“ACABOU O MANDATO, E COMEMOREI COMO GALVÃO BUENO NA COPA DE 94”
Revista Piauí
“ACABOU O MANDATO, E COMEMOREI COMO GALVÃO BUENO NA COPA DE 94”
Ex-deputada federal Áurea Carolina conta como e por que não buscou a reeleição
— Por que parar, você não acredita mais?
A pergunta ardia nos olhos. Eu precisava dizer que acredito, mas não conseguia. Ainda acredito, mas não para mim. Quer dizer, ainda dá para acreditar, desde que não seja eu. Como desdizer anos de palavra encarnada? Eu vivia convocando geral para ocupar a política. Mas, olha, não era para todas as pessoas, de qualquer jeito, a qualquer preço. Posso garantir: encorajei lideranças populares sem vender ilusão. Falei abertamente sobre riscos e desafios, muito antes de cogitar que encerraria meu breve ciclo na política institucional. Foi uma entrega de peito aberto e por inteiro.
— Ninguém faz isso que você fez.
É, talvez. Ninguém é quase ninguém. Eu me lembro de ler a Manuela D’Ávila no seu livro Revolução Laura. Eu estava no puerpério, era o começo da pandemia. Ouvi a Manu como se estivesse diante dela: “Não concorreria a prefeita mesmo que estivesse em primeiro lugar em todas as pesquisas e muitos partidos quisessem me apoiar.” Manu decidiu fazer o que era certo para si, para sua vida. Sua filha Laura tinha cinco meses. Chorei doída. Naquele momento, eu estava prestes a decidir se toparia ou não ser candidata a prefeita de Belo Horizonte. Eu liderava as intenções de voto entre possíveis candidaturas de esquerda. Exercia um mandato federal de destaque, fruto de uma vitória expressiva nas eleições de 2018.
Tirei uma foto da página e escrevi para a Manu. Ela me acolheu. Entendia minha angústia. Viveu o que ninguém viveu. Fez o que ninguém fez. Por mais que eu me abrisse com amigas, não tinha com quem trocar sobre uma experiência que ninguém teve. Uma mãe feminista da minha geração recusou ser candidata quando sua prioridade libertária era ter tempo para se dedicar à sua cria. Eu queria ter tomado essa decisão, mas não foi o que eu fiz.
Fui acometida por um senso de responsabilidade que abafava a voz do meu coração. Acreditei que deveria batalhar por uma candidatura com uma frente ampla de esquerda. Liderei tentativas frustradas de articulação, e ao final encarei a campanha de 2020 com uma aliança restrita, três ou quatro candidatos adversários do mesmo campo, um prefeito favorito à reeleição que sequer discutiu propostas para a cidade, o bolsonarismo em alta. E, o mais importante, carregando um bebê no colo. Eu chorava todos os dias. Foram as primeiras vezes que tive de passar horas longe do meu filho. A disputa foi dura com aliados e adversários. No debate de tevê, mal me concentrava no que deveria falar enquanto meu peito vazava leite. Tive Covid às vésperas da eleição e não pude ir votar. Fiquei semanas convalescente, quase fui internada. Eu delirava de tanta febre. Achei que ia morrer.
Virei 2021 processando as feridas de uma jornada que ficou pesada demais. Nada daquilo fazia sentido. Não foi para me arrebentar toda que ocupei a política. Pensei em desistir, mas a equipe do mandato segurou as pontas comigo. Sem ela, não poderia seguir. Além do mais, eu desejava contribuir para a projeção de outras lideranças. Sempre foi uma construção maior. É sobre alternância de poder, como ensina Erica Malunguinho.
Aos trancos e barrancos, mas com absoluto cuidado na minha comunicação pública, consegui tomar a decisão de não me candidatar à reeleição, determinada a buscar o melhor para mim. Atravessei 2022 afastada das negociações típicas de um ano eleitoral. Abracei a candidatura de Célia Xakriabá, que havia sido assessora parlamentar no meu mandato, como a continuidade do nosso projeto em Brasília. Era chegada a hora do cocar! Entrei de cabeça na campanha. Elegemos a primeira deputada federal indígena por Minas Gerais, um feito histórico. Valeu a pena acreditar.
Sempre me emociono quando escuto “Áurea, você me representa!”. Desde o resultado de 2016, quando fui eleita a vereadora mais votada de BH, sou abraçada nas mais inusitadas situações por pessoas que me acompanham ou votaram em mim. Um dia desses, já depois de concluir o mandato federal, um casal branco com um carrinho de bebê me abordou distraída no meio de um shopping. Eles me olharam com lágrimas nos olhos e disseram que sou inspiração para a criação da sua filhinha recém-nascida. E que meu exemplo de não tentar a reeleição e apoiar Célia era de muita dignidade e valor.
