A captura de bens públicos, comuns ou globais por atores privados
A captura de bens públicos, comuns ou globais por atores privados
Publicado porIso SendaczPublicado emSem categoriaTags:Corrupção, Estado nacional, Monopólio, Políticas Públicas
O colunista do IREE Boaventura de Sousa Santos traz extensa análise sobre como interesses privados cada vez mais concentrados procuram se adonar globalmente dos institutos públicos e sociais.
Transcrevemos um capítulo da segunda parte de O poder cru e o poder cozido, artigo desenvolvido em torno do combate à moderna corrupção seletiva.
A captura dos bens e objetivos comuns por interesses privados poderosos é uma constante nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais em que vivemos desde o século XVII. A captura muda de formas e de intensidade segundo os momentos históricos e os contextos sociais ou políticos. A intensidade e o carácter explícito (ou mesmo glorificador) dessa captura são talvez os traços mais característicos das relações internacionais contemporâneas e a ONU e as suas agências são os campos privilegiados da captura.
Não vem ao caso analisar os casos de captura mais antigos: o esvaziamento das agências da ONU sobre o monitoramento econômico internacional e a sua substituição efetiva pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, instituições multilaterais onde dominam os interesses e os critérios das economias centrais e dos investidores e credores internacionais; ou o caso das políticas ambientais e de controle climático que desde a década de 1990 são fortemente influenciadas pelas indústrias que mais afetam o clima, o sector industrial extrativista (empresas petrolíferas, mineradoras, etc.). Quero apenas mencionar os casos mais recentes que, em meu entender, levam a captura a novos extremos e que, aliás, se intensificaram com a pandemia da COVID-19. Refiro três casos a título de ilustração.
Sobretudo nos últimos vinte anos, o Fórum Económico Mundial (FEM), sediado em Davos, tem vindo a promover a “Agenda Davos”. O objectivo é transformar os problemas políticos, sociais, económicos e ambientais com que se enfrenta o mundo – causados em grande medida pela acumulação capitalista desenfreada – em problemas técnicos e oportunidades para novos negócios, como, por exemplo, o capitalismo digital, a economia verde ou a transição energética. A luta ideológica fundamental do FEM consiste em retirar de cena qualquer ideia credível de alternativa real à gravíssima crise ecológica e social que o mundo enfrenta. Essa alternativa existe e circula entre a juventude mundial e os movimentos sociais. Trata-se da transição urgente para uma sociedade pós-capitalista, pós-racista e pós-sexista, assente na ideia de que a natureza não nos pertence, nós é que pertencemos à natureza.
Depois da pandemia, a “Agenda Davos” assumiu uma nova versão, o “Great Reset”, o “Grande Recomeço”. Esta nova versão leva ainda mais longe a captura privada do futuro comum, pois visa subordinar as instituições multilaterais às decisões de organizações sigilosas e não sujeitas a qualquer escrutínio público, controladas por um grupo restrito das maiores corporações e da elite super-rica. É destes centros de decisão, sem qualquer vigilância cidadã ou democrática, que devem sair os comandos decisivos para as políticas dos governos (democráticos ou não democráticos, uma alternativa cada vez menos relevante) e para as instituições da ONU das próximas décadas.
O segundo caso de captura ocorre no domínio da saúde e assumiu nova intensidade com a pandemia. O “teatro de operações” é a Organização Mundial de Saúde. Para avaliar a dimensão da captura basta ter em conta que, durante o período em que os EUA (presidência de Donald Trump) abandonaram a OMS, a Fundação Bill e Melinda Gates passou a ser o maior financiador desta instituição. Esta é apenas a ponta do iceberg da crescente preponderância da elite super-rica e das grandes corporações na gestão de bens públicos globais (como é o caso da saúde).
Na mesma área é igualmente conhecida a influência das grandes empresas farmacêuticas (a Big Pharma, sendo as cinco maiores, segundo o critério de capitalização de mercado, Johnson & Johnson, Roche, Pfizer, Eli Lilly, Novartis). Assim se explica que, apesar da gravidade da crise pandémica que o mundo atravessa, não tenha sido possível suspender os direitos de propriedade intelectual (vulgo, patentes) sobre a produção das vacinas. Tal suspensão seria fundamental para vacinar rapidamente toda a população mundial, o único meio de garantir a protecção global contra o vírus. Apesar de se ter criado um movimento mundial a favor da vacina popular, prevaleceu a vacina capitalista.
O terceiro caso ocorre noutro campo decisivo para o bem-estar da população mundial, a alimentação. Neste domínio têm-se enfrentado na ONU duas visões opostas: a da Via Campesina, que agrega centenas de organizações e cerca de 200 milhões de camponeses, trabalhadores rurais e pequenos agricultores; e a das grandes empresas agroindustriais apoiadas pelo FEM e, mais recentemente, pela Fundação Gates através da sua iniciativa “Revolução Verde para África” (AGRA, acrónimo da designação em inglês).
A Via Campesina advoga a soberania alimentar: alimentação saudável, a reforma agrária, o direito dos camponeses a controlar os seus territórios, as sementes e a água, e a promoção da agroecologia. Por sua vez, o FEM e a AGRA defendem a segurança alimentar, promoção de sementes geneticamente modificadas e híbridas, uso de fertilizantes químicos, subsídios às grandes empresas agroindustriais. Estas duas propostas, que contrapõem os interesses dos camponeses pobres aos interesses do grande capital agroindustrial, digladiaram-se durante muitos anos dentro da ONU e na opinião pública mundial. Infelizmente, tudo leva a crer que a proposta agro-industrial acabou por prevalecer na ONU, a ajuizar pela Cimeira dos Sistemas Alimentares organizada pela ONU em Nova Iorque em Setembro passado. Nesta Cimeira, o Secretário-geral da ONU anunciou a parceria estratégica entre a ONU e o FEM para “resolver o problema da fome no mundo”.
O intelectual português Boaventura de Sousa Santos é sociólogo, poeta e diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.