São Borja e o caráter popular da República: uma introdução

São Borja e o caráter popular da República: uma introdução

São Borja e o caráter popular da República: uma introdução

 Por   

Santos, quadro de Benedito Calixto

CARLOS LOPES

Em passagem de À Margem da História, Euclides da Cunha escreve que “não devemos confundir” a República “com a bela parada comemorativa de 15 de Novembro de 1889” (v. Da Independência à República, in À Margem da História, Lello Brasileira S.A., 1967, p. 220).

Ele mesmo um dos homens que fizeram a República, Euclides advertia sobre um problema historiográfico que já existia em sua época, na verdade um problema de luta política: a campanha difamatória dos inimigos da República, tentando passar a versão (hoje se diria, “narrativa”) de que a Proclamação fora um “golpe”.

O primeiro a sacar da algibeira tal versão foi o próprio visconde de Ouro Preto – o primeiro Afonso Celso -, último presidente do conselho de ministros do Império, deposto em novembro de 1889, em seu livro, escrito no exílio, Advento da Ditadura Militar no Brasil (1891).

Era, apesar de injusto e mentiroso, compreensível, que Ouro Preto, apeado do poder, visse os acontecimentos históricos dessa maneira. Mas até ele, ao contrário dos reacionários que o sucederam, não considerava que o “golpe” fora inopinado:

“Batidos nas urnas, pois que, apesar da aliança com o Partido Conservador, não conseguiram senão eleger dois deputados, os republicanos apelaram, como recurso extremo, para uma sedição militar.

“E ela fez-se, e triunfou em presença da nação, tomada de surpresa, e depois coacta pelas violências praticadas, que bem claramente revelaram até onde chegariam, para conservar o poder, os que dele se haviam apossado.

“Não foi um movimento súbito, a obra de um dia; o golpe estava já preparado de muitos anos. Os primeiros pródromos da insubordinação do Exército datam da terminação da guerra do Paraguai” (Visconde de Ouro Preto, Advento da Ditadura Militar no Brasil, ed. SF, vol. 243, 2017, p. 92).

Ouro Preto esquece de dizer que a eleição de apenas dois deputados republicanos foi devida à legislação profundamente antidemocrática da monarquia e ao seu aparato ditatorial. Varrer essa legislação e esse aparato era, exatamente, um dos objetivos da República.

Porém, mais importante que isso, ele reconhece – embora apenas em relação ao Exército – que a monarquia, desde o fim da Guerra do Paraguai (1870), era um regime em antagonismo com o país e seu futuro. Era algo tão atrasado em relação ao povo, que sua remoção, em 1889, não encontrou resistência naquele momento. Até a Marinha, mais chegada à monarquia, apoiou a mudança do regime.

Assim, o Exército, em novembro daquele ano, agiu como representante do país – algo fundamentado na fusão popular com o movimento abolicionista.

Hoje, frequentemente, argumenta-se com alguns monarquistas que foram abolicionistas (sobretudo Joaquim Nabuco e André Rebouças) para tentar separar o abolicionismo do republicanismo.

Entretanto, esses monarquistas-abolicionistas constituíam exceção. Eram aqueles que a corrente impetuosa do movimento popular havia descolado da parcela dominante da monarquia, isto é, dos senhores de escravos e de seu entorno.

O abolicionismo tornou-se, à medida que corria o século XIX, cada vez mais republicano. E a recíproca é perfeitamente verdadeira: o republicanismo, nascido oficialmente com o Manifesto Republicano de 1870, mesmo ano do fim da Guerra do Paraguai, tornou-se, cada vez mais, abolicionista.

Quando o Império – nas palavras de Osório Duque Estrada – optou pelo passado, entregando o governo a um monarquista ferrenhamente escravagista, o barão de Cotegipe, o país estava preparado para a mudança do regime. A rebelião já atingira o Exército, a Igreja e a própria base econômica – isto é, os escravos, que abandonavam as fazendas, desorganizando a produção agrícola.

