Nem oito nem oitenta

A “teologia da prosperidade” parece ter um enraizamento mais forte no protestantismo histórico do que costumamos acreditar.

Nem oito nem oitenta

Nem oito nem oitenta, por Jorge Alexandre Neves

A “teologia da prosperidade” parece ter um enraizamento mais forte no protestantismo histórico do que costumamos acreditar.

Jorge Alexandre Neves[email protected]

 

Nem oito nem oitenta

por Jorge Alexandre Neves

Há alguns anos, no nosso Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFMG, tivemos uma aula inaugural do semestre com o Prof. Paul Freston, um dos maiores especialistas em neopentecostalismo no Brasil e em outros países da América Latina. Após a conferência, perguntei ao palestrante se Max Weber conseguiria ver algo em comum entre o protestantismo histórico e as denominações neopentecostais brasileiras. Sua resposta foi bastante direta: sim! Seu argumento girou em torno de alguns pontos específicos e um deles foi o econômico. A “teologia da prosperidade” parece ter um enraizamento mais forte no protestantismo histórico do que costumamos acreditar.

No último Foro de Teresina (disponível a partir de 19/08/2022), o jornalista José Roberto de Toledo fez uma análise sobre os evangélicos, no Brasil, que me pareceu parcialmente equivocada. Partindo de uma crítica – de modo geral correta – ao livro de Lawrence Harrison (1), Toledo conclui que este só acertou ao prever o crescimento do protestantismo na América Latina, mas errou em tudo o mais. De fato, o livro de Harrison é bem ruim, e a proposição de que o protestantismo é uma base sólida para a consolidação de regimes democráticos liberais tem fracassado miseravelmente, inclusive nos EUA, que ele via como um exemplo a ser seguido pelos países latino-americanos. Todavia, a hipótese que Harrison e outros analistas propuseram, com base no livro clássico de Max Weber (2), de que o protestantismo (mesmo o neopentecostalismo latino-americano) está associado a comportamentos econômicos específicos – que podem levar, inclusive, a uma maior mobilidade social ascendente – está longe de ter sido refutada.

 

No final da década de 2000, publicamos um artigo (3) no qual fazíamos análises estatísticas de duas bases de dados para investigar a relação entre religião e comportamento econômico em Minas Gerais. A primeira base de dados era de uma pesquisa com amostragem não-probabilística de operários do setor da indústria calçadista do município de Nova Serrana. A partir da mensuração com escalas já validadas, concluímos que os trabalhadores protestantes tinham um nível de motivação para o trabalho significativamente maior do que os demais. A segunda base de dados provinha da Pesquisa por Amostragem Probabilística da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Com esse segundo conjunto de dados, estimamos modelos lineares clássicos de mobilidade social intergeracional e concluímos que os protestantes experimentavam maior mobilidade social – ou seja, tinham seus destinos socioeconômicos menos influenciados por suas origens socioeconômicas – do que o restante da amostra.

A partir de 2020, retomamos esforços de pesquisa sobre religião e economia (4). Levantamos novos dados primários (uma amostra não-probabilística das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte), e encontramos que ser membro de uma denominação evangélica anula as desvantagens de ser mulher ou negro (preto ou pardo) sobre a probabilidade de se estar ocupado de forma remunerada.

Nossos achados, portanto, reforçam a hipótese de que o protestantismo está, sim, associado a comportamentos e resultados econômicos particulares. Os mecanismos através dos quais se dá tal associação, contudo, ainda é algo que precisa ser pesquisado de forma exaustiva. Ao mesmo tempo, é preciso ressaltar que essa associação observada entre religião e economia tem como base análises de microdados e, assim, tem implicações apenas para os indivíduos e suas relações econômicas, em particular no mercado de trabalho. Ou seja, as evidências não corroboram, de nenhuma forma, as expectativas de Harrison de que o crescimento do protestantismo na América Latina levaria a maior desenvolvimento econômico ou a um fortalecimento de sistemas democráticos liberais.

  • 1. Toledo não explicita, mas acredito que ele se referiu ao livro de Harrison intitulado “Underdevelopment is a State of Mind: The Latin American Case”, publicado originalmente em 1985.
  • 2. Intitulado “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, publicado originalmente em alemão, na primeira década do século XX.
  • 3. CARDOSO, ALEXANDRE ANTÔNIO; NEVES, JORGE ALEXANDRE BARBOSA; BARBOSA, ROGÉRIO JERÔNIMO; ENOQUE, ALESSANDRO GOMES. PROTESTANTISMO, MOTIVAÇÃO E MOBILIDADE: DOIS ESTUDOS SOBRE RELIGIÃO E COMPORTAMENTO ECONÔMICO. Teoria & Sociedade (UFMG), v. 17, p. 216-238, 2009.
  • 4. Ver artigo publicado como preprint em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/4485/version/4746.