A guerra de Maurício Grabois por uma Constituição democrática
OSVALDO BERTOLINO
A guerra de Maurício Grabois por uma Constituição democrática
Por Osvaldo Bertolino
Há exatos 77 anos, em 18 de setembro de 1946, a primeira Constituição brasileira de perfil amplamente democrático foi promulgada. Era uma quarta-feira, data da tomada de Camaiori, a primeira vitória da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial dois anos antes, a pedido da “Associação dos ex-combatentes”. Após a solenidade de abertura daquela última sessão, os constituintes foram chamados, um a um, para assinar a nova Constituição. Era um momento solene, de emoção para a bancada comunista.
Falando à Agência Nacional, o senador Luiz Carlos Prestes, líder máximo do Partido Comunista do Brasil – à época, com a sigla PCB –, disse que aquele era um momento de grande satisfação para a bancada comunista e para todos os membros do Partido Comunista do Brasil. “Saímos do regime dos decretos-leis, de falta de garantias para os cidadãos e entramos, assim, no regime da lei, em que o Poder está em condições de garantir os direitos dos cidadãos e fazer justiça”, afirmou. “Para nós, é um momento de festa, porque é o resultado de muitos anos de luta e sacrifícios pela democracia. Somos insuspeitos para nos manifestar sobre a Constituição. Votamos contra o primeiro projeto, contra a maioria das emendas apresentadas e propostas. A Carta constitucional que hoje adotamos, cremos que não está à altura das aspirações e necessidades do nosso povo, mas é uma Carta democrática”, avaliou.
Mesmo com as ressalvas, o PCB seria um defensor intransigente do seu rigoroso cumprimento, concluiu Prestes. Carlos Marighella também falou à Agência Nacional. Segundo ele, apesar da rejeição da maioria das emendas apresentadas pela bancada comunista, com a nova Constituição o país saía oficialmente do regime de opressão, do arbítrio dos ditadores. Jorge Amado igualmente manifestou sua opinião à Agência Nacional. “A bancada comunista concorreu com seu esforço para a Constituição, defendendo o Programa Mínimo com que se apresentou ao eleitorado. E apesar de que a Constituição hoje promulgada ainda não é aquela que o povo reclama é, no entanto, mais um passo na consolidação da democracia. Por isso mesmo, os comunistas serão seus maiores e mais intransigentes defensores.”
A bancada comunista apresentou, em todo o processo constituinte, cento e oitenta emendas e uma grande quantidade de requerimentos. A atuação dos constituintes do PCB centrou-se basicamente na defesa da democracia, dos direitos trabalhistas e sociais, das liberdades políticas e individuais — com destaque para a liberdade partidária, sindical e religiosa — e da soberania nacional.
O presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, pronunciou um discurso saudando a nova Carta. “Todos esperamos que a estrutura de governo que ele (o regime democrático) estabelece, vivificada pelo gênio político da nossa gente, venha a ser um instrumento hábil para que os brasileiros realizem a sua vida comum, alcançando o bem-estar coletivo e beneficiando-se de fecunda paz social”, disse ele a certa altura.
Segundo Maurício Grabois, os quinze “representantes do povo” honraram seus mandatos, travando duros embates com os reacionários que queriam impingir uma Carta constitucional fascista ao povo. Citou o Programa Mínimo de União Nacional defendido pelos constituintes do PCB e a luta pelo parlamentarismo e pela autonomia dos municípios, “negada vergonhosamente pelos demais partidos”. Mesmo com essas limitações, o povo deveria defender intransigentemente a nova Constituição, recomendou.
Pleno da Vitória
A luta dos comunistas pela Assembleia Nacional Constituinte vinha dos combates ao regime do Estado Novo de 1937, quando o governo do presidente Getúlio Vargas outorgou o que o PCB considerou uma Constituição parafascista. Quando a ideia ganhou força, os comunistas defenderam eleições presidenciais após a aprovação da nova Constituição, que sairia da Assembleia Nacional Constituinte.
