A cobertura que camufla o coronavírus

Uma camada de açúcares cobre o patógeno e ajuda a escondê-lo de nosso sistema imunológico.

A cobertura que camufla o coronavírus

A cobertura que camufla o coronavírus

Uma camada de açúcares cobre o patógeno e ajuda a escondê-lo de nosso sistema imunológico. Agora, graças aos supercomputadores, podemos vê-la pela primeira vez e traçar um quadro totalmente diferente do coronavírus

 

A proteína espícula do SARS-CoV-2 'nua' (à esquerda) e coberta com a camada de glicanos (açúcares) que a protegem e a escondem de nosso sistema imunológico (direita).
A proteína espícula do SARS-CoV-2 'nua' (à esquerda) e coberta com a camada de glicanos (açúcares) que a protegem e a escondem de nosso sistema imunológico (direita).LORENZO CASALINO, ZIED GAIEB; AMARO LAB, UNIVERSIDAD DE CALIFORNIA SAN DIEGO.

 

 

FERNANDO GOMOLLÓN-BEL

 

Os açúcares são as biomoléculas mais abundantes do mundo. Na verdade, estima-se que representem 70% do peso de toda a matéria viva do planeta. Entre suas muitas funções, os glicanos — cadeias de açúcar — são responsáveis por algo que muitas vezes é deixado de lado: a comunicação entre as células. Quase todas as estruturas biológicas —como membranas celulares e proteínas — são cobertas por uma camada de glicanos. Essa camada externa é essencial para os processos infecciosos, nos quais um agente patógeno interage diretamente com a superfície de nossas células. E o SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19, não é exceção.

Aproximadamente 70% de toda a superfície da proteína espícula é revestida de glicanos, como mostra um estudo liderado por Rommie Amaro, da Universidade da Califórnia, em San Diego. “Os açúcares fogem do que vemos no microscópio”, explica Amaro. Existem técnicas, como a microscopia crioeletrônica, capazes de “congelar” as biomoléculas para que se possa observá-las. “Mas os açúcares se movem rápido demais para serem vistos com essa tecnologia”, acrescenta. Por isso, os pesquisadores decidiram usar simulações de computador para reconstituir o esmalte que cobre a proteína espícula e, assim, entender seu papel durante a infecção.

No caso do SARS-CoV-2, os açúcares são duas vezes mais essenciais. Primeiro, porque eles estabilizam a espícula em um formato que permite que se conecte com os receptores ACE2 em nossas células, o processo que inicia a infecção. Amaro e sua equipe mostram que, ao retirar alguns glicanos da superfície, a proteína espícula se desestabiliza e, além disso, a ligação com esses receptores se enfraquece. “Esta é a primeira vez que um açúcar é identificado como parte do processo de fusão”, disse Elisa Fadda, pesquisadora da Universidade Maynooth na Irlanda e coautora do estudo. A cobertura de açúcares também ajuda a camuflar o coronavírus de nosso sistema imunológico. “Todas as nossas células são revestidas de açúcares”, explica Fadda. “O coronavírus desenvolveu um revestimento indistinguível do de nossas próprias células e consegue passar despercebido. “Se a proteína passasse por ali ‘nua’, nosso sistema imunológico a reconheceria imediatamente como uma ameaça. Graças aos glicanos, o vírus não parece estranho.” Essas novas imagens da proteína espícula do coronavírus são muito diferentes das que estamos acostumados a ver. Nesta imagem, a proteína espícula é representada em azul claro e seu revestimento de açúcar em azul escuro (veja a imagem superior).

Os resultados da equipe de Amaro dão pistas sobre possíveis tratamentos contra a covid-19. A cobertura é diferente nas diferentes partes da proteína espícula. A parte superior tem 62% da superfície revestida, deixando mais espaço disponível para tratamentos com moléculas grandes, como anticorpos monoclonais, do que a parte inferior. Simulações de computador também revelam que esse “esmalte” é menos eficaz em proteger a proteína de pequenas moléculas, que poderiam acessar facilmente cerca de 80% da área superficial. Descobrir as partes mais vulneráveis da espícula pode ajudar os pesquisadores a encontrar medicamentos mais eficazes contra a covid-19.