Desde a Regência, a sustentação militar da monarquia era formada, principalmente, pela Guarda Nacional, uma coleção de milícias regionais. Além disso, a Marinha e as tropas mercenárias serviam de apoio ao Império.

A guerra contra Solano López – que tinha um exército, no início do conflito, pelo menos cinco vezes maior que o nosso – alterou essas circunstâncias. Ao fim, estávamos com tropas terrestres do Exército muito superiores à Guarda Nacional, as tropas mercenárias haviam deixado de cumprir qualquer função e a Marinha, no Paraguai, submetera-se – com a demissão de Tamandaré por Caxias e sua substituição, no comando da esquadra, pelo visconde de Inhaúma.

Quanto à Igreja, a chamada Questão Religiosa introduziu um cisma entre o Estado monárquico, seu sistema de “padroado”, e o catolicismo, oficialmente a religião do país.

Sem nos estendermos sobre o assunto, por trás (ou pela frente) de tudo isso, estava a chamada questão do elemento servil – isto é, a escravidão –, que incendiava o país e alimentava o republicanismo.

Pois, como observara José do Patrocínio:

Muito feliz é o Governo do sr. d. Pedro II.

Desdobra-se sobre um país em que não temos o direito de estremecer a nossa Pátria; em que acima de uma vida de sacrifícios se coloca a burra dos herdeiros dos traficantes de carne humana.

Quem clama pela justiça é apontado como revolucionário.

A ordem é o roubo, é o assassinato do escravo, é o morticínio das crianças.

O Império e a escravidão são solidários.

A sua legislação visa somente manter esta solidariedade” (José do Patrocínio, 28 de agosto de 1882, in A Campanha Abolicionista).

Assim, a própria Revolta do Vintém, em dezembro de 1879, provocada por um decreto do futuro – e malsinado – visconde de Ouro Preto, foi liderada pelos republicanos e abolicionistas. A partir daí, a monarquia e o imperador (chamado, desde então, “Pedro Banana”), perderiam, cada vez mais, a autoridade junto à população.

Mas não sem reprimir o movimento popular, que se intensificava na direção da República e da Abolição.

A República adquire, então, um caráter de massas, em todo o Brasil, inclusive dentro do Exército, mas também na população em geral. Aliás, a agitação dentro do Exército é expressão da agitação que toma todo o país.

Abordamos estas questões mais de uma vez. Aqui nos interessa aprofundar a caracterização da República, em instante onde ressurgem tentativas de direita e de suposta esquerda (?!) de classificá-la como “golpe” (ao leitor interessado em nossas abordagens anteriores, v., por exemplo, HP 14/01/2015, O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores e HP 10/06/2020, A República e a formação do caráter nacional).

Lembra Osório Duque Estrada que o Império – tanto o imperador quanto a princesa Isabel – resistiram o quanto puderam à Abolição e outras mudanças:

“… limitou-se a ação do Imperador a permitir apenas que a questão desse mais um passo, quando a julgava de todo amadurecida, e isso mesmo só depois das mais inequívocas manifestações da opinião pública, continuamente agitada pela propaganda dos liberais, associados, mais tarde, aos republicanos. Quando acreditava chegado o momento de transigir com a opinião e atender às solicitações das sociedades humanitárias do estrangeiro, para onde tinha frequentemente voltados os olhos, consentia então em alguma reforma cautelosa e paliativa do mal, mas, ainda assim, cometia aos conservadores o encargo de realizá-la. Para evitar a reforma nas situações liberais, cinco vezes convidou Saraiva (que só de duas acedeu) para organizar gabinete; confiou a organização do ministério 21 de junho de 1881 a Martinho Campos, que nunca havia sido ministro, nem era chefe de prestígio no seu partido, mas possuía o predicado de ser ‘escravocrata da gema‘; chamou ao poder, em 1878, o velho Sinimbu, que tinha já 93 anos de idade, preterindo escancaradamente, e com surpresa geral, o grande Nabuco de Araújo, que era então a primeira figura e o chefe aclamado do seu partido; não hesitando, poucos anos depois, em confiar igual missão ao Conselheiro Lafaiete, que assinara o manifesto republicano de 1870, mas que, mesmo em 1888, advogava ainda com Cotegipe a ideia da indenização, citando escandalosamente a opinião de Maquiavel, de que ‘os homens perdoam mais facilmente a quem lhes mata os pais do que a quem lhes rouba a fortuna’.

