Aos 63 anos, Brasília é a cidade mais segregada do mundo, aponta pesquisador

Aos 63 anos, Brasília é a cidade mais segregada do mundo, aponta pesquisador

Aos 63 anos, Brasília é a cidade mais segregada do mundo, aponta pesquisador

O historiador Guilherme Lemos destaca práticas que foram usadas para afastar pessoas negras do centro

Valmir Araújo

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

 

De acordo com o pesquisador, segregação não foi acidental e esteve presente desde o planejamento da capital - Fábio Rodrigues/Agência Brasil

Em 21 de abril de 1960, a nova capital do Brasil era oficialmente inaugurada. A partir de então, Brasília passa a ser o palco principal da vida política brasileira, com presidentes democraticamente eleitos tomando posse, renúncias, tentativas de golpes de Estado, ditadura civil-militar e redemocratização.

Nesses 63 anos, Brasília atraiu pessoas de todo o país e se firmou como a terceira maior cidade brasileira, com uma população majoritariamente negra, conforme o Mapa das Desigualdades do Distrito Federal, lançado na Câmara Legislativa no dia 14 de abril.

Apesar da maioria negra, o Distrito Federal é marcado por uma forte segregação racial. É o que constata o trabalho do pesquisador Guilherme Lemos.

:: Distrito Federal é território negro, aponta Mapa das Desigualdades ::

Lemos é historiador, professor do Instituto Federal de Brasília (IFB), e cresceu em uma das cidades satélites do Distrito Federal (atualmente denominadas como regiões administrativas). Em sua pesquisa de doutorado, comparou a capital brasileira a Joanesburgo – maior cidade da África do Sul – e, em entrevista ao Brasil de Fato DF, destacou uma série de similaridades entre as duas cidades.

"O ambiente [de Joanesburgo] por vezes me lembrou Brasília. O centro branco, uma vida nesse centro que acaba depois das 18 horas, porque os trabalhadores, que são quem movimentam, vão para suas casas distantes", observou Guilherme Lemos, ao falar sobre as semelhanças de Brasília com Joanesburgo, que ficou mundialmente conhecida pela política do apartheid, que a África do Sul utilizou até 1994 para segregar a população negra.

O pesquisador destaca um dado da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que aponta Brasília como a cidade mais segregada no mundo, à frente de cidades da África do Sul e dos Estados Unidos. Segundo a pesquisa, a população negra (pretos e pardos) é de 35% no Plano Piloto (centro), sendo apenas 4,7% de pretos e 65% de brancos. Por outro lado, na Ceilândia (30 km do Plano) 65% da população é negra. Esse levantamento foi feito com base no Censo do IBGE de 2010.


Mapas da segregação racial do DF / Guilherme Lemos e Raquel Freire

"Existiu um sistema de pontuação para funcionários que poderiam ocupar o centro e um dos critérios era que a pessoa precisaria ser 'idônea', o que já possibilita essa segregação, que foi sustentada também pelo poder aquisitivo", disse Lemos sobre o processo histórico de 'divisão' de pessoas que ocorreu em Brasília.

Na contramão do que muitos propagam sobre a segregação ter sido acidental, o pesquisador traz uma série de elementos que apontam que, com a criação das cidades satélites, essa divisão social e racial esteve presente no planejamento da cidade.

Brasil de Fato DF: A primeira questão aqui que chama atenção nos dados da sua pesquisa é o contraste. O Distrito Federal é majoritariamente branco na região central e negro [preto e pardo] na maior parte das regiões administrativas. O que explica esse contraste racial? 

Guilherme Lemos: Essa realidade de Brasília faz parte de um movimento global do capitalismo tardio. Se você olhar o Brasil e o nacional desenvolvimentismo dos pós Segunda Guerra você vai encontrar semelhanças, por exemplo, do processo de desenvolvimentismo sul-africano, que eu usei para fazer a comparação no meu trabalho. Esse movimento necessitava de um planejamento das periferias e isso foi realizado tanto aqui em Brasília, com a implementação das cidades satélites, como em Joanesburgo, na África do Sul com as townships

Então podemos dizer que isso foi planejado aqui em Brasília?

O planejamento de Brasília usou o corpo técnico que planejou a segregação. Então, hora usava o termo cidades satélites, ora usava outro termo. Porque aí dentro da história do planejamento urbano existe uma diferença entre a favela e a cidade satélite. E que em inglês favela seria slum, que seria esse assentamento que surgiu de modo desordenado, diferentes daquele assentamento planejado, que seriam as townships ou satelite cities, aqui as cidades satélites.  

Então eu entendo esse planejamento como parte desse processo de capitalismo tardio que vai tentar extrair de forma mais objetiva a força de trabalho da cidade moderna.