Outra vez, lá em 2019, eu andava perto do mercado do Ver-o-Peso, em Belém, quando duas jovens negras vieram radiantes dizer que me admiravam e pediram para tirar foto. Imagina, lá no Pará! E assim era quando eu dava uma escapada numa cachoeira, num boteco copo sujo qualquer, na fila do supermercado, no vaivém pelos aeroportos, passeando com Jorge no Parque Municipal de BH. Eu ouvia relatos maravilhosos. Era impressionante a quantidade de mães, pais e até avós que diziam que votaram em mim por conta de suas filhas e netas jovens, e ainda mais comovente a identificação dessas meninas comigo, sobretudo negras e periféricas.
Esses encontros me enchiam de alegria e reacendiam meu propósito nas horas mais difíceis. Recebi homenagens inesquecíveis, fui convidada para palestrar em tudo quanto é lugar, viajei a vários países para compartilhar a experiência da Gabinetona, o mandato coletivo que se tornaria referência de inovação democrática no Brasil. De fato, criamos diversas tecnologias de envolvimento direto da cidadania com a nossa atuação. Desde o atendimento de demandas corriqueiras, como orientação sobre direitos e serviços públicos, à destinação de emendas parlamentares por meio de chamada aberta, contribuímos à nossa maneira para a efetivação de outra política na prática.[1]
Anotícia da morte de Marielle Franco chegou a mim depois de um dia duro na Câmara Municipal de BH, comendo macarrão instantâneo em casa enquanto lia o celular. Levantei em choque, feito robô em câmera lenta. Estranhamente, parecia engano e parecia que aquilo estava para acontecer. Fiquei vidrada na tela. Vieram mais e mais mensagens. Caí sem chão. Meu coração desceu num redemoinho pelo oco da noite.
Amanheci no Rio de Janeiro com minha assessora Flávia Tambor. A gente pediu um café, a tevê da lanchonete exibia imagens do carro branco fuzilado. Chegamos à Cinelândia ainda vazia. No velório, abraçada a Talíria Petrone, entendi uma dor que nos era tão singular: junto com Mari, formávamos o trio de vereadoras negras do Psol eleitas com trajetórias muito próximas e votações fenomenais. Quando voltei à praça, Marielle tinha se tornado um fractal infinito. Eu só via o seu rosto no meio da multidão.
Nada seria como antes. Florescer as sementes de Marielle era questão de justiça – uma justa vingança. Ao lado de Cida Falabella e Bella Gonçalves, minhas parceiras de covereança na Gabinetona, e pessoas que faziam parte das Muitas, a movimentação que deu origem à nossa campanha coletiva em 2016, avançamos na estratégia de expansão do nosso projeto para aquelas eleições de 2018. O golpe contra a democracia brasileira estava em marcha, o fascismo rondava cada vez mais solto, e o crime covarde contra Marielle exigia de nós avançar mais rápido.
A aposta foi aumentar nossa capacidade organizativa e eleitoral. O lema “política com amor e pé na porta” pautava a rede Ocupa Política, que desde 2017 reunia mandatos-ativistas de todo o país – inclusive o de Marielle. Multiplicaram-se iniciativas de mobilização e formação de lideranças. Apesar da terrível derrota presidencial, tivemos um salto inédito na eleição de mulheres negras, feministas, trans e periféricas pelo Brasil. A Gabinetona cresceu, e passamos a ter quatro mandatos integrados em três níveis do Legislativo: Bella e Cida em BH, Andréia de Jesus na Assembleia de Minas e eu em Brasília. Não seríamos interrompidas.
Osangue descia grosso e brilhoso, devagar. Por um segundo fiquei vidrada naquele quase não movimento: a mancha pelo ralo, o contraste com a louça branca. Deixei a água escorrer da torneira e, no tempo que desacelerava dentro de mim, o rastro gomoso ia raleando. Enxaguei os respingos na pia, fazendo uma concha com a mão e espirrando água pros lados. Sequei a bancada com papel toalha. Sentia um pouco de cólica, a cabeça zonza.
Cada ida ao banheiro me dava um trabalho danado. Eu suava frio e morria de calor, mesmo com o ar-condicionado no talo. Arrumei um macacão azul marinho de amarrar pelas costas que me obrigava a ficar pelada para agachar toda troncha na posição de tirar e colocar o coletor menstrual. Só comigo, não é possível. Há! Isso é que é dar o sangue.
