O Sabor Clandestino - Maria Prestes 1

Através de pequenas crônicas, com apoio editorial do meu filho Luiz Carlos, vou apresentar momentos do meu exílio na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), entre os anos de 1970 e 1979

O Sabor Clandestino - Maria Prestes 1

O Sabor Clandestino - Maria Prestes 1

 

 

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O Sabor Clandestino - Maria Prestes 1

Luiz Carlos Prestes e Maria Prestes

O Sabor Clandestino

de Maria Prestes

Série: "O Sabor Clandestino de Maria Prestes"

INTRODUÇÃO

Por Maria Prestes

Através de pequenas crônicas, com apoio editorial do meu filho Luiz Carlos, vou apresentar momentos do meu exílio na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), entre os anos de 1970 e 1979. Quando deixamos para trás a casa onde vivíamos em São Paulo e partimos para Moscou. Nossos móveis ficaram aos cuidados do Miguel Costa Júnior, filho do grande General da Coluna Prestes, amigo do Velho desde os anos 1920. Levamos poucas roupas, muitos discos de vinil com música brasileira e algumas bugigangas. Tivemos que sair do Brasil porque começamos a ser perseguidos após o golpe militar que destituiu o presidente Jango Goulart, em 1964.

Praça Vermelha, Moscou, Capital da Rússia, ex-União Soviética

Ainda hoje é com dor que lembro do exército invadindo a nossa residência e levando os nossos livros para um terreno baldio, onde foram queimados. Aqueles milicos não gostavam de cultura! Qual seria a justificativa para tocar fogo em obras históricas, como as do Marques do Pombal, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Fiodor Dostoievski, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Dias Gomes? Porque incinerar livros didáticos, enciclopédias e obras científicas? Entendo que desejavam destruir publicações sobre o comunismo e o socialismo, mas juntaram tudo numa mesma fogueira. Após o golpe nossa casa passou a ser vigiada a partir de uma residência do outro lado da rua. Fotografavam aqueles que entravam e saíam, fichavam quem ia nos visitar. Infelizmente, aquela nossa casa foi demolida, tombou frente à especulação imobiliária. Sempre que ia a São Paulo gostava de passar por lá.

Claro que vou comentar um pouco sobre nossa escala em Roma, onde o Partido Comunista Italiano (PCI) nos recebeu, e sobre os camaradas que providenciaram o nosso transporte terrestre e hotel. Foram dez dias nos quais tive a oportunidade para conhecer os museus e as catedrais da capital italiana acompanhada de meus nove filhos. A Praça de São Pedro e o Vaticano me espantaram pelo acúmulo de riqueza. As pinturas de Michelangelo na Capela Sistina e sua escultura de Moisés, na Basílica de São Pedro Acorrentado, são obras que ficaram na memória. Os jardins me comoveram, porque percebi que muitos deles eram cobertos de louro! No Brasil sempre usei o louro na culinária; na Itália descobri que com esta planta ornamentavam jardins.

Fontana di Trevi - A Fonte dos Desejos, Roma, Itália

Era junho de 1970. A cidade de Roma vivia a euforia da Copa do Mundo de Futebol, e os países favoritos eram o Brasil e a Itália. Meus filhos mais velhos - Pedro, Paulo e João - só falavam em futebol! Em todos os lugares que chegávamos os italianos queriam saber do Tostão. As visitas ao Coliseu e a Fonte dos Desejos me fizeram sentir como se estivesse dentro de um filme com Marcello Mastroianni, Gina Lollobrigida e Sofia Loren. Um filme de Fellini, Rossellini, De Sica ou Bertolucci.

Pouco depois chegávamos em Moscou, acreditando que em um ano ou dois voltaríamos para o Brasil. Lá descobrimos o que era viver no exílio. Lá conheci, vivi e participei ativamente do chamado socialismo real da União Soviética – um regime que nunca foi nenhum mar de rosas, que certamente tinha defeitos, mas que por outro lado oferecia educação e trabalho para toda a sua imensa população. O governo socialista criava condições para que todos os trabalhadores tivessem sua casa para morar. As creches, escolas e universidades eram gratuitas, e o horário escolar era integral, das 7h às 17h, com alimentação, lazer e apoio para as crianças que voltavam para casa com as lições do dia seguinte feitas.

