A proposta do Emprego Digno Garantido

“As pessoas não comem no longo prazo, comem cada dia” Harry Hopkins

A proposta do Emprego Digno Garantido

A proposta do Emprego Digno Garantido

Nova bandeira de luta, em tempos de crise: livro de Pavlina Tcherneva demonstra que Estados podem assegurar trabalho com direitos a todos os que o desejem. Garante renda e pertencimento social. Economiza recursos e esforço administrativo

OUTRASPALAVRAS

TRABALHO E PRECARIADO

Por 

 

Imagem: Lit Hub

Resenha do livro The case for a job guarantee, de Pavlina Tcherneva, publicado em 2020 pela Polity Press

“As pessoas não comem no longo prazo, comem cada dia”
Harry Hopkins

 

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É perfeitamente possível assegurar uma sociedade com garantia de emprego. O setor privado empresarial constitui uma ótima fonte, e dominante, e o emprego público complementa. Mas lembremos que no caso do Brasil temos apenas 33 milhões de empregos formais privados, e 11 milhões de emprego público, o que nos deixa longe dos 106 milhões da nossa força de trabalho. Somando os 40 milhões do setor informal, que ganham em média a metade do que ganham os empregados do setor formal, os 15 milhões de desemprego aberto e os 6 milhões de desalentados, temos algo como 60 milhões de pessoas mal inseridas em atividades produtivas, o que significa um gigantesco desperdício de potencial produtivo. Segundo a ideologia primitiva que domina, devemos restringir o emprego público, e aguardar que os mercados resolvam. É a ideologia da austeridade, apoiada na narrativa da responsabilidade fiscal e de concentração de renda e riqueza. O problema não é as pessoas não terem vontade de trabalhar, e sim de não terem oportunidades.

 

O estudo de Pavlina Tcherneva, centrado nos Estados Unidos, mas sem dúvida cheio de lições para qualquer economia, foca precisamente como o governo pode assegurar uma garantia de emprego para todos os adultos, absorvendo, de maneira contracíclica, as flutuações de desemprego no setor privado, com pagamento do piso salarial. O financiamento viria do orçamento federal, mas a gestão se daria no nível local, nos Estados e municípios, apoiando-se inclusive nas organizações da sociedade civil, comunidades organizadas. A ideia geral é que como o desemprego e a subutilização do trabalho representam custos humanos e econômicos muito elevados, assegurar trabalho remunerado constitui uma opção de win-win: no balanço de custos e benefícios, a sociedade ganha em produtividade, em estabilidade social, e em equilíbrios financeiros, inclusive das contas públicas.

Não se trata de tiros no escuro. A Índia, com o National Rural Employment Guarantee Act (NREGA), garante um mínimo de 100 dias de trabalho pago por família por ano, um programa que atinge uma grande massa de subempregados rurais, mas hoje se expandiu para áreas urbanas. Uma das primeiras experiências foi o New Deal americano dos anos 1930, que envolveu 13 milhões de trabalhadores no quadro do Works Progress Administration, com efeito anticíclico: programas de infraestruturas urbanas nas cidades, saneamento básico, expansão de serviços básicos e outras iniciativas permitiram não só melhorar as condições de vida dos habitantes, como geraram demanda com a renda criada, o que por sua vez redinamizou o setor empresarial e o emprego privado. Celso Furtado há tempos mencionava que frente a trabalhadores parados, qualquer atividade é lucro.

A resistência a essa ideia por parte das elites é compreensível. A garantia de um emprego decente oferece aos trabalhadores uma alternativa a remunerações e condições de trabalho indignas que tanto se expandem no quadro de uma grande massa de desempregados e subutilizados, argumento particularmente forte nessa era de precariado. Como o programa é financiado com recursos públicos, o argumento utilizado é que geraria a inflação. No Brasil hoje, em nome de proteger o país da inflação, eleva-se a remuneração dos títulos públicos, essencialmente nas mãos dos 10% mais ricos (85%), e se aprofunda ainda mais a desigualdade. Na realidade, no quadro de uma ampla subutilização da capacidade e do potencial econômico do país como temos hoje (as empresas produtivas trabalham com 30% de capacidade ociosa), expandir atividades de utilidade pública que aumentam a demanda termina ampliando o nível de produção do próprio setor privado, além de contribuir com bens e serviços públicos necessários. Gera-se assim um ciclo virtuoso de ampliação de demanda, redução de desemprego e crescimento econômico.

Em termos administrativos Tcherneva traz numerosos exemplos de como as próprias estruturas de provimento de serviços sociais, inclusive todo o sistema de apoio financeiro aos desempregados, podem perfeitamente ser utilizadas para administrar o programa. De certa forma, em vez de financiar o desemprego, passa-se a financiar a garantia de emprego. As experiências já antigas no Brasil, com “frentes de trabalho”, acabaram com coronéis do Nordeste financiando açudes nas próprias fazendas, em vez de aumentar o capital do território com obras e serviços públicos. Mas numerosas iniciativas como a recuperação de praias em Santos, na “Operação Praia-limpa”, com obras de saneamento na cidade, não só tiveram custos limitados, como tornaram a cidade novamente atrativa para o turismo, dinamizando hotelaria, restaurantes e outros serviços, transformando o que foi uma operação temporária de uso dos desempregados da cidade numa fonte de empregos permanentes.