Essa posição foi oficializada no “Pleno da Vitória”, como ficou conhecida a primeira reunião legal da direção nacional depois de vinte e três anos de vida clandestina, realizada entre 7 e 12 de agosto e de 1945. Em telegrama a Getúlio Vargas, cujo texto fora aprovado no Pleno, o PCB pediu uma reforma da Lei Constitucional que havia sido promulgada pelo presidente da República “a fim de colocar o problema da reconstitucionalização democrática da nação nos seus verdadeiros termos, através de um decreto que convoque no menor prazo a Assembleia Constituinte, como a maneira mais acertada e segura de derrotarmos política e moralmente o fascismo e garantirmos, ampliarmos e consolidarmos o progresso e a democracia para nossa pátria”.
O Informe Político apresentado por Prestes delineou a proposta, segundo ele uma sugestão da Comissão Executiva do Partido. “Reclamamos a convocação de uma Assembleia Constituinte, em que os verdadeiros representantes do povo possam livremente discutir, votar e promulgar a Carta Constitucional que pede a nação”, diz o texto, que reprovou a ideia de eleições presidenciais com a Constituição golpista de 1937 em vigor. “O governo que aí temos é um governo de fato e qualquer eleição presidencial, enquanto estiver em vigor a Carta de 1937, inaceitável para qualquer patriota consciente, nada mais significa do que a simples mudança de homens no poder, a substituição de um governo de fato por outro governo de fato, igualmente armado dos poderes vastos e arbitrários que confere ao Executivo a referida Carta”, lavrou o Informe.
A ameaça de entregar uma Constituição discricionária de brinde ao presidente eleito, por meio da vigência sem reforma do Ato Adicional assinado por Getúlio Vargas em 28 de fevereiro de 1945 instituindo as eleições, era agravada pelos dois candidatos que se apresentaram para a disputa da presidência da República: o general Eurico Gaspar Dutra, que segundo João Amazonas fora um dos assinantes da Carta fascista de 1937, e o brigadeiro Eduardo Gomes. Segundo o Informe apresentado por Prestes, era evidente o desinteresse popular pelas duas candidaturas que traziam a marca de uma politicagem sem princípios, em que predominavam os interesses e paixões pessoais, servindo apenas para dividir o povo e dificultar o processo de organização das agremiações políticas.
Grabois, que seria o principal líder da campanha popular pela Constituinte, disse em comício dia 21 de agosto de 1945 em frente à estátua de Rio Branco, na Esplanada do Castelo na Esplanada do Castelo que o avanço da democracia dependia de amarras jurídicas e políticas que dessem consistência ao arcabouço institucional que sustentaria a democracia no país.
Ou seja: uma Assembleia Nacional Constituinte livremente eleita no menor prazo possível, conforme definiu o “Pleno da Vitória”. “Por quê? O partido Comunista do Brasil lança esta palavra de ordem, a Assembleia Constituinte livremente eleita no menor prazo possível porque quer que o Brasil marche realmente para a democracia. A verdade, como já disse o camarada Luiz Carlos Prestes, é que não se trata de substituição de um homem por outro, de um governo de fato por outro governo de fato. A verdade é que, para marcharmos para a democracia, temos de pôr de lado a Carta de 10 de novembro, Carta reacionária, outorgada contra a vontade do povo”, explicou.
A própria segurança de uma eventual Assembleia Nacional Constituinte estaria em risco com a vigência da Constituição de 1937, disse Grabois, que conferia ao presidente da República a prerrogativa de dissolver o parlamento quando bem entendesse. “Apelo, portanto, para todos os intelectuais democráticos e antifascistas, para os burgueses progressistas, homens e mulheres, jovens e velhos, para o próprio proletariado e para o povo em geral, no sentido de que todos nós, fortemente unidos, lutemos com todas as nossas forças pela eleição de uma Assembleia Constituinte livremente eleita no menor prazo possível”, afirmou.
O apelo era dirigido também ao governo, que deveria reforçar seu perfil democrático para estreitar as margens dos saudosistas do Estado Novo abrigados em seu interior. “O governo, por sua vez, precisa colocar-se novamente ao lado do povo, decretando a medida da Assembleia Constituinte. Para isso, sem dúvida, o governo precisa fortalecer-se com homens de prestígio popular, precisa transformar-se num governo de confiança nacional que, inclusive, terá meios bastantes, sob as condições que de fato se estabelecerão, para vibrar golpes certeiros na inflação e na carestia de vida, no emperrado problema da terra”, destacou.