“Quando, uma vez, por exceção, confiou a tarefa da reforma a um chefe liberal de ideias emancipadoras, foi para de tal maneira lhe dificultar a iniciativa, que, só para recomendar restrições, e imparcialidade em assuntos de natureza eleitoral, dirigiu ao presidente do Conselho, no espaço de poucos meses, nada menos de vinte e nove cartas. É conhecida a sua declaração de que desejava apenas ‘fazer um ensaio com o Sr. Dantas’, acrescentando, em uma das conferências que teve com esse glorioso estadista: – ‘Quando o Sr. quiser correr, eu o puxo pela aba da casaca.’

“À queda inevitável do ministério 6 de junho seguiu-se a ascensão de outro liberal; mas esse liberal, a quem foi confiada irrisoriamente a realização da reforma, era um escravocrata declarado, senhor de engenho e proprietário de grande número de escravos, que, com o apoio entusiástico dos conservadores, e notadamente da célebre Junta do Coice, afrontou a consciência abolicionista do país com a monstruosa lei de 28 de setembro de 1885, que, votada já na vigência do ministério Cotegipe, por se haver demitido, um mês antes, o Conselheiro Saraiva, excluía a libertação dos sexagenários, implicitamente revogava a lei de 7 de novembro de 1831, e cominava a pena de 500$000 a 1:000$000 aos que acoitassem escravos!” (cf. Osório Duque Estrada, A Abolição, ed. SF, 2005, pp. 237-239).

Ao fim do Ministério Cotegipe, o país estava à beira de uma explosão – e a monarquia, tanto quanto a escravidão, tornara-se incompatível com a nação e insuportável para o povo.

Em outubro de 1887, um vereador de São Borja, Rio Grande do Sul, apresentou uma moção para que o país fosse consultado sobre a conveniência de um terceiro reinado.

Como lembrou, depois, Silva Jardim:

“A câmara municipal de S. Borja, no Rio Grande do Sul, votava uma representação à assembleia provincial, para que a seu turno representasse à geral, sobre a conveniência de um plebiscito em que se consultasse a nação se convinha aos seus interesses o terceiro reinado ‘sendo a herdeira do trono uma princesa fanática casada com um príncipe estrangeiro‘” (v. Silva Jardim, Memórias e Viagens, Typ. da Companhia Nacional Editora, Lisboa, 1891, p. 15).

A moção do vereador republicano Aparício Mariense foi aprovada, depois de vários debates, em 13 de janeiro de 1888, causando uma comoção nacional. A ideia – e, mais que a ideia, a aspiração – republicana espalhara-se até às fronteiras do país. São Borja, às margens do rio Uruguai, na fronteira com a Argentina, era mais que um símbolo do caráter popular da república. Era a concretização desse caráter popular em todo o território nacional.

Talvez por isso, ou por ser intrinsecamente reacionária, a monarquia, tendo à cabeça a princesa Isabel e o barão de Cotegipe, reagiram com inaudito arbítrio. Mas isso somente serviu para derramar protestos e mobilizações por todo o Brasil. A 26 de janeiro de 1888, Martim Francisco, neto do Patriarca da Independência, e seu cunhado, Antônio da Silva Jardim, então com 27 anos, conversavam sobre a situação criada pelo Império:

“Naquele dia o que nos ocupava, preocupando-nos mesmo, era o dia seguinte. Estava largamente anunciado o meu primeiro meeting republicano: aquele em que se devia protestar contra o ato pelo qual o governo mandara suspender e processar a câmara municipal de São Borja, no Rio Grande do Sul. Nas circunstâncias em que se achava o país, o passo era arriscado” (Silva Jardim, op. cit., p. 14).

