O que será da Comissão de Anistia no novo governo Lula?

O que será da Comissão de Anistia no novo governo Lula?

O que será da Comissão de Anistia no novo governo Lula?

 

Em 2019, um militar de extrema-direita, conselheiro da Comissão de Anistia, discordou do voto do relator de um requerimento formulado por uma estudante universitária que foi perseguida durante a ditadura. Além de ter sido presa no DOPS de São Paulo, ela perdeu o emprego e interrompeu seus estudos para viver na clandestinidade.

Embora o relator tivesse votado pelo deferimento do pedido de anistia e reparação da universitária, o conselheiro, general Luiz Eduardo Rocha Paiva, divergiu ao afirmar, como consta em áudio analisado em reportagem da UOL, que “o que aconteceu com ela não foi perseguição política, é porque ela era uma militante de uma organização terrorista.”

A manifestação do general destoa dos objetivos e funções da Comissão de Anistia. Criado no início dos anos 2000, o órgão é responsável por conceder reparação a pessoas que sofreram algum tipo de perseguição política durante a ditadura, incluindo aquelas classificadas como “terroristas” pelo regime militar. Porém, já nos primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), os órgãos de Estado criados para reparar a violência cometida no passado recente foram sequestrados por militares e advogados que defendem a ditadura.

Além de negarem a própria existência de um regime de exceção após o golpe de 1964, os membros nomeados para a Comissão de Anistia promoveram um novo processo de vitimização dos perseguidos políticos. A “revitimização” – termo usado para designar ações nas quais uma instituição encarregada de zelar pela justiça às vítimas provoca ainda mais violência contra elas – legitima a violência do Estado ditatorial e as leis de exceção que vigoraram no período.

O desvio de função e a destruição de órgãos de Estado no governo Bolsonaro não se limitaram apenas às políticas concebidas para lidar com o legado da ditadura militar. O mesmo ocorreu com a Funai – que passou a ser presidida por um delegado abertamente contrário aos direitos dos povos indígenas – e com instituições de combate ao desmatamento, por meio de aparelhamento e cortes drásticos de verba.

O processo de revitimização associado ao desmonte das políticas de justiça de transição, no entanto, começou no governo de Michel Temer, o que satisfez os militares irritados com as políticas de reparação e com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em dezembro de 2014, durante a presidência de Dilma Rousseff. Passados o mandato de Temer e os quatro anos do pesadelo governo de Jair Bolsonaro, candidato à reeleição derrotado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, resta saber o que sobrou da Comissão de Anistia e qual será o destino das políticas de reparação e memória no próximo governo Lula.

Anistia aos perseguidos políticos
 

Por mais que a anistia aprovada em 1979 tenha assegurado a impunidade aos militares, ela é também um direito dos perseguidos políticos. A anistia foi incluída na Constituição Federal de 1988 através do Ato das Disposições Transitórias Constitucionais, garantindo reparação econômica e simbólica às pessoas perseguidas por motivos políticos. No final do governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 2001 e 2002, foi criada a Comissão de Anistia com a finalidade de centralizar numa instância federal a apreciação dos pedidos de anistia, antes avaliados em comissões setoriais difusas.

Porém, a Comissão de Anistia não se limitou à análise burocrática dos requerimentos. O órgão passou por transformações ao longo do tempo, sobretudo a partir do segundo governo Lula (2007-2010). Em 2007, o jurista Paulo Abrão, advogado e professor universitário especializado em temas ligados aos Direitos Humanos, foi nomeado para a presidência da Comissão. Sua gestão buscou disputar o significado da anistia no Brasil ao operar o que foi chamado de “virada hermenêutica”: a declaração de anistiado político, ao invés de significar um perdão formal concedido pelo Estado às pessoas enquadradas pelas leis da ditadura militar, passou a valorizar o momento em que é o Estado quem pede perdão aos cidadãos que tiveram seus direitos fundamentais violados. Com o intuito de publicizar as audiências e o pedido de desculpas do Estado, o órgão levou as sessões de julgamentos dos requerimentos de anistia a diversas cidades por meio das itinerantes Caravanas da Anistia.

