Pós-eleições nos EUA: disputa interna por gabinete de Biden e discurso de Trump ativo

Alex Main, diretor de política internacional nos EUA, considera que resultado evidencia "fraquezas do sistema eleitoral"

Pós-eleições nos EUA: disputa interna por gabinete de Biden e discurso de Trump ativo

Pós-eleições nos EUA: disputa interna por gabinete de Biden e discurso de Trump ativo

Alex Main, diretor de política internacional nos EUA, considera que resultado evidencia "fraquezas do sistema eleitoral"

Alex Main

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 

Apesar da aliança de Biden e Sanders, agora a liderança do Partido Democrata tem criado uma estratégia para justificar a exclusão do setor mais à esquerda na composição do futuro gabinete - WIN MCNAMEE / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP

O resultado das eleições presidenciais e legislativas nos EUA, até agora (sabendo que a contagem continua em alguns estados e haverá recontagem em pelo menos dois, Georgia e Wisconsin) pode ser sintetizado da seguinte forma:

O candidato pelo Partido Democrata, Joe Biden, e sua vice, Kamala Harris, são os ganhadores, com uma margem de vitória estreita em alguns estados-chave, como Arizona, Michigan, Pensilvânia e Georgia. No entanto, no voto popular, Biden apresenta uma vantagem de mais de 5 milhões de votos.

Os democratas tem a maioria na Câmara de Representantes do país, embora seja uma maioria menor e ainda não é possível saber se obterão uma maioria no Senado, como era esperado; será preciso ainda aguardar duas eleições para senador na Georgia, que acontecerão em um segundo turno em janeiro.

Isto é, os resultados não são os mesmos indicados pelas pesquisas eleitorais, que davam uma margem de vitória maior para os democratas, tanto na eleição presidencial quanto na disputa para o legislativo.

Estas eleições também colocam em evidência algumas das fraquezas do sistema eleitoral e do sistema político dos EUA. E não me refiro ao fato de que, em alguns dos principais estados, os resultados demoraram mais de 4 dias para serem divulgados, pois isso se deve, sobretudo, pela enorme quantidade de votos através do correio, algo sem precedente devido à pandemia. Em muitos estados, os votos enviados pelo correio só começaram a ser contados ao final do dia da eleição.

Mais grave do que isso é a inexistência de uma autoridade eleitoral centralizada – como na maioria dos países – que divulgue os resultados oficiais. Por este motivo ainda não há um ganhador oficial, o que permite que Trump e muitos dos líderes republicanos neguem a vitória de Biden.

Mais grave ainda é o fato de que, ainda que o candidato democrata tenha conquistado uma maioria esmagadora de votos, esteve a ponto de perder as eleições porque quase não obteve votos suficientes dos “grandes eleitores” (colegiados) – que determinam quem ganhará a eleição presidencial. 

Cada estado dos EUA tem um certo número de colegiados, de acordo com o número da população, e em quase todos os estados existe um sistema de “o vencedor leva tudo”, isto é, todos os votos dos grandes eleitores são determinados pelo candidato que ganhe a maioria dos votos do estado. É um sistema pouco democrático e permitiu que Trump ganhasse a eleição de 2016 apesar da Hillary Clinton ter obtido 3 milhões de votos a mais a nível nacional.

Devido a este sistema, as eleições se transformam em um jogo no qual não se trata de ganhar uma maioria de votos em alguns estados indecisos. Por isso os candidatos passaram a maioria de suas campanhas em apenas seis ou sete dos 50 estados do país.

Na disputa eleitoral deste ano, a população negra cumpriu um papel decisivo, mobilizando-se intensamente em estados-chave como Pensilvânia, Michigan e Georgia. Esta grande mobilização, sem a qual Biden e Harris não teriam ganho a eleição, foi em parte um produto do movimento Black Lives Matter [Vidas Negras Importam], contra o racismo e em defesa da justiça social. 

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Trump adotou uma posição muito agressiva contra as manifestações e, ao invés de reconhecer o problema do racismo no sistema policial e judicial, defendeu sistematicamente a polícia estadunidense. O voto massivo dos negros foi mais um voto de punição contra Trump do que um voto a favor de Biden que, nos anos 90, foi um grande promotor de leis “mão dura”, que resultaram no encarceramento de milhões de afro-americanos.

É possível reconhecer algumas características semelhantes àquelas observadas nas eleições recentes na América Latina e no Brasil, particularmente, como as campanhas de notícias falsas (fake news), com financiamento, através das redes sociais. 

No caso dos EUA, houve uma grande campanha de afirmação de que teve fraude, de que os democratas roubaram as eleições, algo semelhante às acusações de fraude, sem fundamento, que circularam nas últimas eleições na Bolívia, com a diferença de que a tese de fraude nos EUA não foi promovida pelos grandes meios de comunicação.

Essa campanha de desinformação só teve impacto no campo republicano. Uma pesquisa realizada recentemente indica que 90% dos democratas consideram que as eleições foram limpas, enquanto 70% dos republicanos consideram que o pleito não foi justo nem livre.