A situação, sob o Ministério Cotegipe, que duraria até março de 1888, era de repressão intensa contra republicanos e abolicionistas. O próprio Partido Republicano, através de seu principal dirigente em São Paulo, Rangel Pestana, não sustentou a moção de São Borja e o comício (meeting) de Silva Jardim e seus companheiros, em Santos:

 

“Tinha sido longa a nossa conferência com Rangel Pestana (…). O partido republicano não estava em condições, em suma, de tomar sobre seus ombros o peso das consequências de um meeting contra as instituições.

“— E se eu, por mim, o realizasse? interroguei, concluindo.

“— Não serei eu quem diga a você que o não faça. Acho que presta um bom serviço. Mas faça-o sob sua responsabilidade. Um homem, principalmente quando moço, pode isoladamente tentar um ato, sem que se veja obrigado a prosseguir. Mas um partido é uma coletividade, e dado um passo tem de tirar-lhe as consequências.

“— Mas a atitude de um homem às vezes compromete um partido, objetei.

“O ilustre republicano sorriu, e ficou em silêncio” (Silva Jardim, op. cit., p. 35).

A decisão dos republicanos de Santos, em especial de Silva Jardim, foi realizar o comício: “… a imagem da Pátria ainda sujeita à escravidão civil, vítima da escravidão política fazia-me perder todas as hesitações. Não queria mais olhar o futuro, e sim partir com a cegueira do civismo para a arena pública, a pugnar pelas liberdades. Estava resolvido” (Silva Jardim, op. cit., p. 27).

O futuro propagandista da República conta que a decisão de realizar o comício foi tomada na ilha Porchat, pertencente a um republicano local, Henrique Porchat.

O receio da repressão monarquista sombreava os participantes, em especial Silva Jardim, sua esposa, Ana Margarida, conhecida como Guida, e seu cunhado, Martim Francisco.

Republicano desde a juventude, Silva Jardim estava rompido – assim como Benjamin Constant e outros republicanos – com o Apostolado Positivista de Miguel Lemos. Mas, em Santos, era um homem respeitado como republicano e abolicionista:

“Minha reputação republicana já estava aliás bem feita na cidade. Tomara a palavra no ano anterior, na sessão da fundação do clube republicano, para fazer minha adesão, sob condição de que teríamos uma cor acentuadamente abolicionista; tomara-a depois para comemorar o 21 de abril, e ainda o 14 de julho, e ainda o 4 de setembro, o advento da nova República Francesa. E quando estivera em Santos Campos Sales, ao terminar ele o seu discurso abolicionista, pedira-lhe, da plateia, se comprometesse a trabalhar dentro do partido para que num prazo limitado nenhum republicano possuísse escravos; ao que o distinto orador acedera no meio de aplausos” (op. cit., pp. 38-39).

O lugar marcado para o comício foi o Teatro Guarani. Mas, deixemos que Silva Jardim conte a história (e a História):

“7 horas da noite. Tinha rapidamente depositado um beijo sobre a fronte de minha mulher, olhado em despedida os meninos, revisto um instante todo o meu assunto e toda a situação, numa espécie de concentração mental dissimulada, e saíra.