A visão de Tcherneva é que se trata de considerar o acesso ao emprego básico como um direito humano. (“to reaffirm the access to a basic job as a human right”, p.104). Mais governo? “A preocupação com o tamanho do governo tem o seu contrário. Já temos um ‘big government’, envolvendo centenas de bilhões de dólares, tempo, recursos, e esforço administrativo para lidar com os custos econômicos e sociais do desemprego, subemprego e pobreza. Como notado, o desemprego já foi custeado, possivelmente com custos multiplicados muitas vezes. A Garantia do Emprego reduziria esses custos do governo federal, enquanto também cortaria os custos de famílias, empresas e estados.” (p.101) Keynes já mencionava o absurdo de tanta gente parada com tantas coisas para fazer.

A existência de uma massa de desempregados e subempregados melhora sem dúvida a capacidade, por parte das empresas, de negociar contratações em situação desfavorável para o trabalhador, forçado a aceitar o que lhe propuserem, expandindo inclusive o trabalho informal. Uma garantia de emprego não substitui o setor empresarial privado, mas gera um contexto mais equilibrado, inclusive enriquecendo a sociedade com atividades que não interessam necessariamente ao setor privado. A autora lembra que “nos anos 1930, o programa Tree Army do Roosevelt plantou 3 bilhões de árvores, criou e reabilitou 711 parques estaduais, construiu 125 mil milhas de trilhas para caminhões, desenvolveu 800 parques estaduais novos, controlou a erosão de solo em 40 milhões de acres de solo agrícola, melhorou pastagens em terras públicas, e aumentou a população de animais. Esses projetos inspiraram uma vida nova no movimento de conservação ambiental dos Estados Unidos, antecessor do movimento de proteção climática dos nossos dias.” (p.94) Nesta era de prioridade de políticas ambientais, são ganhos em todos os níveis.

Na Índia o programa exige que as administrações municipais organizem um cadastro de projetos de utilidade social e que sejam intensivos em trabalho. No projeto mencionado de Santos, no levantamento dos desempregados da cidade, foram encontradas numerosas pessoas com curso superior, o que permitiu enquadrar grupos mais amplos, e diferenciar as atividades. Nas propostas de Tcherneva, “Os municípios em cooperação com grupos comunitários poderiam conduzir levantamentos semelhantes, catalogando as necessidades da comunidade e os recursos disponíveis ao desenhar os bancos de empregos comunitários. As organizações comunitárias, ONGs, empreendedores sociais e cooperativas podem também solicitar fundos diretamente no Ministério do Trabalho. Os financiamentos são concedidos com condições de 1) criação de oportunidades de emprego para desempregados; 2) sem efeito de substituição de trabalhadores existentes; 3) atividades realizadas úteis, medidas pelo seu impacto social e ambiental.” (p.86)

A autora faz um levantamento detalhado do custo-benefício do programa. “Assumindo uma visão conservadora sobre as economias realizadas, o impacto do programa sobre o orçamento, no cenário mais elevado, é de menos de 1,5% do PIB por ano. É plausível que ao se contar todas as reduções de gastos no setor governamental para desemprego, junto com todos os efeitos multiplicadores econômicos e sociais, o impacto orçamentário do programa seria neutro, ainda que isso não seria um critério de sucesso já que em momentos recessivos o governo normalmente precisa aumentar os gastos deficitários.” (P.79) Lembremos que no Brasil a evasão fiscal custa cerca de 7% do PIB, e que 80% do aumento da dívida pública, que atinge 90% do PIB, resulta não do uso produtivo dos recursos públicos, por exemplo com políticas sociais e financiamento de infraestruturas, mas com pagamento de juros às grandes instituições financeiras que aplicam na dívida pública. Pagamos o Estado para que transfira dinheiro para grupos financeiros, em vez de assegurar o financiamento do que a sociedade precisa.

“Um trabalhador não tem poder para dizer ‘não’ a um emprego ruim, a não ser que tenha a garantia de uma opção de um bom trabalho com pagamento decente.”(p.62) Neste sentido, um programa de garantia de emprego constituiria uma alavanca para relações de trabalho mais civilizadas. E ao dinamizar a economia no seu conjunto, gera efeitos positivos para o próprio setor empresarial privado. Tcherneva refuta radicalmente a visão ensinada nos cursos de economia, de que um desemprego básico é importante, ou “natural”, para que não haja pressões salariais ou inflação. E traz o impacto dramático do desemprego para as famílias: “O desemprego está entre as causas da desnutrição, de crianças prejudicadas no crescimento, de problemas de saúde mental, resultados fracos na educação e no mercado de trabalho, redução de mobilidade social de esposas e de crianças. Nos Estados Unidos, as crianças sofrem a maior taxa de pobreza e 80% das crianças pobres moram numa família sem um trabalhador empregado.”(p.37)

De certa forma, ao invés de mitigar os impactos, miséria, fome, aumento de criminalidade, de prostituição e outros efeitos de adultos sem saída na vida, trata-se de enfrentar a principal causa, a ausência de um enquadramento laboral que permita tanto o acesso à renda como um sentimento de pertencimento social. Os Estados Unidos têm 4% da população mundial, mas 25% da população carcerária. Um suicídio de cada cinco é ligado ao desemprego. E mesmo nas famílias com emprego, o sentimento da permanente ameaça da destituição, de uma situação em que não poderão proteger os filhos, gera sofrimento e angústia simplesmente desnecessários.

O livro de Pavlina Tcherneva é curto, muito bem documentado, e centrado nas questões práticas: como funciona ou pode funcionar, quanto custa, como se administra, como se financia, quais os resultados já constatados em diversas experiências. Sai muito mais barato tirar os pobres da miséria do que arcar com as consequências. Se ainda por cima nos permite realizar um conjunto de atividades que clamam por braços e cabeças, temos tudo a ganhar. O livro convence.