Estes dados não são uma novidade, já que Trump sabia muito bem que seriam eleições difíceis para sua gestão e por isso começou a dizer, há mais de seis meses, que os votos pelo correio não eram confiáveis, mesmo sabendo que historicamente os votos pelo correio beneficiam os eleitores democratas. E por que? Porque os trabalhadores de baixa renda, que costuma votar no Partido Democrata, enfrentam dificuldades para votar no dia da eleição, realizada sempre numa terça-feira – isto é, num dia normal de trabalho.

Neste ano, devido à pandemia, o país teve muitos mais votos pelo correio do que nas eleições anteriores, já que neste pleito mais de dois terços dos eleitores escolheram esta modalidade de voto. E, de fato, a maioria destes votos favoreceu os democratas. Trump sabia muito bem o que estava fazendo quando decidiu desqualificar os votos pelo correio.

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E o que acontece agora?

Grande parte da elite dos Estados Unidos está voltando à política tradicional do país. Isto é, sem um líder instável e imprevisível como Trump e mantendo à margem do cenário político qualquer movimento a favor de mudanças estruturais. Joe Biden representa perfeitamente o status quo que existia antes de Trump.

Apesar dos movimentos que defendem mudanças estruturais – na saúde, no sistema judicial/policial, impostos e direitos trabalhistas – serem apoiados por uma grande parte dos estadunidenses, sobretudo os mais jovens (que em muitos casos se declaram a favor do socialismo), a elite e seus soldados que lideram o Partido Democrata dedicaram seus esforços para manter os líderes associados a estes movimentos à margem do projeto de Biden. É o caso, por exemplo, de figuras do partido como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, entre outros.

Estamos vendo neste momento a conformação de grupos de transição, encarregados de escolher as pessoas que vão dirigir os ministérios e as agências públicas do governo Biden e muitos vêm dos grandes setores capitalistas, o setor tecnológico do Vale do Silício está particularmente bem representado.

Os nomes mais cotados para liderar os futuros ministérios de Biden são quase todos da política tradicional e do setor empresarial e desvinculados dos setores progressistas do partido democrata. Isso tampouco representa uma novidade, já que estes setores têm laços estreitos com a liderança democrata e ajudaram a financiar a campanha do presidente eleito.

Ainda que uma aliança entre Biden e Sanders tenha sido conformada em junho, agora a liderança do partido tem criado uma estratégia para justificar a exclusão do setor mais à esquerda na composição do futuro gabinete e na elaboração de políticas.

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Líderes moderados do Partido Democrata estão responsabilizando a esquerda do partido pelo resultado medíocre nas eleições, alegando que as propostas progressistas que apoiam a criação de um sistema público universal de saúde, de acesso universal à educação, a reforma policial geraram uma rejeição nacional. 

No entanto, as pesquisas demonstram que estas propostas contam com bastante apoio da população. A esquerda do partido, por sua vez, afirma que, pelo contrário, são o centrismo e o neoliberalismo de Biden e sua campanha que teriam gerado a rejeição popular e impedido uma vitória mais decisiva.

Outra lição que a liderança democrata está tirando destas eleições tem uma grave consequência para a política dos EUA para a América Latina, pois estão preocupados com a perda de votos no estado da Flórida, que conta com 29 colegiados. Muitos consideram que Trump ganhou graças ao voto da diáspora cubana e venezuelana neste estado, que costuma apoiar políticas intervencionistas agressivas contra a esquerda latino-americana.

Os democratas sempre disputaram com os republicanos o voto destas comunidades e agora a lição que tiraram é de que é preciso ser ainda mais agressivo no ataque contra os governos de esquerda. Combinando isso ao fato de que a política imperialista dos EUA sempre foi oposta à esquerda latino-americana, significa que há pouca esperança de que a política de Biden para a América Latina seja muito diferente da de Trump.

Enquanto isso, o atual presidente está longe de ter sua vida política enterrada, já que sua base continua muito mobilizada. Como mencionado anteriormente, as pesquisas indicam que 70% dos republicanos consideram que houve fraude. A liderança de seu partido, apesar de não gostar de Trump pelo fato de não poder controlá-lo e se opor a certos aspectos de sua política neoliberal e acordos de livre comércio, são obrigados a apoia-lo para não perder sua base.

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Desta forma, o programa racista, xenofóbico, ultranacionalista e repressor de Trump continua sendo o programa dos republicanas. Diante disso, Biden e os líderes democratas propõem o modelo "business as usual", isto é, a política tradicional imperialista, neoliberal e contra os trabalhadores. Entre as duas opções, é provável que uma grande parte da classe trabalhadora dos EUA escolha o programa de Trump ou de Biden e outra parte não se mobilize por nenhum dos dois; as comunidades negras, latinas e os trabalhadores não se mobilizarão novamente em defesa dos democratas se continuarem sendo ignorados, excluídos e abandonados.

Mas a ala progressista e de esquerda do partido de Biden é mais forte do que nunca, e nos próximos meses veremos uma grande batalha entre esta ala e a liderança do partido para determinar qual será a agenda nacional dos democratas. Se os moderados ganharem esta batalha interna, é muito provável que o populismo ultradireitista e neofascista volte ao poder em um futuro próximo.

*Alex Main é diretor de Política Internacional do Centro de Pesquisa em Economia e Política (CEPR na sigla em inglês), uma organização sem fins lucrativos com sede em Washington.

Edição: Luiza Mançano