O banheiro feminino para cadeirante era o único no plenário da Câmara dos Deputados que me permitia descer a roupa e lavar o coletor com privacidade. Eu voltava para a sessão de posse dos 513 deputados meio fora do ar e logo sentia o coletor vazando. Do banheiro para o plenário, do plenário para o banheiro, e numa dessas apareceu um caroço no meio do sangue. Não era coágulo. Apertei, cheirei, examinei de pertinho com olho de microscópio. Um corpo estranho, pedaço do meu corpo. Dei descarga e me despedi sem muita cerimônia. Eu esperava essa hora chegar desde o choque no exame de ultrassom, mas não podia imaginar que seria bem naquele 1° de fevereiro de 2019.
Enquanto meu útero expulsava um saco gestacional sem embrião, logo eu já seguia junto ao cortejo da nossa bancada que acabara de tomar posse para inaugurar os gabinetes das deputadas do Psol. Lá ia o bando sem jeito, um nervosismo eufórico no ar. Gritos de guerra improvisados, a cena um tanto ridícula, até que Erundina puxou a frente e a coisa ficou séria.
Sem risadinha. Erundina discursava com gravidade. Suas costas se abriram largas e fortes. A senhorinha na casa dos oitenta anos ficou imensa. Ela então conduziu o batizado do primeiro gabinete feminista. Alguém fixou a placa da rua Marielle Franco acima da porta, e Erundina chamou geral:
— Este gabinete é de quem?
— Da fulana!
— Este gabinete é de quem?
— Da fulana!
Erundina acenou que não.
— Este gabinete é de quem?
— É do povo!, finalmente se ouviu.
Arrepiei. Foi assim até chegar a minha vez. Os gabinetes eram do povo, o meu já era a famosa Gabinetona. Chamei o grito que a gente fazia em BH:
— Gabinetona é o quê?
— De luta!
— Gabinetona é o quê?
— De luta!
— Gabinetona é o quê?
— De luta!
Eu blefei. Joguei verde para colher maduro. Tudo bem que recorri ao meu sacrifício como encenação para suportar a minha posição de figura pública. Era aquele fardo: estou dando a minha vida por um projeto coletivo. Eu e o meu coletivo imaginário.
Não teve molezinha. Saí vencida e machucada de várias disputas internas. Brilhei e morri junto com o projeto. De repente adoeci, meu mais vivo sinal de saúde. Haja análise e fui tomando consciência da posição que eu representava, tão externa a mim, e pouco a pouco nasceu outra. Eu poderia escapar inteira se operasse uma cisão: uma distância de segurança entre mim e a parlamentar. E assim, desidentificada e ao mesmo tempo ciente da performance, tomei tino para bancar decisões e, de quebra, assinei habilidades que eu reprimia. Tive que jogar. Era isso ou viver arrasada.
Esse povo não sabe que eu sou truqueira. Matei muita aula no ensino médio. Aprendi a jogar na ofensiva como os caras, mas também a ser estupidamente sonsa. Tirando eu, só uma ou outra menina maloqueira tipo eu gostava de truco, e os caras não davam muita moral pra gente. Não acham que uma menina vá saber blefar, acham que a gente só vai pedir seis com zap na mão. O cara que leva um seis no pé da orelha fica puto, coitado. É correr ou pedir nove, daí o machão sustenta com um três de nada, eu meto um doze e já era. Colo minha espadilha na testa, pego a mão da minha dupla e soco o cotovelo na mesa urrando.
Na base do blefe percebi que vinha sendo deslegitimada entre pessoas que eu tinha como aliadas. Toda hora uma conversinha atravessada, armadilhas daqui e dali. Pesadelos e fofocas me avisaram: traições, mentiras, circuitos paralelos, meu nome na boca de quem se movimentava pra me queimar. Eu sabia mais ou menos de onde tudo isso vinha, mas joguei para distinguir grupos de afinidade com suas lealdades e deslealdades. Fiz testes, fiquei paranoica, cheguei a focos de intriga.
Colhi confirmações da terra e do além, morta de desgosto. Raiva de mim por ter sido tão trouxa, tão literal em viver o lema feminista do pessoal que é político. Minhas principais amizades estavam naquelas redes, minha existência quase toda plasmada no trabalho. E o trabalho – aliás, minha vida – era uma obsessão política. Meu Deus, aquilo estava me consumindo. Não fazia sentido tanta entrega. Fui envenenada pela desconfiança. Andava assustada, com medo de assombração. Acertaram bem na minha testa, mas me aguardem! Sou cabulosa. Não por acaso, eu estava grávida de Jorge quando caí na real.