Desprendimento de Getúlio Vargas
Vargas também estava em campanha pela Constituinte. Falando em um comício do movimento “queremista”, organizado por seus partidários em 3 de outubro de 1945 no Largo da Carioca, ele disse que vinha “recebendo de todos os recantos do país, através de telegramas, cartas e notícias de comícios públicos, insistentes apelos, agora reiterados pelo povo da capital federal naquela demonstração impressionante, para convocar uma Constituinte com poderes expressos para elaborar nova carta básica da organização política do país, isto é, uma nova Constituição”.
Poucos dias antes, o embaixador dos Estados Unidos, Adolf Berle Júnior, havia incitado um golpe de Estado em discurso pronunciado na cidade de Petrópolis. Getúlio Vargas ouviu um orador comentar o assunto no comício antes da sua fala, dizendo que “nenhum diplomata estrangeiro tem o direito de interferir na nossa vida política”. “E isso porque nenhum diplomata brasileiro nunca protestou contra as discriminações raciais americanas”, arrematou. Em seu discurso, Getúlio fez menção ao caso, sem citá-lo diretamente. “Sem dúvida, a eleição de uma Constituinte é um processo democrático, em perfeito acordo com as nossas tradições. Assim se fez em 1891, assim se fez em 1934, não precisamos, para isso, ir buscar exemplos nem lições no estrangeiro. Possuímos também a nossa tradição de democracia política, étnica e social”, disse.
Getúlio mostrou desprendimento para buscar uma solução ao impasse político que se acirrava. “Perante Deus, que é o supremo juiz da minha consciência, perante o povo brasileiro com o qual tenho deveres indeclináveis, reafirmo que não sou candidato e só desejo presidir eleições dignas da nossa educação política, entregando o governo ao meu substituto legalmente escolhido pela nação. Mas, se para realizar as aspirações do povo em relação à Constituinte e abrir com a sua convocação novas possibilidades a uma melhor solução do problema eleitoral, que julgam não estar colocadas em bases democráticas, dissipando assim dúvidas e conciliando todos os brasileiros, for necessário o meu afastamento do governo não hesitarei em tomar essa resolução espontaneamente, com o ânimo sereno de quem cumpre um dever até o fim”, discursou.
O presidente finalizou sua fala em tom de denúncia. “Devo acrescentar que atravesso um momento dramático da minha vida pública e que preciso falar ao povo com prudência e lealdade. A convocação de uma Constituinte é um ato profundamente democrático que o povo tem o direito de exigir. Quando a vontade do povo não é satisfeita, ficam sempre fermentos de desordem e revolta. E nós precisamos resolver o nosso problema político dentro da ordem e da lei. Devo dizer-vos que há forças reacionárias poderosas, ocultas umas, ostensivas outras, contrárias todas à convocação de uma Constituinte. Posso afirmar-vos que, naquilo que de mim depender, o povo pode contar comigo. Quero terminar apresentando-vos os meus agradecimentos por esta demonstração cívica de alta significação. Ela bem demonstra que o povo brasileiro possui educação cívica, sabe o que quer e sabe para onde vai. Diante dessa manifestação, que considero como uma delegação da vontade popular, me sinto largamente compensado das agruras que tenho sofrido por servir com devotamento ao povo brasileiro.”
Fantásticas mobilizações
Dois dias depois, o Secretariado Nacional reuniu-se na sede do PCB, na Rua da Glória número 52, para debater o assunto. Grabois disse que a fala de Getúlio foi uma vitória do povo. “O discurso do presidente Vargas, por ocasião da manifestação de 3 de outubro, foi a primeira grande vitória do povo na sua luta organizada pela convocação das eleições para uma Assembleia Constituinte. O senhor Getúlio Vargas deu mais um passo no caminho da democracia, ao afirmar que satisfará os anseios do povo. Cumpre agora à nação coroar a campanha pró-Constituinte, obtendo através das organizações políticas, sindicais e populares a vitória final, enfrentando todos os reacionários que, com medo do povo, reagem desesperadamente, tentando conduzir o país ao caos e à guerra civil. O resultado positivo da oração do presidente da República, fruto da luta do povo, deve servir de estímulo a todos os patriotas a prosseguirem no combate aos remanescentes do fascismo no país, contra a rearticulação nazi-integralista e pela união nacional”, declarou.