“Quando, um quarto de hora depois, entramos alguns no Teatro Guarani, o local escolhido para a reunião, muito sofrível como teatro de província, encontrei já o espaçoso salão da plateia repleto de uma enorme massa de todos os partidos, classes, posições, fortunas e nacionalidades. Estava, entretanto, sereno, o bastante para poder ainda lançar, através do pano de cena, um rápido olhar sobre o teto, excelentemente pintado por um artista sem grande preparo, mas de um talento genial, Benedito Calixto, justamente quando não tinha estudo algum, recém-vindo de uma pequena povoação da marinha. O teto realçava pela muita luz, no meio daquele burburinho de vozes humanas.

“Era a primeira vez que me achava diante de um tão grande auditório. Uma dezena de amigos estava comigo no palco, e outros vinham alternadamente apresentar-me seus cumprimentos.

“Quando cheguei à tribuna, e olhei a multidão, senti esse inexplicável acanhamento que sente o homem diante da superioridade do povo, que representa a Pátria; é essa invasão insensível da alma popular na alma do orador, que estabelece a simpatia entre este e os ouvintes. Fui recebido por uma chuva de aplausos, sem nenhum protesto; e enquanto cada um se preparava para ouvir e o silêncio se fazia, senti-me suavemente aquecer ao calor da animação popular, sem perder a serenidade necessária para a sondagem contínua da impressão que as palavras produziam, e para não cair em divagações ou perder-me, esquecendo a filiação dos assuntos.

“(…)

“Pouco a pouco, o público se anima, anima-se o orador, e daí por diante segue-se o discurso, durante duas horas, ora movimentado pela sátira, ora serenado pela demonstração, ora exaltado pela apóstrofe; segue coberto de interrupções, de aplausos entusiásticos, de risos estrepitosos, que dificultavam a mesma exposição. Levados pelo contágio os ditos monarquistas haviam rido à vontade, acompanhando o combate e o ridículo às mesmas instituições que diziam sustentar.

“Os Braganças e os Orleans haviam sido largamente analisados; tinha-se passado em revista o estado de saúde de Pedro II, o seu reinado, o de seu pai, a dinastia dos Orleans, o conde d’Eu, a evolução das aspirações liberais do Ocidente e do Brasil, a individualidade da Princesa regente, os perigos do terceiro reinado; e, quando senti o espírito popular assaz aquecido, mais por seu próprio entusiasmo que pela minha palavra, terminei, erguendo-me o possível ao assunto, propondo a moção de apoio ao ato dos vereadores de S. Borja, e de protesto contra o ato do governo imperial.

“Aplausos prolongados tinham coberto a moção. A causa estava ganha, e o primeiro meeting republicano realizava-se sem que o trono se animasse à violência.

“Estava tirada a prova real. Os republicanos podiam animar-se a um combate mais ativo” (op. cit., pp. 39-41).

E, realmente, assim foi, até novembro de 1889, sobretudo após a Abolição, em maio de 1888.

Aqui, temos, ainda, duas incompreensões que perpassam a visão posterior – e atual – sobre a Proclamação da República.

A primeira é que a República foi realizada pelos positivistas, pelos adeptos de Auguste Comte.

Apesar da influência real – e grande – do positivismo no Brasil, isso não foi (e não é) verdade. A maioria dos principais republicanos estava rompida com o establishment positivista. Alguns (Rui Barbosa, por exemplo) nem positivistas jamais foram. Nas palavras de um autor, respeitável por todos os títulos, principalmente por sua vivência no movimento militar e republicano:

“… na realidade, o que houve foi a transfiguração de uma sociedade em que penetrava pela primeira vez o impulso tonificador da filosofia contemporânea. E esta, certo, não a vamos buscar nesse tão malsinado e incompreendido positivismo, que aí está sem a influência que se lhe empresta, imóvel, cristalizado na alma profundamente religiosa e incorruptível de Teixeira Mendes…” (Euclides da Cunha, op. cit., p. 240).

Teixeira Mendes era, com Miguel Lemos, o expoente da ala ortodoxa do positivismo, a chamada Religião da Humanidade ou Apostolado Positivista.