Além da dimensão simbólica e moral da reparação econômica, a Comissão de Anistia promoveu diversas políticas de memória – como o projeto Marcas da Memória –, além de conferências cujo objetivo era criticar a interpretação dominante da Lei de Anistia como fiadora da impunidade de militares e agentes públicos responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura. Com uma interlocução importante com o mundo universitário, o órgão fomentou a ideia da justiça de transição no Brasil, tornando a reparação um eixo estruturante dos demais mecanismos adotados para enfrentar os legados da ditadura e consolidar o Estado Democrático de Direito.

Esses diversos projetos da Comissão de Anistia foram interrompidos em 2016, após a saída de Paulo Abrão da presidência para assumir a secretaria-executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A interrupção da agenda de justiça de transição promovida pela comissão se explica menos pela saída de Abrão do que pelo contexto político de 2016: na sequência de um golpe de Estado que destituiu a presidenta Dilma Rousseff pouco tempo depois da entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, o governo de Michel Temer iniciou o desmonte da Comissão de Anistia, que foi aprofundado no governo de Jair Bolsonaro.

 

No centro da mesa, o então presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão pede desculpas em nome do Estado brasileiro às vítimas da ditadura. 89ª Caravana de Anistia, Universidade de Brasília, Brasília-DF (2013)
Os ataques
 

Em agosto de 2016, quando Michel Temer assumiu interinamente a Presidência da República antes de ser confirmada a destituição de Dilma Rousseff pelo processo de impeachment, a Comissão de Anistia foi abalada por transformações profundas. Paulo Abrão deixou a presidência da Comissão e, ao mesmo tempo, sete conselheiros foram dispensados pelo ministro da Justiça e outros cinco pediram para sair por discordarem do novo governo. A Comissão reconfigurada decidiu suspender o pedido de desculpas feito pelo Estado às vítimas da ditadura, além de ter aumentado o número de requerimentos indeferidos em comparação aos anos anteriores.

Um ano depois da mudança de seus membros, movimentos e entidades de Direitos Humanos denunciaram a intervenção do governo Temer na Comissão de Anistia. Em um manifesto, foi mencionada a interferência do Executivo por meio da Advocacia Geral da União, que reprovou o pagamento de indenizações que haviam sido concedidas pelo órgão. Também foi apontado o cerceamento de suas condições de trabalho.

A situação da Comissão de Anistia ficou ainda mais precária após a vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018: logo no início do novo governo de extrema-direita, a entidade foi transferida para o recém-criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, encabeçado pela conservadora Damares Alves. Já em janeiro de 2019, a então ministra afirmava que era preciso “começar a pensar em ir fechando” a Comissão.

Apesar do desejo manifesto por Damares, a ex-ministra não pôde fechá-la numa canetada, pois se trata de uma política de Estado, e não de governo, criada por uma lei federal com base em dispositivo constitucional. O governo Bolsonaro, porém, dedicou-se a destruí-la “por dentro”, usando as ferramentas do próprio Estado.

A política de reparação foi atacada por integrantes do governo, que alegavam fraudes nos pagamentos das indenizações, associando-as a membros do Partido dos Trabalhadores (PT). No mesmo momento em que a deputada de extrema-direita Carla Zambelli (PSL-SP) propunha uma CPI para investigar a Comissão Nacional da Verdade, o deputado Márcio Labre (PSL-RJ) solicitou que o TCU fiscalizasse as indenizações concedidas aos perseguidos políticos, alegando que há anistiados que teriam sido pagos por serem “amigos ligados à Comissão da Verdade ou aos partidos que estavam no poder.”

Damares fez coro às alegações de fraude, dizendo que iria endurecer as regras de concessão de anistia para “mexer nessa caixinha das indenizações políticas”. Em reportagem da IstoÉ, a ex-ministra associou mais uma vez a anistia a pessoas próximas ao PT, sugerindo que critérios elásticos facilitariam a obtenção de indenização graças à existência de “brechas”.

Rebatendo as falas de Damares, Cristiano Paixão, jurista e conselheiro da Comissão durante a gestão de Paulo Abrão, sublinhou que a comissão operava com critérios rigorosos, dentre os quais a necessidade de apresentação de provas de perseguição política. Além disso, a Comissão de Anistia obedece à Constituição, que “diz que atos de perseguição política geram anistia.”