O pronunciamento de Getúlio reforçou consideravelmente a campanha do PCB pela Constituinte. Dali a poucos dias, Grabois estaria diante do que considerou as mais fantásticas mobilizações populares presenciadas por seus olhos. Em 6 de outubro de 1945, um sábado de clima agradável, ele participou do comício pró-Constituinte em Niterói, promovido pelo Comitê Municipal do PCB, que reuniu dez mil pessoas, segundo os organizadores. Afirmou para a multidão que a única maneira de consolidar a democracia no país seria a convocação da Assembleia Constituinte. Grabois, sempre que falava em público, fazia um breve retrospecto da história do PCB, um dado fundamental para respaldar a campanha pró-Constituinte que ganhara as ruas.
Em Niterói ele comentou a posição histórica que os comunistas assumiram frente aos grandes problemas nacionais e ao nazifascismo. Segundo Grabois, foram posições coerentes com as gloriosas tradições do PCB. “Nosso Partido, ao conquistar a legalidade não foi atrás das aventuras políticas dos que queriam arrastar o povo a golpes salvadores. Nosso Partido procurou marchar com o povo, sentindo os seus sofrimentos, auscultando suas reivindicações e procurando resolvê-las. A única solução que encontrou, pois, para tais problemas, foi uma Constituinte livremente eleita. E esta é hoje uma reivindicação de todo o povo, uma conquista do povo organizado”, discursou.
Grabois terminou a fala conclamando todos a não descansarem um só momento até a concretização da maior aspiração do Brasil: a Assembleia Nacional Constituinte. No encerramento do comício foi transmitido um pedido semelhante de Luiz Carlos Prestes, gravado em disco. Quatro dias depois, ele estava falando novamente em um dos comícios pró-Constituinte do PCB que se realizavam no Distrito Federal simultaneamente, dessa vez na Praça Quinze, no Rio de Janeiro.
A campanha pró-Constituinte do PCB se transformou em manifestações de massa, como demonstrou o gigantesco comício realizado no Largo da Carioca em 13 de outubro de 1945, um sábado, com início às 17h30. A essa altura, a bandeira da Constituinte levantada pelo PCB já era segurada por uma ampla gama de partidos e entidades populares.
Quando Grabois começou a discursar, a multidão presente impressionava. “Essa festa tem um grande significado na luta pacífica em que o povo brasileiro está empenhado para a convocação de uma Assembleia Constituinte livremente eleita”, iniciou. “Este comício tem um significado novo porque representa uma pujante demonstração de unidade, pois aqui estão presentes neste ato partidos políticos, Comitês Populares, o Movimento Unificador dos Trabalhadores, todos reivindicando o cumprimento da grande aspiração do povo: a convocação de uma Assembleia Constituinte. Nenhum acontecimento em nossa história teve a profundidade e a envergadura, como movimento popular, como está tendo em todo o Brasil a campanha nacional pela Constituinte. Nem na luta pela Abolição, nem a campanha republicana. Nem mesmo a vitoriosa jornada da anistia que arrancou dos cárceres os melhores filhos do povo alcançou tal mobilização de massas”, discursou.
O progresso da abertura democrática, lembrou Grabois, merecia os mais entusiasmados aplausos, mas era preciso consolidar aquela marcha. “Há cinco meses saímos de uma noite negra, em que não tínhamos liberdade para o funcionamento dos partidos políticos, liberdade de reunião, para uma nova situação em que estas liberdades fundamentais foram conquistadas. Incontestavelmente vivemos num clima de democracia. Entretanto, muito falta ainda para que consolidemos definitivamente a democracia em nossa terra. Precisamos consolidá-la. E somente através de uma Assembleia Constituinte é que isto conseguiremos. O povo organizado o conseguirá.”
Velhas raposas políticas
O país havia entrado em um processo que não deixava espaço para meio-termo: era o avanço ou o retrocesso. Existia no país, na visão de Grabois, uma fenda que separava duas tendências radicalmente opostas. “A luta pela Assembleia Constituinte está assumindo tal importância para o destino da democracia em nossa terra que polariza todas as forças verdadeiramente democráticas de um lado — o da Constituinte — e as forças reacionárias e pró-fascistas do outro lado. O que há de mais reacionário em nosso meio, as velhas raposas políticas, os remanescentes nazi-integralistas e os agentes do capital estrangeiro colonizador, se unem abertamente contra a convocação da Constituinte a fim de impedir a consolidação da democracia. Ainda há pouco tivemos uma demonstração na intervenção indébita do representante da potência amiga, o qual falou não como representante do ‘bom vizinho’, e sim dos elementos mais retrógrados do seu país, aqueles mesmos que combateram a política do grande Roosevelt.”
