*A esquerda está sem voz*

*A esquerda está sem voz*

*A esquerda está sem voz*

Ruth de Aquino

 

A esquerda está sem voz" foi o título de uma entrevista que fiz há quase dez anos com o filósofo francês Régis Debray. Não poderia ser mais atual, numa semana em que a ultradireita dá uma lavada na eleição para o Parlamento Europeu e assombra a França e o mundo. O partido de Marine Le Pen recebeu mais que o dobro de votos do partido de Macron.

 

É inédito esse avanço da direita radical na França. Também é inédita e ousada a reação de Macron. Dissolveu o Parlamento francês e antecipou as eleições legislativas para 30 de junho. Quer medir o desejo do povo. Pode ser que, pela primeira vez na História, um presidente francês da centro direita neo liberal precise conviver com um primeiro-ministro de ultradireita. Essa é a chamada coabitação, num sistema semipresidencialista.

 

Se a França parece distante, basta entender o porquê de tudo isso para mudar de ideia. A inflação, o desemprego, o custo das reformas ambientais e a imigração comandam a maioria dos votos na ultradireita. O discurso nacionalista e populista empolga as massas. Lá, como aqui, no Brasil.

 

Quando releio minha conversa com Debray, hoje aos 83 anos, acho suas respostas premonitórias. “A migração de massas será o fenômeno mais grave do século 21 e lançará os pobres nos braços da extrema direita”. Sobre a esquerda: “A social-democracia está morta e sem voz, engolida pelo sistema financeiro e por um capitalismo degenerado”. Sobre os jovens: “Na França, os mais brilhantes não entram na política, vão para as finanças, para os bancos e o mercado”. Soa familiar.

 

Debray é impiedoso com a carreira política. “Hoje, é para os imbecis. Ou para quem quer saciar uma vaidade, o desejo de ser amado; é um arrivismo social”. As campanhas eleitorais são “todas mentirosas”. Numa democracia, a única forma de chegar ao poder é fazendo promessas. “O político de esquerda promete justiça e igualdade. O de direita promete eficiência, lucro e sucesso. Normalmente, as promessas não são cumpridas”.

 

O eleitor tampouco é visto com simpatia. Há uma busca universal do sucesso pessoal. O valor do dinheiro aliena os valores da consciência. “O indivíduo passa a se concentrar em como ganhar mais que o vizinho, ser mais famoso. E adeus aos valores coletivos, ao sacrifício por um partido ou uma nação”. O pessimismo do filósofo não é gratuito. A ascensão da ultradireita já se desenhava há tempos.

 

A trajetória de vida de Debray não foi nada ortodoxa. A primeira vez que veio ao Rio foi em 1964, após o golpe militar, para contatar Marighella. Tinha 24 anos. Era só uma passagem para Cuba, onde ficou amigo de Fidel.

 

Debray lutou ao lado de Che Guevara, foi preso na Bolívia. E libertado, depois de quatro anos de cárcere, graças a intelectuais liderados por Sartre. Isso não o impede de recusar o rótulo de intelectual: “São todos uns farsantes”. De revolucionário, tornou-se reformista.

 

Na França, a esquerda está diante de uma grande contradição. As camadas mais pobres são as mais alérgicas à entrada de imigrantes, porque arruínam suas chances de emprego e mudam seu modo de vida. Os ricos não se importam tanto. Os imigrantes não se instalarão na Place de la Concorde. Irão para as banlieues, a periferia.

 

É um paradoxo louco, diz Debray. O eleitorado da esquerda tradicional é hoje formado por privilegiados. E o eleitorado da extrema direita é formado pelo povão. O comunista do passado vota em Marine Le Pen. “O mundo sem fronteiras é um pesadelo, não um sonho”, resume Debray, para quem o poder político consiste em “administrar ilusões”.

 

A esquerda parece não entender o que está em jogo. Repete erros com uma convicção assustadora e suicida. E o centro e a direita perderam seus discursos para o populismo delirante de figuras patéticas como Trump, Milei e Marine Le Pen, que remetem ao fascismo. A ultradireita assombrou o mundo esta semana – e não vai parar por aí.