se realmente estamos desempenhando o nosso seu papel pela soberania nacional.
Ciência, Independência e Soberania Nacional. Numa quadra histórica em que o país é operado por um governo piorado das versões militares dos anos 1970 na América Latina, o que se esperar desse debate?
Espera-se um compromisso com a democracia, que está muito em risco hoje no Brasil. A SBPC tem um vínculo histórico com a democracia. No tempo da ditadura, lutou pela volta do regime democrático, pelo estado de direito. Quando da constituinte, a SBPC participou das discussões sobre o que deveria constar na Constituição de 1988, sobretudo no que dizia respeito à ciência e à educação, mas também no campo social, cultura, saúde, meio ambiente, todas as áreas em que navegamos, Dessa vez, vamos reafirmar a importância da democracia, ponto crucial nesse momento em que constantemente ouvimos ameaças contra as eleições. Vamos defender eleições limpas e aprofundar a inclusão social nesse período eleitoral. Vamos, inclusive, fazer uma exposição sobre a história das urnas eletrônicas, nos posicionar. O ponto crucial é a recuperação da democracia no Brasil. A SBPC atua na defesa da democracia desde sempre e considera esse assunto um pilar absoluto. Não adianta termos verba para ciência e educação se não for para fazer do Brasil um país mais justo. Democracia é um regime que começa com base, na ideia da igualdade entre as pessoas. O voto do mais rico não vale mais que o do mais pobre e essa igualdade exige também que as pessoas excluídas historicamente encontre o seu lugar. Por isso, é muito importante termos políticas sociais para que o Brasil se torne, efetivamente, uma democracia.
Como a SBPC vê duas questões essenciais hoje no país que envolvem o meio ambiente: a Amazônia, no contexto da crise climática e o atual governo; e as mudanças na legislação que tornaram o país numa “terra sem lei” com o uso de agrotóxicos em larga escala na agricultura?
A SBPC tem uma posição muito firme com relação ao uso de agrotóxicos e na defesa do meio ambiente em seus seis biomas, a começar pelo da Amazônia e o Cerrado. É muito importante observarmos as perspectivas naturais, envolvermos as populações dessas regiões na preservação e costurarmos as riquezas de maneira científica e sustentável, não de maneira predatória e destruidora.
Como a SBPC pode contribuir para a redução da desigualdade, principalmente da fome no país?
Na medida em que a SBPC congrega mais de 170 sociedades científicas, em todas as áreas, temos condições de promover articulações dos diferentes saberes para a redução das desigualdades. As ciências humanas, por exemplo, estudam muito as desigualdades, sobretudo a sociologia. O crescimento das ciências humanas pode contribuir para determinar quais são as políticas mais adequadas nessa direção. Outra área iminentemente multidisciplinar é a saúde coletiva que, além da sua parte biológica, desenvolve pesquisas dobre como cuidar de esgotos, purificar água. Há uma parte sociológica que busca ver como as camadas mais pobres são as mais prejudicadas numa sociedade intensamente desigual como a nossa. A SBPC pretende promover discussões, sobretudo interdisciplinares, para, dessa forma, conseguir ajudar o Brasil, num futuro governo e sempre, a encontrar soluções para problemas complexos, como os que vemos agora.
Cortes orçamentários que comprometem a educação e, sobremaneira, as pesquisas nas universidades, são históricos no país. Os recentes cortes parecem que vão muito além disso e já comprometem até mesmo concessões de bolsas para estudantes carentes. Ao mesmo tempo, governo e Congresso “criam” uma PEC de “benefícios” em ano eleitoral e drenam bilhões do orçamento para cabalar votos. Como lidar com isso?
Isso é muito grave e temos que alertar a opinião pública para os riscos e para o desgaste que o Brasil está sofrendo com esse processo. O Brasil vendeu, por exemplo, a Eletrobras por R$ 30 bilhões e vai gastar esse dinheiro ou mais com essa PEC eleitoreira. Liquida-se um patrimônio importante para o país, construído ao logo de gerações, essencial para a independência energética apenas para fazer campanha eleitoral do atual presidente da república. Temos que alertar a população para que ela não caia nesses engodos, para que todos saibam que colocar em risco a cultura do Brasil, queimar a Eletrobas nos tanques de motor de combustão dos carros não é uma boa opção para o país.
E a recorrente fuga de cérebros para o exterior. Pioramos? Quais as consequências que o país pode sofrer a curto, médio e longo prazo?
É curioso que o Brasil nunca foi um país de fuga de cérebros. Comparando com Argentina e Índia — países até parecidos conosco em várias coisas, mas com uma fuga de cérebros grande —, o Brasil sempre teve menor [fuga de cérebros], mesmo em momentos muito difíceis, como quando havia poucas verbas para ciência e educação e especificamente para contratar pessoas com doutorado, como no governo Fernando Henrique Cardoso. No entanto, agora estamos vendo essa fuga de cérebros porque muitos jovens não veem perspectiva aqui. Como se pode ter perspectiva quando, com 30 anos, já com doutorado, muita gente está vivendo com uma bolsa de pós-doutorado que não garante nenhum direito trabalhista, enquanto um militar da União com um ano de trabalho já conta com período para poder aposentar e um doutor não? Isso tudo temos que mostrar, que não há futuro hoje sem investimento em ciência, tecnologia, sem pesquisa e que, da maneira que seguimos, estamos dilapidando um patrimônio importante, o humano, gente formada as custas do Brasil e que o país esta entregando de graça para países desenvolvidos.
A atuação de universidades e institutos de pesquisa durante a pandemia foi decisiva para acolhimento e tratamento de pacientes infectados, apesar do negacionismo capitaneado pelo governo federal. Essas ações poderiam ter sido mais abrangentes com o devido apoio da União?
Se tivesse havido apoio da União essas instituições teriam feito muito mais. Por exemplo, grupo de pesquisas brasileiros se empenharam em criar uma vacina nossa, enquanto Cuba, um país muito mais pobre e menor, conseguiu desenvolveu três vacinas. Nada impediria o Brasil de ter a sua vacina, mas faltou dinheiro, o governo não colocou dinheiro, não priorizou, contestou a importância das vacinas, a eficácia delas. Tudo isso trouxe uma série de problemas grandes para nós. O Brasil ficou aquém do que deveria ter feito contra a pandemia. Tivemos uma taxa de mortalidade bem superior à media mundial. As mortes ocorridas no Brasil acima do percentual mundial foram por falta de responsabilidade, de uma política oficial empenhada em deter a pandemia.
Durante o evento será lançado o livro UnB Anos 70 — Memórias do Movimento Estudantil, cuja apresentação leva a sua assinatura. Como o senhor vê a atuação dos movimento estudantis no pós-redemocratização, passando pelos governos de esquerda e chegando aos dias atuais?
Penso que eles tem atuado o quanto podem, mas seria bom que ampliassem mais essas ações, que mobilizassem mais gente. Uma coisa que está faltando hoje é o povo ir para as ruas defender os seus direitos. Isso, em parte se deve a uma perda de esperança que ocorre no país. Entre 2013 e 2018, houve uma série de promessas de salvação da pátria, bastava tirar a presidente da república que tudo seria maravilhoso. Mas nada disso aconteceu. Ao contrário, o Brasil entrou numa crise que piorou tudo. Em vez de melhorar, temos hoje uma situação de muita decepção com a politica. Então, é preciso recuperar essa expectativa. É preciso que as pessoas voltem a acreditar que podem ser senhora do seu destino. É isso que está faltando.