O estudo dos glicanos que revestem o coronavírus também é essencial para o desenvolvimento de vacinas. As vacinas Pfizer-BioNTech, Moderna e AstraZeneca usam nosso próprio maquinário celular para criar cópias da proteína espícula do coronavírus e gerar uma resposta imunológica sem que tenhamos que sofrer da doença. Nos últimos meses, foram desenvolvidas técnicas que permitem analisar os diferentes açúcares que circundam essa proteína “chamariz” gerada pelas vacinas e compará-los com a espícula real do SARS-CoV-2. Apesar de em ambos os casos serem as nossas células que fabricam as proteínas, os seus revestimentos são ligeiramente diferentes, de acordo com alguns estudos preliminares. Isso faz com que as vacinas às vezes gerem chamarizes imperfeitos que induzem uma resposta imunológica mais fraca. “As diferenças são mínimas, em nenhum caso tão dramáticas a ponto de afetar a eficácia das vacinas”, diz Fadda. “O importante é entendê-las, estudá-las e aprender para o desenvolvimento de futuras vacinas”, acrescenta. Na verdade, várias equipes já estão pesquisando novas vacinas destinadas a evitar esses problemas, e algumas estão na última fase de testes clínicos.

É curioso como, desde que os primeiros casos foram detectados em Wuhan, há pouco mais de um ano, ouvimos falar de proteínas, RNA, DNA e até mesmo de lipídios — os componentes do invólucro do coronavírus que podemos destruir usando água e sabão—, mas ninguém menciona a importância dos açúcares. “É bastante comum”, explica Carme Rovira, professora de pesquisa do ICREA na Universidade de Barcelona. “Eles são freqüentemente esquecidos, mesmo quando a célula e seus componentes são desenhados em livros didáticos.” E, de fato, as membranas que circundam nossas células estão completamente cobertas por açúcares.

Em 1900, o biólogo austríaco Karl Landsteiner descobriu os grupos sanguíneos e, graças a isso, em 1907 foi realizada a primeira transfusão de sangue com sucesso. No entanto, levou várias décadas para que se descobrisse que nossos glóbulos vermelhos são revestidos por cadeias de açúcares características dos grupos A, B, AB e O. “Esses glicanos são como códigos de barras, nossas células podem lê-los para se identificarem entre si, e também detectar ameaças, como bactérias e vírus patogênicos”, explica Rovira. Por isso, receber uma transfusão de alguém com um grupo sanguíneo diferente pode causar reações imunológicas adversas.

O funcionamento de uma de nossas melhores armas contra a gripe, o antiviral Tamiflu (oseltamivir), também está relacionado com a química dos açúcares. Os vírus da gripe usam uma proteína em seu invólucro, a neuraminidase, para detectar um açúcar do “esmalte” de nossas células —o ácido siálico— e entrar em nossas células, promovendo a infecção.

“A estrutura química do Tamiflu é muito semelhante ao ácido siálico, por isso engana as proteínas do vírus da gripe, bloqueia-as e retarda a progressão da doença”, acrescenta Rovira. Uma boa compreensão da estrutura, da posição e do comportamento dos açúcares é fundamental para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos eficazes, tanto contra a covid-19 como para outras doenças. “As células cancerígenas, por exemplo, têm uma camada muito densa de açúcares, incluindo alguns que as camuflam de nosso sistema imunológico.” Muitos pesquisadores estão procurando maneiras de destruir esse escudo para desmascarar as células tumorais e torná-las mais suscetíveis às nossas células imunológicas.

Estrutura química do antiviral Tamiflu (à esquerda), usado contra o vírus da gripe, e do ácido siálico, um açúcar que faz parte do revestimento de glicano de nossas células (à direita).
Estrutura química do antiviral Tamiflu (à esquerda), usado contra o vírus da gripe, e do ácido siálico, um açúcar que faz parte do revestimento de glicano de nossas células (à direita).FERNANDO GOMOLLÓN BEL.

Rovira também usa métodos computacionais para entender os mecanismos moleculares das enzimas responsáveis por “decorar” nossas células com glicanos —formando o revestimento— e em novembro passado recebeu, com pesquisadores da Universidade de Leiden e da Universidade de York, mais de 9 milhões de euros (cerca de 59 milhões de reais) do Conselho Europeu de Pesquisa para estudá-las. Os estudos de computador são essenciais, trabalhar no esmalte da proteína espícula “teria sido praticamente impossível há dez anos”, diz Rovira. A equipe de Amaro e Fadda precisou de quase dois meses de simulações em um dos supercomputadores mais poderosos do mundo: o Frontera, no Texas. E também utilizou as instalações da PRACE, a aliança europeia de computação avançada, à qual pertence o Centro Nacional de Computação, que já no final de março lançou um apelo para financiar pesquisas que ajudassem a mitigar o impacto da pandemia.

Depois de décadas estudando o genoma e o proteoma, chegou a vez do “glioma” — o conjunto de estruturas compostas por açúcares distribuídos por nossas células. Em razão de sua estrutura química, os açúcares podem formar cadeias muito mais variadas do que o DNA ou as proteínas. “Mas são também estruturas muito mais complexas, temos muito que descobrir para podermos decifrar todas as suas funções”, conclui Rovira.