Além de atacar a reparação econômica prevista por lei, integrantes do governo investiram igualmente contra outras políticas que visavam a promoção de uma cultura de respeito aos Direitos Humanos através de publicações de trabalhos acadêmicos e documentos relacionados à justiça de transição. Em fevereiro de 2019, Damares fez uma visita “surpresa” ao depósito da Comissão de Anistia. Ao lado do filho do ex-presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, a ex-ministra disse que os livros publicados pelo órgão eram um desperdício de dinheiro público.

 

Tweet de Eduardo Bolsonaro publicado em seu perfil oficial. Twitter, 19 fev. 2019.

 

O desmantelamento
 

A Comissão de Anistia começou a ser desmantelada por intermédio da nomeação de novos membros e da mudança de regimento: foram empossados seis militares e advogados próximos da família Bolsonaro, com um histórico de ofensivas contra as políticas de reparação.

Foi nomeado como presidente o advogado João Henrique Nascimento de Freitas, que já exerceu a chefia de gabinete de Flávio Bolsonaro. Ele já ajuizara ação para suspender o pagamento de anistia à viúva de Carlos Lamarca e fora autor de uma ação judicial contra camponeses anistiados que haviam sido torturados durante as operações militares de repressão à Guerrilha do Araguaia.

Entre os militares, foi designado conselheiro o general do Exército Luiz Eduardo Rocha Paiva, citado no início do artigo. Não só o general deu entrevistas à imprensa relativizando a violência do regime militar, como também foi o autor do prefácio do livro escrito pelo torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.

O Ministério Público Federal tentou revogar a portaria que nomeou os novos membros, argumentando que os representantes das Forças Armadas empossados eram abertamente contrários aos objetivos da Comissão. A composição dos conselheiros, contudo, foi mantida. A Comissão de Anistia passou assim a atuar contra os anistiandos, promovendo um processo de revitimização dos perseguidos políticos.

Entidades que representam anistiados denunciaram os retrocessos da Comissão de Anistia e alegaram serem vítimas de uma “nova espécie de perseguição” intensificada com o governo Bolsonaro. Em julgamentos de requerimentos de anistia, há conselheiros que chamaram os anistiandos de “terroristas.”

Além de serem insultados e classificados de acordo com as doutrinas da ditadura militar, os anistiandos foram surpreendidos com a visita de militares em suas casas. A partir de 2021, Damares firmou um convênio com o Comando da Aeronáutica para que os militares notificassem pessoalmente os perseguidos políticos em suas residências, o que antes era feito pelos Correios. Em entrevista ao jornal O Globo, Eneá de Stutz e Almeida, professora da Universidade de Brasília (UnB) e conselheira da Comissão de Anistia entre 2009 e 2018, ressaltou o impacto que a notificação feita por um militar poderia causar sobre as vítimas da ditadura:

Imagina a situação: eu entro com um requerimento dizendo que fui perseguida, torturada, barbarizada por militares e peço a declaração de anistiada política e a reparação. Aí, bate na minha porta um militar fardado para dizer que eu tenho que juntar prova disso ou daquilo, senão meu processo será indeferido. Isso é deboche. A Constituição me garante o direito de pedir reparação integral por ter sido perseguida política, e o que recebo é uma nova perseguição. Sou vítima novamente das mesmas Forças Armadas que 50 anos atrás me perseguiram e tornaram a minha vida quase insuportável.

Como consequência do desmantelamento e do desvio de função da Comissão de Anistia, a queda do número de requerimentos aprovados se intensificou. Em 2021, uma reportagem do El País calculou que 90% dos pedidos de anistia julgados na pasta da Damares foram indeferidos. A ministra também anulou anistias que já haviam sido concedidas anteriormente.

As políticas de memória não ficaram imunes à destruição promovida por seu ministério, que anunciou, em 2019, o cancelamento da construção do Memorial da Anistia, iniciada em 2009. O prédio localizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, abrigaria o arquivo da Comissão de Anistia, onde seriam armazenados os requerimentos de anistia e demais documentos de grande valor histórico. No fim de 2022, o Blog do Noblat informou que o ministério de Damares Alves queria se desfazer do material da Comissão de Anistia: tratava-se de 17 mil itens, incluindo CDs do relatório da Comissão Nacional da Verdade, livros temáticos sobre a ditadura, revistas científicas da Comissão de Anistia sobre justiça de transição, DVDs, entre outros.

 

Gráfico do número de pedidos de anistia deferidos e indeferidos por ano, elaborado pela reportagem do El País Brasil. Em verde: requerimentos deferidos; em amarelo: requerimentos indeferidos.