Sob intensos aplausos em cada pausa, Grabois prosseguiu o discurso pedindo ao presidente Getúlio Vargas compromisso efetivo com a democracia. “O governo, que nesses últimos tempos tem dado largos passos para a democracia, precisa continuar a marchar nesse sentindo, convocando a Assembleia Constituinte. O povo espera novos atos democráticos do governo e não medidas que significam retrocessos na marcha democrática em que o Brasil está empenhado. Por isso, estamos contra o último decreto do governo que modifica a Lei Eleitoral, marcando eleições simultâneas para presidente da República e governador, para o parlamento e as assembleias estaduais. Sem dúvida esse decreto está em profunda contradição com o discurso do senhor Getúlio Vargas pronunciado a 3 de outubro.”
Para Grabois, as vacilações de Getúlio comprometiam os esforços unitários na busca de uma solução pacífica da crise política. “Se o povo luta pela liquidação da Carta parafascista de 37, não é possível compreender que, em pleno período de derrota do nazismo, se dê direito a que vinte e um interventores outorguem Cartas do tipo parafascista da de 37 aos estados da Federação. Essa lei em nada facilitou a solução da crise política e institucional brasileira. Pelo contrário. Veio trazer mais confusão e fornecer elementos para os golpistas e reacionários continuarem a sua trama contra a ordem e a tranquilidade indispensáveis à consolidação da democracia. Fazemos esta crítica para mostrar ao governo que este não é o caminho da democracia.”
As últimas palavras foram uma espécie de declaração política diante da perspectiva de agravamento da crise política. “O verdadeiro caminho é o da Assembleia Constituinte para prosseguir no caminho no qual o governo contará com o apoio decidido do povo e, particularmente, do Partido Comunista do Brasil. Não há o que temer dos golpistas e conspiradores. O povo organizado afastará qualquer ameaça contra a ordem, porque a desordem só interessa aos fascistas. Nós, comunistas, reafirmamos nossa política inabalável de defesa da ordem e da tranquilidade. Não admitimos agitações estéreis. Lutaremos com o povo organizado. À frente do proletariado e do povo obteremos, no mais curto prazo, a convocação da Assembleia Constituinte.”
Manifestação no Palácio da Guanabara
O decreto de Getúlio foi contestado pela multidão no mesmo dia, na cara dele, no Palácio da Guanabara, a residência oficial da presidência da República. Após o comício, uma marcha gigantesca, anteriormente programada, percorreu o trajeto até lá empunhando archotes, bandeiras e cartazes alusivos à Constituinte. Dos ônibus, bondes, praças e janelas ecoavam saudações e se viam acenos aos manifestantes. À frente da marcha ia uma caminhonete com alguns dirigentes do PCB ao seu lado — entre eles, Grabois —, seguida de uma banda de música executando a marcha “Constituinte”, palavra repetida ininterruptamente em diferentes tons e formatos.
O Palácio Guanabara foi tomado pela multidão, que ocupou seus jardins, cujo espaço não foi suficiente para a presença de todos os manifestantes. A manifestação atingiu o auge quando Getúlio apareceu. A Tribuna Popular descreveu a cena assim: “Milhares e milhares de bocas prorromperam em estrondosas aclamações e o grito de ‘O povo quer a Constituinte!’ reboou uníssono e incessante, um grande grito histórico traduzindo os melhores sentimentos do povo, cada vez mais democrata e patriota. Foguetes estouravam no ar e extraordinária alegria dos homens e das mulheres, dos velhos e jovens subindo aos céus.”
Em seu discurso, o presidente lembrou o que dissera em 3 de outubro sobre a existência de poderosos reacionários contrários à convocação da Assembleia Constituinte, medida considerada por eles um golpe contra as eleições marcadas para 2 de dezembro de 1945. Segundo Getúlio, ele não podia tomar decisões que aumentassem a intranquilidade que a luta política trouxera ao país. O assunto, afirmou, precisava ser encaminhado com sabedoria e prudência, ouvindo todos os partidos políticos, as classes trabalhadoras e produtoras, todas as forças organizadas, enfim, para que elas assumissem as responsabilidades por suas atitudes perante a opinião pública.