Um belo dia, quem diria, a dádiva me envolveu. Eu não me lembrava das coisas, tinha muito sono, uma lerdeza só. Era mágico habitar meu corpo. Parece que a intuição me cobriu com um escudo e o trabalho ficou do lado de fora. Aérea em reuniões horríveis, eu não estava nem aí. Via bocas cuspindo marimbondos com suas jogadas ensaiadas para forçar ou quebrar acordos. Entre argumentos ferozes e tentativas de mediação, a Gabinetona começava a ruir. E isso não me entristecia. Eu pairava distante, cheia de graça com uma criatura crescendo no ventre.
Não fiz nenhum esforço para manter unido o que rapidamente se despedaçava. Eu estava no primeiro ano como deputada, tragada pela dinâmica de Brasília. Logo teria aulas de hidroginástica, meu grito inusitado de libertação. A gravidez me autorizou a fechar horários na agenda para mexer o corpo. Era engraçado ficar exausta e ver as minhas colegas idosas animadíssimas. Nem pensar num luxo desses nos dois anos de vereadora. Enquanto isso, fui construindo um círculo de mais segurança e proximidade em torno do mandato federal.
Atravessei 2020 com o acontecimento visceral da maternidade, confinada por uma pandemia e fulminada por um processo eleitoral que me custaria crises de pânico e logo catalisaria o meu colapso. Consegui virar o ano com o resto das minhas forças e operei a mudança que não podia mais esperar: resolvi sair da Gabinetona. Tentei levar com a maior discrição possível, sem alarde nem quebra-pau. Saí grata pelo extraordinário que foi e pelos afetos que me educaram, fiel aos meus limites e convicta de que a memória das nossas práticas seria um legado.
Foi um luto. Àquela altura eu compreendia o vórtex da minha queda. Muita pancada até bolar uma síntese. A trajetória diante do espelho. Acabei encurralada entre o colorismo e a branquitude: parda demais para ser negra, periférica demais para frequentar os herdeiros da classe média. Tida como farsante por uns e subjugada por outros, virei objeto de gente que queria tirar proveito do meu capital político. Que dor. Apostei todas as fichas em um projeto que, na verdade, era ilusão de realização pessoal. E reconheci que desde a adolescência vinha nesse padrão de me atirar nos coletivos esperando que fossem o meu lugar de amparo. A política e os afetos.
Pandemia com puerpério foi uma bomba de ansiedade. O noticiário me fazia mal, ficar meio alheia também. Não dava para acreditar na situação calamitosa do Brasil. Em contraste com a conduta genocida do governo federal, eis que a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, surgia como um raio de luz. Outra mãe da minha geração na política. Fico comovida de lembrar que ela pariu durante o mandato. Sob a sua gestão, o número de casos e mortes de Covid no seu país esteve entre os menores do planeta.
Li alguma vez que Jacinda falava abertamente sobre seu histórico de ansiedade e que tratava o tema da saúde mental como prioridade política. Queria dar um abraço nessa mulher! Aí vem janeiro de 2023, eu estava nos últimos dias do meu mandato, e me deparo com o discurso de renúncia da Jacinda ao cargo de primeira-ministra. Ela não concorreria à reeleição e terminaria o mandato um pouco antes do previsto. Eu vi e revi o vídeo várias vezes, admirada com a ternura e a coragem do seu gesto. Ela falava que já não tinha energia para continuar, destacava as realizações do seu governo, trazia os cuidados com a família entre as suas motivações, e encerrava ensinando que liderar é também saber a hora de parar. Eu me sentia dentro de uma conversa íntima, profundamente conectada com o significado daquele acontecimento.
Acabou o meu mandato, e por dentro comemorei que nem o grito do Galvão Bueno na final da Copa de 1994. Então veio o grande carnaval real oficial pós-pandemia e pela primeira vez, em anos, me senti liberta para curtir na rua. Foi um pouco estranho. Eu checava o celular mecanicamente, talvez com o alerta de que a qualquer momento poderia brotar uma emergência. Os dias ficaram diferentes. As demandas incessantes se dissiparam como nuvens. Entrei em outro tempo-espaço. Sinto que estou reaprendendo a existir.
Acabo de assumir um novo trabalho que me enche de entusiasmo, finalmente de volta à sociedade civil. E é engraçado me dar conta de que tenho horário de expediente, vem a sensação de que não estou fazendo as coisas direito. Liguei para o meu avô Nego Bispo, mestre quilombola que vive no Piauí, e contei que estava achando meu serviço fácil demais. Ele fez uma pausa e falou sério: “Minha filha, na roça a gente carrega a lenha pesada primeiro. Aí, quando pega um monte de graveto depois, nem sente que tá fazendo força.”