Durante todos os anos de exílio nossa família teve o direito a frequentar a Clínica Geral nº1, que atendia o governo soviético, autoridades e artistas. Nos eram exigidos exames periódicos, de seis em seis meses, e, caso não fossemos até a clínica, os médicos vinham até nossa casa. Sem dúvida um privilégio! Das nossas janelas víamos a rua Gorki, hoje rua Tveskaya, e ao longe a Praça Vermelha junto às torres do Kremlin. Gorki foi um grande escritor russo, autor de obras fundamentais como: ”Varenka Olessova”, “Pequenos Burgueses” e a “Mãe”.

Rio Moscou

O rio Moscou, que corta toda a cidade, tem passeios em barcos turísticos que oferecem paisagens únicas. Por sua vez, as estações do metrô que cortam os subterrâneos, são luxuosas. Como disse Stalin, elas foram concebidas para serem “Palácios do Povo”. Cada uma tem características arquitetônicas e artísticas próprias. Uma homenageia o esporte, a outra a aviação, tem aquela que retrata a Revolução Socialista de 1917, e outra dedicada aos camponeses. A imagem do revolucionário Vladimir Lênin era fixada por toda parte!

A cidade de Moscou do meu exílio tem muitas praças, muitas igrejas e, em especial, o jardim Alekssandrovsky do Kremlin - sempre tomado de tulipas com uma variedade multicolor. A catedral de São Basílio é uma das igrejas mais lindas do mundo. Ela foi construída por ordem do tzar Ivan, o Terrível, no século XVI. Dois arquitetos, Barma e Postnik, realizaram o projeto. Dizem que Ivan ordenou para que fossem cegados, assim não construiriam outra obra tão maravilhosa. Hoje, muitos historiadores afirmam que isso não é verdade, pois um dos dois arquitetos participou da realização de outras construções posteriormente. Aqui no ocidente sempre veem os russos através da ótica da violência. Com os anos constatei que isso é feito sistematicamente com a intenção de afastar o mundo daquele país maravilhoso.

Destaco nestas crônicas as viagens que fazíamos nos meses de junho e julho para as casas de repouso do Mar Negro. Para as cidades de Yalta, Sochi, Adler e Sukhumi, quando certa vez nos hospedamos numa antiga residência do Stalin. Dedico um espaço especial à visita ao Azerbaijão, hoje um país independente.

Aquela região do Cáucaso contrasta com a da Sibéria, que conheci em duas ocasiões, no verão e no inverno. Antecipo que peguei a temperatura 50 graus abaixo de zero! Pude sentir as dificuldades que o frio impõe. No verão, passeando de lancha pelo lago Baikal, observando as montanhas com os picos de neve, para mim era estranho saber que o verão de 35ºC em poucos meses acabaria e tudo ficaria coberto de neve. Comi um peixe que só existe naquele lago, que é pescado na profundidade de 300 metros, o Peixe-Rei, uma espécie de esturjão do qual extraem o caviar preto. Atravessei infinitos bosques de berioscas e pinheiros, vi muitas árvores cobertas de flores, toquei nas águas geladas. A profundidade do lago Baikal, que é o lago com a maior concentração de água doce do mundo, varia entre 700 a 1.600 metros.

Luiz Carlos Prestes e Fidel Castro - década de 1970

A minha primeira viagem a Sibéria foi em fevereiro de 1964, antes do golpe militar, quando visitei a URSS com o Velho. Ele tinha uma missão secreta. Iria para Cuba conversar com o Fidel Castro, transmitir uma mensagem do presidente Jango Goulart. Eu, que ficaria aguardando sua volta, fui convidada a conhecer o interior da Rússia. As notícias sobre a nossa visita foram publicadas de tal maneira que dava a impressão de que eu e o Velho estávamos viajando juntos. Pois, ninguém deveria saber da ponte aérea que ele estava fazendo: Moscou-Havana-Moscou.

Quando meu companheiro voltou fomos juntos a Volgogrado, debaixo de um frio de 22ºC negativos. Foi a minha primeira viagem de trem. Cabine aquecida, paisagens brancas de neve, silenciosas, e um serviço simples, mas com a saborosa sopa bulhión.