Enquanto Getúlio falava, a multidão gritava pedindo a Constituinte. Impávido, ele prosseguiu: “Eu nunca assumiria a responsabilidade de praticar um ato que viesse provocar a luta e o derramamento de sangue dos brasileiros.” Cada um deveria estar ciente de que responderia, dali em diante, pelos seus atos, disse o presidente. “Eu vos prometo fazer essa consulta para que cada corrente de opinião assuma perante o povo a parcela de responsabilidade que lhe cabe”, afirmou.
Segundo o presidente, cada uma delas precisava dizer às claras se estava de acordo com os clamores populares ou se apoiava as correntes reacionárias. Foi aplaudidíssimo. Ainda encoberto pelos aplausos, Getúlio terminou: “Não vos devo, porém, prometer senão aquilo que posso fazer.” A multidão deixou o Palácio da Guanabara satisfeita com as palavras do presidente e gritando: Constituinte! O povo exige a Constituinte! O povo quer a Constituinte! Uma parte foi para a Praça do Russel, onde um novo comício foi realizado, com discursos até as 23h30.
Complô contra Getúlio Vargas
Grabois detectou que a ameaça do “comunismo” era um pretexto para as forças golpistas e se movimentou para desfazer a pecha colada por eles nas manifestações pró-Constituinte. Em artigo na Tribuna Popular, ele disse que não se podia esconder o papel do Partido Comunista do Brasil, uma das forças mais poderosas das que se batiam pela convocação da Assembleia, mas era errado dizer que a vitória da campanha beneficiaria apenas os comunistas. Não havia como negar, disse Grabois, que o PCB era o responsável pelo movimento que empolgava o país, fruto do trabalho das forças mais desenvolvidas politicamente, que compreendiam a realidade e interpretavam os acontecimentos de maneira justa, apresentando soluções adequadas para os problemas fundamentais do povo.
Ao tocar nesses problemas, os comunistas despertaram a consciência de amplas camadas do povo, que segundo Grabois abrangiam a classe média e a burguesia progressista. O caudal de povo nas ruas nas principais cidades do país não era um movimento espontâneo, mas resultado da visão descortinada pela política do PCB. “Não negamos que a Constituinte será também uma vitória dos comunistas. A vitória, porém, será de todas as forças democráticas. Isto compreendem outras correntes políticas, que sentindo os anseios e as aspirações das massas se incorporam à luta pela Assembleia Constituinte”, escreveu. Era uma luta política que precisava ser corretamente orientada para livrar o país da ameaça golpista e ao mesmo segurar os ímpetos dos que defendiam a passagem do carro à frente dos bois.
Na verdade, Getúlio Vargas estava sentado no epicentro da crescente tempestade que se formava no país. Ele não desconhecia as minúcias dos detalhes que transformava o desenrolar da crise em complô. O problema era que o Ato Adicional de 28 de fevereiro de 1945 instituindo as eleições se transformou em amarras que o deixava de pés e mãos atados. Só um gesto ousado, reformando a decisão anteriormente tomada, poderia dar vazão à torrente de manifestações que exigiam a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Getúlio jamais pôde explicar por que decidiu levar sua indecisão até o limite, quando já não havia mais forças para sustentá-lo na presidência da República.
Preso entre a força das massas, impulsionadas pelo PCB, e os grupos que o ameaçavam, resolveu resignar-se quando viu que não havia mais volta e a contenda prosseguiria sem o seu protagonismo — o presidente foi deposto, em 29 de outubro de 1945, exatamente por conta das suas concessões democráticas. Os golpistas temiam que ele sucumbisse à tática do PCB de marcar as eleições presidenciais para depois da promulgação de uma nova Constituição, o que poderia significar a consolidação do processo de democratização do país.
Segundo Pedro Pomar, o golpe, aparentemente dirigido contra Getúlio Vargas foi na verdade contra o PCB. Ao não reagir, como queriam os comunistas, o presidente revelou sua origem de classe, seu desprezo pelo povo, a traição que mais uma vez cometia contra as massas que nele confiavam. Tanto os generais golpistas quanto Getúlio, segundo Pomar, quiseram atingir um duplo objetivo. Os golpistas, ao mesmo tempo em que sonhavam com uma nova ditadura pretendiam liquidar o PCB com um banho de sangue sobre o movimento operário nascente.