Transição e governo Lula: o que será da Comissão de Anistia?

Embora interlocutores do governo Bolsonaro tenham expressado o desejo de extinguir a Comissão de Anistia até o fim de 2022, o ano terminou com a derrota do incumbente nas eleições presidenciais. Com quase 60 milhões de votos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito pela terceira vez.

Ainda que a Comissão de Anistia tenha conhecido seu auge durante os governos petistas, o tema foi pouco explorado durante a campanha presidencial de 2022. A despeito disso, sendo uma política de Estado criada por lei federal, o órgão continuará a existir durante o atual governo Lula.

O que acontecerá com a Comissão de Anistia? A Comissão terá apenas um papel burocrático de apreciação dos requerimentos de anistia pendentes ou retomará a agenda de justiça de transição e Direitos Humanos? Os militares ameaçarão novamente a democracia caso essa agenda seja retomada?

Desde o último ano eleitoral, há coletivos que apresentaram propostas para reestruturar a Comissão de Anistia e outras políticas de justiça de transição. Em julho de 2022, o História da Ditadura sediou o lançamento da Coalizão por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, composta por mais de cem coletivos e entidades, com o intuito de promover candidaturas democráticas e defender o processo eleitoral.

 

 

No manifesto da Coalizão, a proposição de retomada das políticas de memória, verdade, reparação e justiça não insiste apenas na condenação dos crimes cometidos durante a ditadura. O objetivo apresentado visa ao combate das violências do Estado brasileiro que atingem povos indígenas, populações negras, comunidade LGBTQIA+, povos periféricos, além de sindicatos e organizações políticas até os dias atuais. Buscando apontar as continuidades e “desnaturalizar esse corte entre passado e presente”, a Coalizão aponta, ainda, a falta de enfrentamento dessas violências no passado como uma das causas da ascensão da extrema-direita no Brasil, representada pelo governo de Jair Bolsonaro.

 

Assim, as propostas apresentadas anseiam não só por justiça e reparação para as vítimas da ditadura e para seus familiares, como também buscam o enfrentamento do autoritarismo e a consolidação de um futuro democrático. Para isso, a Coalizão reivindica a necessidade urgente de reconstruir a Comissão de Anistia após os desmontes sofridos desde 2016 e de reparar as vítimas estigmatizadas pelos ex-conselheiros militares que defendem a ditadura.

 

A agenda para a reestruturação da Comissão pode ser disposta em três eixos. Primeiro, a Coalizão propõe medidas jurídicas e administrativas que revoguem decisões tomadas pelos membros da Comissão nomeados a partir de 2019: para evitar o desmantelamento do órgão como ocorreu no governo Bolsonaro, sugere a adoção de leis que impeçam a nomeação de membros sem histórico de respeito aos Direitos Humanos e à democracia, além de orçamento próprio para a execução de suas tarefas. Segundo, levanta a necessidade de reparação das pessoas que foram revitimizadas pelos membros da composição da Comissão de Anistia durante o governo Bolsonaro, bem como a anulação das decisões e nova apreciação dos requerimentos de anistia julgados nesse período. Terceiro, além da reorganização da estrutura da entidade, é recomendada a recuperação de medidas que foram interrompidas a partir de 2016, como o ritual de pedido oficial de desculpas às vítimas e o projeto do Memorial da Anistia. A Coalizão também defende a retomada de políticas públicas, como as Clínicas do Testemunho, as Caravanas de Anistia e o projeto Marcas da Memória.

Além das propostas apresentadas pela Coalizão, outras entidades e grupos de familiares e de vítimas da ditadura entregaram a Lula, durante a campanha presidencial, documentos reivindicando a criação de uma Secretaria Especial de Transição Democrática para acolher as comissões de reparação e retomar a agenda da justiça de transição. Segundo reportagem de Evandro Éboli, o novo governo eleito está decidido a reavaliar os julgamentos de anistia feitos desde 2016 e a revogar as portarias do governo Bolsonaro que negaram os direitos aos perseguidos políticos. A forma como a Comissão de Anistia atuará no novo mandato de Lula dependerá da prioridade dada pela administração federal às pautas apresentadas por essas entidades.

