Telegrama revela como desaparecido foi preso por agentes argentinos e entregue à ditadura brasileiraTelegrama revela como desaparecido foi preso por agentes argentinos e entregue à ditadura brasileira

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Telegrama revela como desaparecido foi preso por agentes argentinos e entregue à ditadura brasileira
Edmur Péricles Camargo foi preso em Buenos Aires durante operação secreta denunciada por agente cubana infiltrada na embaixada do Brasil em Santiago
Por Johanns Eller
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Em junho de 1971, o militante brasileiro exilado no Chile Edmur Pimentel de Camargo, entrou em um avião da companhia LAN rumo a Montevidéu. Levava consigo um salvo-conduto do governo de Salvador Allende, que em tese deveria garantir imunidade aos asilados durante esse tipo de viagem. Um de seus objetivos era entregar ao ex-presidente João Goulart uma carta de Cândido Aragão, almirante que resistiu ao golpe de 1964 e agora também vivia no país andino.
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Edmur, porém, nunca chegou ao destino, e seu paradeiro se manteve desconhecido ao longo de décadas. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu que ele tinha sido repatriado ilegalmente pelo regime militar, com a ajuda da ditadura argentina, e que o Estado brasileiro teve responsabilidade no seu desaparecimento forçado.
Mas a forma como os argentinos chegaram a Edmur e organizaram a operação que levou à sua captura junto aos brasileiros não era conhecida – até agora.
Uma carta de 16 de fevereiro de 1972 localizada pela reportagem nos arquivos do Ciex, o centro de espionagem da ditadura que monitorou mais de 17 mil pessoas no exterior, conta que agentes do serviço secreto da Argentina infiltrados na LAN rastrearam o voo de Edmur e articularam o sequestro em Buenos Aires.
No momento em que a carta foi escrita, sete meses após o episódio, os arapongas estavam preocupados. Tinham ficado sabendo que os asilados brasileiros foram informados da operação por uma espiã de Cuba infiltrada na embaixada do Brasil em Santiago.
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A espiã, Sofia Lafoz, seria amiga de Edmur e tinha um relacionamento amoroso com o adido da Marinha brasileira em Santiago, Benedicto Jordão de Andrade, morto em 2011 aos 85 anos.
“Sofia Lafoz informou ao setor de banidos brasileiros que o citado adido naval brasileiro no Chile lhe confidenciou ter recebido a informação da viagem de Edmur Péricles Camargo graças à infiltração do Serviço Argentino na LAN-Chile e que, de posse da informação, transmitira a mesma ao adido aeronáutico em Buenos Aires, o qual montara a ‘operação prisão’ de Edmur”, reproduz, sem contestar, o telegrama de número 104, enviada em 16 de fevereiro de 1972 - sete meses após a morte de Edmur.
Tratado nos telegramas como “o banido”, Edmur, também conhecido como “Gauchão”, era fundador do movimento de guerrilha M3G (Marx, Mao, Marighella e Guevara) e foi 70 presos políticos soltos em janeiro de 1971 em troca da liberação do embaixador da Suíça Giovanni Enrico Bucher, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) um mês antes.
Ao chegar ao Chile, ele se articulou com outros asilados, que depois de seu desparecimento fizeram grande pressão junto ao governo chileno e à imprensa do continente.
Daí o monitoramento constante do Ciex. Os agentes julgavam que, ao passar as informações aos exilados brasileiros, a espiã cubana queria justamente provocar comoção na comunidade internacional, em um período em que a ditadura brasileira estava sob forte pressão no exterior pelo desaparecimento de figuras como o ex-deputado Rubens Paiva e do estudante universitário Stuart Angel.
Em outubro de 1971, por exemplo, um informe do Exército citado na Comissão Nacional da Verdade, que não integra o acervo do Itamaraty, reforça a apreensão do regime com as circunstâncias da prisão e avalia que os argentinos “se precipitaram” ao prender Edmur dentro da aeronave.
“Será difícil justificar a entrega e o recebimento de um banido”, diz o informe nº429, timbrado como secreto.
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O governo militar continuou monitorando a repercussão do desaparecimento de Edmur até pelo menos dois anos após sua morte. Em agosto de 1973, os arapongas acompanharam a viagem do ex-deputado Márcio Moreira Alves, pivô do AI-5, à Argentina, que passava por um breve período de redemocratização, para entregar um abaixo-assinado de cidadãos do Brasil, França e Chile cobrando a investigação de casos como o de Edmur Péricles Camargo.
Nos comunicados, não há referência à prisão ou assassinato de Edmur. Segundo diferentes fontes históricas, ele foi levado de Buenos Aires para o Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio, em um avião da Força Aérea Brasileira no dia seguinte à prisão.
Ele teria sido visto vivo pela última vez por detentos do DOI-Codi, braço de repressão do Exército, na Tijuca, na Zona Norte da cidade – mesmo local onde Rubens Paiva foi assassinado.
Ex-procurador-geral da República e integrante da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fonteles é autor de uma publicação sobre o caso, disponível no site da comissão. Para o jurista, as informações descobertas agora nos telegramas poderiam ter sido reveladas à sociedade há décadas.
“Esse foi um dos grandes problemas que enfrentamos. A CNV surge muito tarde. Deveria ter vindo com a redemocratização do país, como foi na Argentina e outros países vizinhos, com as provas ainda possíveis e claras para demonstrar a barbaridade da ditadura”, criticou Fonteles.