O líder do golpe, general Góis Monteiro, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, falou abertamente que o golpe foi motivado pela influência que o PCB exercia sobre a grande mobilização popular alcançada com a campanha pró-Constituinte. “Nessa altura dos acontecimentos (quando houve o golpe) e percebendo os perigos para o país decorrentes das marchas e contramarchas, declarei várias vezes, pela imprensa e ao próprio senhor Getúlio Vargas, que não era possível pensar-se numa Assembleia Constituinte a não ser que todas as correntes partidárias estabelecessem um consenso geral nesse sentido, pois, do contrário seria deflagrar um movimento subversivo, porquanto não podiam admitir as Forças Armadas que fosse adotada a iniciativa do Partido Comunista”, declarou o general.
Nos dias seguintes ao golpe, o projeto de democratizar o país com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte dançou em cima do muro. Os comícios foram proibidos. A Tribuna Popular foi invadida pela polícia e suas instalações destruídas. Sedes do PCB foram vandalizadas em diferentes localidades do país. Sindicatos e Comitês Populares sofreram todo tipo de ameaças. Até os integralistas se assanharam e partiram para as provocações. Em Pernambuco, nas cidades de Goiana e Arcoverde, grupos deles invadiram as sedes do Partido de armas em punho.
Risco de guerra civil
O Partido Comunista do Brasil não dança conforme a música. Grabois falava no palanque instalado no Largo do Machado em 12 de novembro de 1945, uma quarta-feira à noite, tão logo a proibição de comícios pró-Constituinte em todo o território nacional foi revogada. Recebido com ovação pela multidão, ele explicava que a troca de comando no governo não alterava a política do PCB. A campanha pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte entrava em uma nova fase, um ambiente que Getúlio Vargas caracterizou como angu com muita pimenta, segundo o marechal Oswaldo Cordeiro de Farias, que fora companheiro de Prestes na Coluna Invicta, o responsável por entregar ao presidente deposto o ultimato dos generais golpistas sob o comando de Góis Monteiro.
Cinco dias após o golpe, uma nota do PCB disse que a situação criada levava “a nação ao risco iminente da guerra civil, do terrível e desnecessário derramamento de sangue de seus filhos, que só não aconteceu devido à atitude firme e consequente do nosso Partido e de outras forças populares”. Pouco depois, em 10 de novembro de 1945, uma nova nota aplaudia José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) que assumira o posto de Getúlio, pelos “atos positivos e as manifestações de caráter democrático” que adotara. Decretos foram revogados. Artigos autoritários da Constituição foram suprimidos. E as constituições estaduais outorgadas pelos interventores foram derrogadas. O tom era bem mais ameno do que o da nota anterior.
Na verdade, as forças dos golpistas não permitiram que eles fossem além da deposição de Vargas. Tanto que no mesmo dia 10 de novembro de 1945 o PCB obteve o registro como partido apto a participar das eleições. No comício do Largo do Machado, que estava sendo realizado simultaneamente com outros dois, um na Vila Isabel e outro em Madureira, Grabois citou a última nota do Partido e disse que ao povo o que interessava, naquela nova conjuntura, era apoiar o novo governo, fortalecendo-o para que ele pudesse marchar firmemente para a democracia, para que ele pudesse “opor-se à pressão dos remanescentes fascistas”. Aquela era a política que o Partido Comunista do Brasil indicava ao povo. Não era uma política oportunista, enfatizou. “A nossa música é a música do povo e a nossa política é aquela que interessa realmente ao povo. Continuaremos a pregar a ordem e a tranquilidade. A desordem só pode interessar aos fascistas”, discursou.
O PCB, que nada tinha a ver com o angu, também rechaçou uma manobra da União Democrática Nacional (UDN), do brigadeiro Eduardo Gomes, que propunha a reforma da Constituição de 1937 como alternativa à convocação da Constituinte. Grabois não apostava uma moeda furada naquela jogada. No comício do Largo do Machado ele disse que a medida seria um retrocesso de onze anos na vida política do país. Significava lançar mão de uma Carta que vigorava em uma época de ascensão do fascismo. “Hoje, estamos vivendo em 1945 e não em 1935, 37 ou 39. Já não existem o exército nazista nem a Gestapo. Hitler e Mussolini estão mortos. O mundo marcha para a democracia”, discursou.
