“Gastança” a ser contida são os quase um trilhão de reais só de juros

“Gastança” a ser contida são os quase um trilhão de reais só de juros

“Gastança” a ser contida são os quase um trilhão de reais só de juros

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Povo passou a faixa a Lula (reprodução)

Foram gastos com juros em 2022 R$ 700 bilhões e, com a atual Selic, podem chegar a R$ 800 bilhões em 2023. Este é o verdadeiro “rombo fiscal”

Há hoje um debate sobre o futuro do teto de gastos, uma excrescência inventada em 2016 para impedir a “gastança” por parte dos governos. Quando a mídia econômica fala em gastança, a primeira impressão que se tem é a de que o “teto” foi criado para reduzir o enorme gasto público – de quase um trilhão de reais anuais – com juros da dívida pública.

De fato, ao tomarmos conhecimento, segundo dados oficiais, de que, dos R$ 5,3 trilhões previstos no Orçamento de 2023, os gastos com o refinanciamento (juros e amortizações) da dívida consumirão R$ 3,33 trilhões, ou seja, 66% dos recursos orçamentários, o que vem a mente é que essa é a verdadeira “gastança”. Confirmando isso, constatamos que só de juros foram gastos em 2022 R$ 700 bilhões e, com a atual Selic, podem chegar a R$ 800 bilhões em 2023.

“GASTANÇA” QUANDO É PARA O POVO

Mas, a “gastança” a que se referem os “analistas” econômicos, geralmente ligados aos bancos, e demais porta-vozes do falido neoliberalismo, não é essa. Não é a essa montanha de dinheiro desviada do orçamento da União – ou seja, do conjunto da sociedade – para os rentistas, que eles estão se referindo. O “teto de gastos” não se preocupa com isso. Ele só é válido para os gastos com investimentos, com o funcionamento de serviços públicos e com os programas sociais. Ou seja, só é considerado “gastança” quando o dinheiro vai para o povo. Quando é para os bancos, eles chamam de “responsabilidade fiscal”.

Economistas renomados, como Monica de Bolle e André Lara Resende, têm alertado para a falência do que eles chamam de “fiscalismo à brasileira”, um verdadeiro freio ao desenvolvimento da economia do país. Aliás, não só um freio ao crescimento, mas também um fator de destruição da indústria brasileira, um setor que já representou 25% do PIB (Produto Interno Bruto) e hoje não passa de 11%. Como disse Geraldo Alckmin em sua posse no Ministério da Indústria e Comercio, “de 1980 a 2020, o Brasil cresceu 20%, os EUA dobraram sua economia e a China, que tinha uma indústria menor que a do Brasil, cresceu 47 vezes neste mesmo período”.

O problema do Brasil é anterior ao teto. Os problema começaram mesmo no início da década de 1990, após o “Consenso de Washington” – reunião de bancos, principalmente americanos, que impôs restrições fiscais, abertura indiscriminada de mercado e privatizações aos países da periferia – o Brasil convive com “ferrolhos” fiscais de todo tipo, que impedem o crescimento do país. A mal chamada Lei de Responsabilidade Fiscal e o tripé macroeconômico fizeram parte deste sistema restritivo ao desenvolvimento nacional. O teto representou essa ideia levada ao extremo por Temer, Bolsonaro e Paulo Guedes.

“Reza o fiscalismo que programas sociais são inflacionários”, diz Monica de Bolle. “Direcionar tantos recursos aos mais pobres causará danos profundos a essas mesmas pessoas pela via inflacionária”, acrescenta a economista.

“Examinemos esse argumento, e quem são as pessoas que o defendem”, diz ela. “Comecemos com a Selic, a taxa de juros de referência determinada pelo Banco Central, de 13,75% ao ano. Lembremos que a inflação estimada para 2022 é de cerca de 5,8%. A taxa de juros real é a diferença entre os juros nominais (a Selic, por exemplo) e a inflação. Logo, os juros reais brasileiros estão em inacreditáveis 8%, ou perto disso. Não há país no mundo que chegue perto de tamanho desequilíbrio”, afirma a professora, em artigo recentemente publicado pelo HP.

QUEM GANHA SÃO OS MESMOS

“Quem recebe o grotesco diferencial de juros da dívida com a Selic nas alturas? Os detentores de títulos públicos. E quem são eles? Ah, adivinhem…são os mesmos que só falam de despesa primária e sequer tocam na despesa financeira do governo. Por quê? Porque a despesa financeira do governo, os pagamentos de juros exorbitantes para lá de incompatíveis com a inflação estimada e esperada, representam uma parte da renda que credores/fiscalistas recebem. Está dado o conflito distributivo e a historinha fiscalista”, arremata a economista membro sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins e ex-diretora do Instituto de Estudos de Política Econômica (IEPE | Casa das Garças).