O anúncio da nova composição do órgão, agora sediado no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), assinala uma possibilidade de retomada da agenda de justiça de transição e Direitos Humanos. A pasta recém-empossada excluiu os militares escolhidos por Bolsonaro e nomeou 16 conselheiros com experiência em políticas de reparação, memória e verdade. Para a presidência, foi nomeada a professora Eneá de Stutz e Almeida, que já havia integrado a Comissão de Anistia em gestões anteriores. Outros ex-conselheiros foram reconduzidos à Comissão, como Cristiano Paixão, Rita Maria Miranda Sipahi, José Carlos Moreira da Silva Filho, entre outros.

Os membros nomeados pelo ministro Silvio de Almeida, além de terem experiência técnica de atuação no órgão, têm uma trajetória de luta pelos Direitos Humanos e de respeito ao Estado Democrático de Direito. Segundo reportagem do G1, consta no material divulgado pelo MDHC que a nova composição da Comissão terá a missão de “reverter a interferência política propagada desde 2019 no sentido de paralisar os trabalhos do grupo por meio da omissão do Estado brasileiro.”

As escolhas do governo eleito vão também depender do modo como Lula vai lidar com os militares e com o histórico “poder de veto” das Forças Armadas em relação às políticas que lidam com os legados da ditadura. A relação do presidente com os militares em seu novo mandato já começou sob tensão após o atentado às sedes dos Três Poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro, com fortes indícios de envolvimento das Forças Armadas. Como os militares vão reagir à reestruturação da Comissão de Anistia? Ao retomar políticas públicas que visam a lidar com os crimes da ditadura, como o governo irá reagir caso os militares se incomodem novamente? As reivindicações de vítimas e de seus familiares serão mais uma vez negligenciadas?

As comissões criadas desde a década de 1990 com o intuito de reparar os crimes cometidos pelo regime militar necessitam de mais garantia de estabilidade e de proteção contra as tentativas de interferência de defensores da ditadura e das Forças Armadas. Trata-se de órgãos que fazem valer direitos estabelecidos por leis federais. Por isso, é preciso repensar a estrutura dessas instituições de modo que não dependam das trocas de governo. A autonomia das comissões de reparação poderia garantir que elas não fiquem reféns de uma mudança política, assegurando que as vítimas da violência de Estado não sejam novamente injustiçadas.

Essas pautas não dizem respeito apenas ao passado. As propostas de retomada das políticas de reparação, memória e verdade se referem a direitos penosamente adquiridos durante a redemocratização, conquistados graças à mobilização de pessoas que foram atingidas pela ditadura. Muitas delas, ainda vivas, não obtiveram justiça após terem tido seus direitos violados. Além disso, essas políticas têm o objetivo de enfrentar as razões que fazem com que o Estado brasileiro continue sendo violento contra uma parte da população que nunca viveu plenamente a democracia. Sem esse enfrentamento, não se poderá confrontar a atuação política de militares contrários ao Estado Democrático de Direito e a ascensão de um eventual novo governo autoritário como o de Jair Bolsonaro.

Desde o resultado das eleições presidenciais e a vitória de Lula, a palavra “transição” está diariamente presente nos noticiários, seja em referência ao gabinete nomeado para implementar o plano do governo eleito, seja para designar a passagem de uma política autoritária para um governo mais democrático. Esse é um momento oportuno para a retomada das pautas ligadas à justiça de transição, atualizadas de acordo com os desafios atuais para a reconstrução da democracia após anos de ataques e arroubos autoritários.

 

Créditos da imagem destacada: Carlos Lamarca, comandante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Sua atuação nunca deixou de incomodar o Exército, que buscou constantemente boicotar seu processo de anistia. Imagem: Reprodução.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ABRÃO, P.; TORELLY, M. As dimensões da Justiça de Transição no Brasil, a eficácia da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiça. In: PAYNE, L. A. et al. (Eds.). A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Oxford: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Oxford University, Latin American Centre, 2011. p. 212–248.

 

ABRÃO, P.; TORELLY, M. D. Mutações do conceito de anistia na Justiça de Transição brasileira. Revista de Direito Brasileira, v. 3, n. 2, p. 357–379, 30 set. 2012.

 

ALVES, G. G. A virada hermenêutica da Comissão de Anistia: a anistia brasileira e as diferentes estratégias de reparação (2007-2010). Dissertação (mestrado)—Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em História Social, 2015.