Sopa tradicional russa - BULHIÓN

Durante as minhas viagens nunca fiz anotações. Como teriam sido interessante esses registros! Seriam guardados os nomes dos nossos anfitriões generosos como aqueles de Rostov, onde visitei uma fábrica de papelão. A madeira vinha pelo rio, entrava em um canal, era processada e do outro lado saía o papel que era embalado. Essas viagens pela União Soviética foram muito importantes para mim, uma nordestina que trabalhou no roçado, quebrando milho, batendo feijão em lajedo, pescando piaba e camarão no Recife. Eu desbravei um outro mundo onde as estações do ano são muito bem definidas, diferente do nosso Brasil, onde temos sol o ano inteiro. Não fiz anotações porque como militante comunista, desde criança, aprendi com o meu pai que nossa obrigação é gravar tudo na memória. Mas hoje nos meus 90 anos sinto que começo a fraquejar e esquecer alguns detalhes. Penso que meu pai me perdoaria.

Em Volgogrado visitamos o complexo histórico da Batalha de Stalingrado, que tem como centro a escultura gigantesca da Mãe Pátria, de 85 metros de altura. Nas vitrines as antigas, armas e roupas dos soldados soviéticos, bem como objetos que foram confiscados dos soldados alemães nazistas após a rendição, são fragmentos da Grande Guerra Patriótica.

Visitei uma indústria de estruturas metálicas. Ao saberem, através do Velho, que naquele dois de fevereiro era meu aniversário de 34 anos, me presentearam com uma imagem de Lênin que guardo até hoje. Fiquei surpresa e disse que tinha até esquecido do meu dia. Quando o tradutor passou para o russo minhas palavras, a operária perguntou: “Zabíla? Kak zabíla?” (“Esqueceu, como esqueceu?”). Ela pediu para eu não fazer cerimônias. Naquele momento, descobri que a palavra “zabíla” significava em russo “esquecida”. A operária soviética deu boas gargalhadas quando lhe contei que Zabíla para mim era o nome da minha tia por parte de pai. Essa tia querida morava em Poção, município do interior de Pernambuco.

Monumento à Mãe Pátria - Volvogrado

Em todas as cidades soviéticas existiam monumentos que retratavam o sofrimento daqueles que perderam suas mães e pais, filhos e netos durante a Grande Guerra Patriótica. Nos anos de exílio visitei os arredores de Moscou. Também o bairro Zelionograd, um apêndice da capital que fora erguido para centralizar núcleos de desenvolvimento de novas tecnologias na área eletrônica e de cibernética. Nas aldeias, tive a oportunidade de ver como o russo ama a terra. Morando em casas humildes, eles criavam hortas e pomares nos pequenos pedaços de terra de que dispunham. Plantações de maçã, pera, pêssego, uva, pepino, batata, beterraba, salsa, cebolinha e morangos. Com minha origem camponesa, fiquei intrigada de como aquelas pessoas tiravam tudo aquilo da terra com tanta rapidez durante o verão.

Por menor que seja o terreno, eles trabalham desde que o inverno termina no mês de março. Eles vão com os seus apetrechos e roupas apropriadas para o clima frio, morando em casas de madeira que mais parecem cabanas, muitas sem água ou luz, com banheiros pequenos e acomodações precárias. Mas todos ficam felizes pela oportunidade de poder colocar a mão na terra, preparar conservas de frutas, hortaliças e legumes para o inverno. Nessas ocasiões, conheci muitas flores e frutas silvestres como a landichzemleníka, cogumelos variados, smorodina, tulipas e as mais diferentes árvores exóticas. Pude ver esquilos comendo nozes!

Da cabana de Lênin às comidas típicas

Muitas vezes estive em Leningrado, hoje São Petersburgo. Cidade que se diferencia de toda Rússia pela sua originalidade arquitetônica ocidental. Foi interessante conhecer os lugares relacionados com a vida e luta de Lenin, como, por exemplo, a cabana onde ele se escondeu durante as perseguições políticas antes da revolução. Ali, lembrei dos aparelhos clandestinos onde me escondi com o Velho nos anos 1950. Vivíamos uma vida tão humilde como a Lênin em sua cabana.

O Cruzador Aurora, que deu o tiro de festim para sinalizar o início da Revolução Socialista em 1917, continua na margem do rio Neva, em São Petersburgo, transformado desde os anos 1980 em navio-museu. Sua História está ligada imediatamente a dos bravos marinheiros que garantiram a tomada do poder pelos bolcheviques. Visitei esse navio inúmeras vezes! Na fábrica de chocolate de São Petersburgo fiquei sabendo que o cacau com o qual eles produziam bombons era comprado no Brasil. A caixa que ganhei dos operários, meus filhos devoraram felizes por saberem que o chocolate vinha do Brasil.