O professor Lara Resende já vem há algum tempo denunciando as restrições fiscais e suas consequências nefastas para o Brasil. “A teoria macroeconômica está sendo revista no mundo há pelo menos uns dez anos, mas no Brasil houve uma radicalização do dogmatismo, expressa na ideia de que a boa política macroeconômica se resume a equilibrar o orçamento público em todas as circunstâncias”, diz o autor.

“No Brasil”, destacou Resende, “só se defende esse modelo [neoliberal]. Basta ler os jornais. O curioso é como conseguem justificar essa postura e defender simultaneamente o aumento da taxa de juros pelo Banco Central em 12 pontos percentuais em seis meses, que faz crescer a despesa com a dívida pública”. “Isso significa transferência de renda para os detentores da dívida pública, que são os agentes superavitários da economia. É uma política profundamente concentradora, e uma incongruência espantosa. A responsabilidade fiscal é muito importante, mas está mal definida”, observa o economista.

 

Ele defendeu a retomada do desenvolvimento. “Precisamos de um projeto para a retomada do desenvolvimento no século 21. Ele não virá da obsessão neoliberal, que se tornou completamente ultrapassada, nem com o desenvolvimentismo do século 20. Os desafios que precisamos enfrentar são novos e enormes. Há a questão ambiental, a necessidade de repensar a energia para nos livrarmos de combustíveis fósseis, a busca por maior inclusão social. A revolução tecnológica, que traz ganhos de produtividade, mas desestrutura o emprego. Essa é a discussão a ser feita”, completou o economista.

“O Estado tem sempre a possibilidade, quando ele emite a moeda fiduciária, de criar o poder de compra, então, o Estado é muito poderoso. Como restringir o Estado para que ele faça isso para o bem da sociedade e de acordo com as opções da sociedade democrática? Essa é a grande questão de responsabilidade fiscal”, argumentou Resende.

E prosseguiu: “não é este equívoco de imaginar que o Estado mesmo com esse desemprego que nós temos hoje no Brasil perto de 14% aberto, provavelmente 20% de desemprego, quando você tem capacidade ociosa, uma infraestrutura completamente deteriorada, quando há uma evidente insuficiência de bens públicos, aqueles bens que só podem ser ofertados e supridos pela ação do Estado, como segurança, educação básica, saúde, a questão ambiental. Estas questões que são bens públicos e devem e só tem como ser supridas pelo Estado, precisam que o Estado dirija e faça esses investimentos corretos”.

CRESCIMENTO DO PIB

Ao comentar a dívida pública que atingiu 90% do Produto Interno Bruto (PIB) na pandemia, Lara Resende defende que não existe um limite máximo para o endividamento da dívida pública, como afirmam economistas ortodoxos de que se a dívida ultrapassar tal limite a economia vai se desorganizar.

“Não existe um limite ao qual a economia se desorganiza. O que não pode é a relação dívida pública/PIB crescer permanentemente, em trajetória explosiva”, defende. “O que é preciso é garantir que o crescimento do PIB, do denominador, acompanhe, no mínimo, a taxa de crescimento do numerador que é o PIB. Se a dívida cresce muito mais que o crescimento do país há alguma coisa errada”, argumenta André Lara Resende.

“O investimento público é o motor de arranque da economia. É o que define o investimento para frente e não compete, nessas circunstâncias, com o investimento privado, ao contrário, é complementar e vai balizar e atrair investimento privado”, afirmou Resende

“Se existe um consenso hoje, é que o país precisa investir. Não há crescimento sem investimento, e o Brasil, depois de crescer abaixo da média mundial desde os anos 1980, viu o seu produto per capita cair na última década. Já sobre as causas da longa interrupção do crescimento e sobre o que fazer para voltar a investir, não há consenso. Sabe-se que juros altos desestimulam a demanda, reduzem o consumo e o investimento”, completa o economista.

São essas as questões a serem enfrentadas e discutidas para que o governo Lula, eleito democraticamente, após derrotar um projeto fascista e retrógrado, e que acaba de assumir, tenha sucesso em sua grande empreitada de reconstrução nacional. Conter as despesas com juros, centrar na produção nacional, reconstruir a indústria, retomar os investimentos públicos, abrindo espaço para os investimentos privados, e apostar na ampliação do mercado interno. Esta será a base da retomada do desenvolvimento brasileiro neste difícil e complexo início do século XXI.

SÉRGIO CRUZ