Dias que abalaram o Brasil
A segunda-feira, 12 de novembro de 1945, foi um dia de festa. A notícia dando conta de que o governo reconhecia a vontade popular e transformava em lei a reivindicação de convocação da Assembleia Nacional Constituinte se espalhou rapidamente pelo país e foi festejada efusivamente. No Rio de Janeiro, o Comitê Metropolitano do PCB correu para preparar um “comício monstro” no mesmo dia, no Largo da Carioca. O povo seria convocado por rádio para congratular-se com o governo pela decretação da Constituinte. Na verdade, a decisão do presidente se deu na forma de promulgação da Emenda Constitucional número 13, que delegava poderes constituintes aos parlamentares que seriam eleitos em 2 de dezembro.
Todos os compromissos dos comunistas assumidos anteriormente foram transferidos para dar lugar aos preparativos das comemorações. A solenidade de apresentação dos candidatos do PCB, anteriormente marcada para aquele dia no Instituto Nacional de Música, transformou-se em apresentação da plataforma dos comunistas para a Constituinte. Na sede do PCB, Grabois comentou a decisão. “O decreto concedendo poderes constituintes ilimitados ao futuro parlamento, a ser eleito em 2 de dezembro, vem demonstrar a justeza da causa defendida pelo povo brasileiro e liderada pelo Partido Comunista do Brasil, por uma Assembleia Constituinte. É uma legítima vitória do povo brasileiro e o governo deu um passo decisivo para a sua consolidação como um governo que quer marchar para a democracia e quer o apoio popular”, afirmou.
Prestes também, ao saudar a decisão, rememorou a campanha que tinha conquistado a consciência do povo. Mas muitos passos ainda precisavam ser dados para a consolidação da democracia no Brasil. “A convocação da Constituinte, hoje decretada, é uma vitória do proletariado e do povo. Com esse ato, o governo reconhece o desejo das amplas massas manifestado numa das mais memoráveis campanhas pela democracia em nossa terra”, comentou.
Ressalvou, no entanto, que o presidente da República em exercício poderia ter tomado alguns cuidados para garantir um processo efetivamente democrático. Um dos problemas apontados por Prestes foi a transformação da Constituinte em poder legislativo ordinário, depois de promulgada a Constituição. Tratava-se de matéria constitucional, algo, portanto, de competência exclusiva da Constituinte. Outro erro, apontou Prestes, era o estabelecimento de condições iguais para a atuação de deputados e senadores, eleitos sob critérios diversos — os primeiros pelo voto proporcional e os segundos pelo voto majoritário. Seria mais democrático se todos fossem eleitos pelo sistema proporcional.
Cinco dias depois de promulgada a Emenda Constitucional que oficializou a Assembleia Nacional Constituinte, Prestes, ladeado por Grabois, João Amazonas e Diógenes Arruda Câmara, anunciou o nome do engenheiro Yeddo Fiúza como candidato a presidente da República pelo Partido Comunista do Brasil. Nascido em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e radicado na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, onde foi prefeito, Fiúza, que também fora diretor-geral do Departamento Nacional de Estrada de Rodagens (DNER), não era membro do PCB. Foi apresentado por Prestes a uma pequena multidão formada por militantes, aliados e um numeroso grupo de jornalistas como o candidato de várias correntes políticas, o candidato do proletariado e do povo.
Segundo Grabois, as memoráveis campanhas como as da anistia e a grande jornada vitoriosa pela convocação da Assembleia Constituinte fizeram o povo tomar consciência dos seus direitos. Na curta campanha eleitoral, chamada pelo PCB de “quinze dias que abalaram o Brasil”, aquela torrente de público que compareceu aos comícios, encheram os comunistas de confiança, segundo ele. O PCB elegeria catorze deputados – entre eles, Grabois – e um senador, Luiz Carlos Prestes. Yeddo Fiuza obteve 9,7% dos votos presidenciais. A assembleia Nacional Constituinte seria palco de uma épica batalha dos comunistas por avanços democráticos no país, descrita na biografia Maurício Grabois – uma vida de combates. Após a promulgação da Constituição, ele assumiu o posto de líder do PCB na Câmara dos Deputados.