Como esquecer dos monumentos como a Coluna de Alexandre, na Praça do Palácio de Inverno; de Pedro, o Grande, montado no cavalo; da Catedral de São Isaac; e da Catedral Sobre o Sangue. Os canais dessa cidade conhecida como a Veneza do Norte obedecem traçados originais. O Museu Hermitage, um dos maiores museus de artes do mundo, visitei várias vezes. Ele parece infinito!

A cada crônica neste livro tento passar algumas informações sobre os sabores do meu exílio. Cito pratos russos que têm pouco tempero e pouca gordura. Mostro que muitos deles contêm produtos derivados de leite: smetána, iogurte, queijos.

Aliás, o leite na Rússia tem sabor de leite, não é como no Brasil que parece de água. A ricota é muito usada na culinária em sopas e saladas de verduras. A beterraba reina através do prato nacional: borsh. O bulión, que citei anteriormente, é um caldo de carne vermelha ou de frango.

Maria Prestes na Praça Vermelha, Moscou, Rússia, ex-União Soviética

Durante o exílio, no meu circulo de amizade, ensinei muita gente a preparar nossa feijoada brasileira, que até hoje é lembrada por quem frequentava a minha casa. Ensinei a fazer pudim de leite condensado; salada de frutas; farofa com ovos cozidos picados e toucinho defumado; arroz, que poucos russos comem. Na Rússia quase não comem nhoque, a batata frita deles é muito diferente do jeito como fazemos no Brasil. O nosso frango assado não é usual, porque eles gostam mais de frango cozido. Tenho saudades dos bolinhos de ricota e dos folheados recheados com carne que eram servidos como acompanhamento de sopas — os piroshki, que são muito apreciados e consumidos no dia a dia das casas russas.

Uma coisa que me chamava muito a atenção é que geralmente os russos não usam tanto tempero como nós brasileiros. Colorau, cominho, pimenta, vinagre, alho, pimentão, folhas de louro e massa de tomate têm pouco espaço na mesa russa. Discordava, mas hoje acho que eles têm razão. Muito tempero termina tirando o sabor da carne ou do peixe, fica tudo igual.

Não pretendo com essas lembranças abarcar todo o período que vivi na URSS. Minha proposta é passar adiante algumas particularidades daqueles tempos heroicos, quando um país tinha a coragem de erguer bem alto e defender a bandeira vermelha com a foice e o martelo, bandeira que ainda hoje homenageia o sangue dos operários, camponeses e trabalhadores em geral, que lutaram e morreram para construir uma sociedade justa e igualitária. Um estado que buscou o ideal de acabar com a exploração do homem pelo homem.

A Rússia, que era um país feudal no início do século XX, atravessou transformações incríveis e chegou a ser uma das superpotências mundiais. Vivi nove anos dentro do meu sonho de menina, na União Soviética que fora para meu pai um símbolo da luta dos povos pela destruição da sociedade capitalista.

Naqueles anos felizes, enquanto meus filhos estudavam em escolas e universidades, eu, em casa, ajudava meu companheiro, Luiz Carlos Prestes, nas suas tarefas diárias, recebendo brasileiros que vinham a Moscou em busca de conselhos e orientações. Foram muitos sindicalistas, jornalistas, professores, políticos, maestros e artistas. A maioria companheiros do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A nossa casa sempre foi uma referência. Diariamente recebíamos materiais do Brasil, legais e clandestinos: revistas, jornais e muitas cartas de amigos. Entre presentes e encomendas chegavam sempre o feijão, o café, a goiabada.

 Agradeço a minhas filhas Mariana, Zoia e ao meu filho Luiz Carlos por terem me ajudado a relembrar detalhes de alguns momentos do exílio político que passei na União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS), entre os anos de 1970 e 1979, e de receitas de pratos que conheci na época. Também a minhas amigas e amigos Elena Ivanóva, Tamara, Valentina Kradi, Jana Merkulova, Lena Romadina, Irina Poloiko, Zafira (Fira) Storojenko e Klava Gomes. Agradeço ao Eddi que digitou alguns dos meus primeiros textos e, finalmente, ao meu neto Rodrigo que realizou a revisão de todos os textos que escrevi.

Maria Prestes é militante comunista, viúva de Luiz Carlos Prestes

Capa do livro "Meu Companheiro - 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes" de Maria Prestes