 

Nesse modelo, se pensa na cidade no centro e no exército de reserva de trabalhadores ao redor para atuarem neste centro, mas morarem longe dele.

No Brasil esse processo só ocorre em Brasília? E como a questão racial foi pensada?

Eu pensei muito em raça durante todo o trabalho até porque Brasília se tornou um monumento desse Brasil da democracia racial, que tenta apagar a todo custo a história e as lutas no pós-abolição. Além disso, ser um pesquisador negro nascido e criado em uma satélite me fez questionar sobre a racialidade desse espaço.

Mas essa tentativa de apagamento da população negra já havia sido  executada antes na antiga Capital, que é o Rio de Janeiro, durante as reformas “Pereira Passos” para ‘limpeza’ do centro, que nada mais foi que a remoção de trabalhadores e pessoas pobres. E essas pessoas têm uma cor, que é a negra. 

No caso do Rio essa reforma parece não ter sido suficiente, daí existiu a necessidade de mais uma vez pensar uma nova capital, pensar um novo progresso e uma população que reflita um Brasil moderno. Então, a gente pode pensar Brasília como uma continuidade dessa tentativa de segregação que se tentou antes no Rio de Janeiro, mas agora sobre a hipocrisia da democracia racial.

Então, esse projeto funcionou em Brasília?

Eu comecei com a hipótese de que funcionou. E se você olha para o mapa você pensa que esse projeto segregacionista deu certo deu certo, pois hoje Brasília é, segundo a OCDE, a cidade mais segregada no mundo, ficando à frente das cidades da África do Sul e dos Estados Unidos. Porém, esse projeto também foi frustrado pela experiência dos movimentos sociais.

Essas pessoas por mais que sejam excluídas da vida, do centro de Brasília, elas criaram também outras possibilidades de existirem e resistirem. Temos vários exemplos como o dos Incansáveis Moradores de Ceilândia até os Jovens de Expressão a gente tem uma história de luta, questionamento, resistência de condições para lazer, educação que mobiliza os moradores das cidades.
 

E qual o papel do arquiteto e urbanista, Lúcio Costa, autor do projeto do Plano Piloto, nisso?

Em momentos anteriores a construção de Brasília, o Lúcio Costa fez afirmações em uma entrevista de 1928 se queixando que  toda arquitetura era uma questão de raça, que enquanto nossa população fosse essa coisa “exótica” de gente de “caras lívidas” nossa arquitetura seria “forçosamente uma coisa exótica””. Mas depois ele vai se juntar ao projeto Gilberto Freyre e vai falar que esse projeto de país moderno é o projeto da mistura.

No entanto, a gente sabe, desde Abdias Nascimento, Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez, de todas essas contradições nesse projeto Brasil que se falava em mistura, mas promovia a segregação racial.

Existe uma discussão sobre o projeto de Lúcio Costa incluir ou não as cidades satélites. O que você descobriu na sua pesquisa?

Fica no conhecimento popular sobre Brasília que as cidades satélites não foram planejadas, mas que elas foram surgindo de forma autônoma, porque não estão no plano do Lúcio Costa, eu mesmo acreditava nisso antes da pesquisa. Esse conhecimento é porque o Lúcio Costa não falava em cidade satélite, não planejava cidade satélite e para ele essas cidades surgiriam de uma força centrífuga, que as populações iriam surgir espontaneamente ao redor de Brasília.

O plano do Lúcio Costa não foi o único plano a ser utilizado durante a construção de Brasília. Existiram pelo menos outros três planos antes do plano de Lúcio de Costa para a transferência da capital. O plano do Costa ganhou o concurso e o corpo técnico que trabalhou nele também já tinha trabalhado na Comissão para Transferência da Nova Capital do Marechal José Pessoa de Albuquerque entre 1951 e 1956. Nesse plano já se previa a construção de cidades-satélites. 

Uma informação nova que eu trouxe na minha pesquisa é que o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito Filho, que trabalhou junto do urbanista Penna Firme nesse plano, antes do Lúcio Costa. Então Saturniano pensava na preservação das águas da nova capital removendo os trabalhadores e criando um cinturão verde.

Esse plano Albuquerque é aquele bem clássico onde o Penna Firme pensava o nome da cidade como Vera Cruz, que não foi executado, mas é um plano importante, porque aquele corpo técnico depois estava presente durante a construção de Brasília, como esse Saturnino. Então ele já pensava na construção de cidades satélites. Aí a gente tem várias evidências de que as cidades satélites já sendo planejadas, apesar de não estarem no plano de Costa.


O arquiteto Lúcio Costa venceu concurso para escolha do projeto de Brasília / Foto: Toninho Tavares/Agência Brasília