Mas, continua Euclides:

“As novas correntes, forças conjugadas de todos os princípios e de todas as escolas (…) o que nos trouxeram, de fato, não foram os seus princípios abstratos, ou leis incompreensíveis à grande maioria, mas as grandes conquistas liberais do nosso século; e estas compondo-se com uma aspiração antiga e não encontrando entre nós arraigadas tradições monárquicas, removeram, naturalmente, sem ruído — no espaço de uma manhã — um trono que encontraram…” (Euclides, idem).

Os positivistas, a propósito, eram, politicamente, adversários da revolução – uma posição oposta à de Silva Jardim e outros republicanos, que pregaram a revolução até concretizá-la, em 1889.

Outra incompreensão é quanto aos motivos da derrocada final do Império. Existe uma versão de que os senhores de escravos, contrariados pela Abolição, aderiram à República, deixando a monarquia sem base de sustentação – e isso teria provocado o fim do Império.

Entretanto, esta foi, exatamente, a versão que a monarquia procurou passar, com o intuito de buscar se sustentar na população e continuar como o regime governante do país.

Além disso, se tal narrativa fosse verdadeira, a República seria obra de senhores de escravos, e, não, como foi, de abolicionistas.

Do fato de que os senhores de escravos – inclusive o principal deles, o paulista Antonio Prado – tenham abandonado a escravidão diante da revolta dos escravos, não se conclui que foram eles os construtores da República. Pelo contrário, eles abandonaram a escravidão ainda antes da República e da própria Abolição, como é demonstrado pelo Ministério João Alfredo, composto por escravagistas de décadas, que enviou a Lei Áurea ao Parlamento, e, aliás, pelo próprio Parlamento que a aprovou, também composto por elementos que haviam sustentado o escravagismo por anos a fio.

A escravidão, em suma, se esgotara como modo de produção, como regime econômico. Até os escravagistas reconheciam isso.

Mas, na luta contra ela, também a República se tornara a aspiração geral do país.

Hoje, Osório Duque Estrada é mais conhecido como autor do poema que se tornou a nova letra (1922) do Hino Nacional. Mas ele é também autor de A Abolição, excelente esboço histórico, prefaciado por Rui Barbosa, publicado em 1918. Nele, diz esse republicano e abolicionista:

“Outra mistificação, a que procuraram recorrer os estadistas responsáveis pela subversão do regime, consistiu na balela de que a dinastia foi destronada em consequência do 13 de maio, e por lhe ter faltado o apoio dos senhores de escravos, que se bandearam todos, ou quase todos para as fileiras republicanas.

“Muita retórica se tem feito por conta de tal mentira, afirmando mesmo um dos cronistas do paço que ‘quando a Princesa se decidiu ao seu grande golpe de humanidade, sabia perfeitamente quanto arriscara’.

“Ora, a verdade é que tudo isso não passa de uma refinada impostura, e tão inepta se revela a fantasia dos seus autores, que nem atentam estes no argumento, por eles mesmos fornecido aos adversários, de que, se o trono ruiu por lhe faltar o apoio da escravidão, é porque, então, nesse caso, estava podre.

“Mas não procede a aleivosia, com que se pretende dissimular a culpa dos verdadeiros responsáveis pela reivindicação de 15 de novembro. A profissão de fé republicana de alguns fazendeiros despeitados em nada contribuiu para a queda da dinastia. As manifestações platônicas dos ex-senhores de escravos preocuparam tão pouco a opinião e os estadistas do Império que, já em 1889, pronunciava Afonso Celso, com relação à República, o conhecido desafio do cresça e apareça, que muitas vezes depois se repetiu.

“Eram quase todos republicanos os propagandistas da Abolição, e a estes não era dado ensarilhar as armas, só porque o trono havia capitulado, rendendo-se, afinal, à vontade do povo” (Osório Duque Estrada, A Abolição, ed. SF, vol. 39, 2005, pp. 241-242).

E assim foi, caro leitor.