Paulo Guedes e o nigeriano cortador de grama na Califórnia

Fabulações trabalhistas e fantasias delirantes do ministro da Economia

Paulo Guedes e o nigeriano cortador de grama na Califórnia

Paulo Guedes e o nigeriano cortador de grama na Califórnia

Fabulações trabalhistas e fantasias delirantes do ministro da Economia

 

CÁSSIO CASAGRANDE 

O ministro Paulo Guedes esteve no dia 1º de Setembro na Comissão Mista do Senado e, com a arrogância que lhe é peculiar, afirmou ter uma fórmula mágica para criar 38 milhões de empregos no Brasil. Em resumo, na sua costumeira obsessão em destruir a legislação trabalhista, ele sustenta que para chegarmos ao pleno emprego basta suprimir os direitos sociais previstos no art. 7º da Constituição e colocar no seu lugar o contrato “verde e amarelo”, no qual o empregado receberá um salário e nada mais.

O ministro da Economia acredita que empregos podem ser criados por lei e que o grande culpado pelo atraso secular da economia brasileira são os encargos trabalhistas. Para justificar a sua “tese”, ele concebeu essa fábula estranha, que transcrevo resumidamente, tal como consta das notas taquigráficas da sessão (a partir de 12:52):

“Uma vez eu estava na casa de um político (em Brasília) quando, de repente, chega alguém à porta, bate e fala: ‘Olha, eu posso cortar o jardim’. Ele se oferece. Tem uma tesoura de cortar grama na mão. Leva quatro dias para aparar um jardim, e ganha um dinheiro simbólico. Se não houvesse encargos, ele trabalharia numa empresa de jardinagem com Kombi e uma secretária que faz agendamento de quatro jardins numa tarde só. Ele chegaria com uma máquina de cortar grama. Poderia fazer quatro jardins numa tarde, mas, em vez de trabalhar em uma empresa de jardinagem, o que daria maior produtividade para ele, acaba trabalhando sozinho, por iniciativa própria, com produtividade baixíssima”

Guedes então passa a narrar como as coisas aconteceriam nos EUA, segundo a sua ótica:

“Chega um imigrante nigeriano nos EUA. Ele só tem o salário mínimo/hora, mais nada, nenhuma legislação. Ele trabalha de manhã, de tarde e de noite. Ele quer trabalhar mais que outros. Trabalha de manhã cortando grama e de noite, lavando prato. Chega sem falar inglês. Três anos depois, traz mulher e filhos da Nigéria Cinco anos depois, tem casa própria. Oito anos depois, cria uma empresa. Isso é o direito de avançar.”

 

A fábula do ministro Guedes está cheia de falácias (premissas argumentativas falsas) e “anecdotal evidences” (casuísmos não representativos da regra geral), como vou demonstrar.

 

Comecemos pela afirmação de que o empregador americano paga apenas a hora trabalhada e que nos EUA “não há nenhuma legislação (trabalhista)”. Isso é rigorosamente falso. Há vários encargos de contribuições patronais que incidem sobre a folha de pagamento nos EUA, como as devidas ao sistema de seguridade social (Social Security Tax), à cobertura dos programas federal e estadual seguro-desemprego (Federal and State Unemployment Tax), ao custeio do sistema básico de saúde (Medicare Tax), entre outros, resultando em 13 a 15% sobre o salário pago ao empregado, conforme o Estado (as contribuições estaduais para o seguro-desemprego estadual variam localmente).

É totalmente falsa a afirmação de que os EUA não possuem legislação trabalhista. Como já demonstrei em outros artigos no JOTA (aqui e aqui), as leis trabalhistas nos EUA são muitas, variadas e complexas, dado principalmente ao fato de que União e Estados têm competência para legislar sobre a matéria. Apenas como exemplo, o Código de Trabalho da Califórnia possui mais de nove mil dispositivos. Essa complexidade explica por que nos EUA as empresas em seu conjunto gastam bilhões de dólares anualmente em indenizações trabalhistas, conforme artigo que também publiquei aqui, baseado em relatórios disponíveis na internet. Impressiona o fato de que o ministro tenha estudado economia nos EUA e não conheça minimamente o sistema legal de relações de trabalho daquele país, que pretende supostamente emular.

Subjacente à ideia de que as leis trabalhistas brasileiras “encarecem” o custo do trabalho está a suposição de que nos EUA a mão de obra seria menos custosa para o empregador. É verdade que no Brasil os encargos incidem em percentual muito maior sobre a folha, cerca de 73%. Porém, é preciso observar que parte desses encargos (39%) nada mais é do que salário diferido pago como poupança obrigatória (FGTS, 13º. salário, adicional de férias, indenizações pelo término do contrato, etc.), valores que no sistema norte-americano já estão “embutidos” no valor do salário mínimo, já que, por uma opção legislativa, os EUA não utilizam salário diferido ou poupança obrigatória. Quanto aos encargos de natureza social ou tributária, a incidência em nossa folha de pagamento é de 27,60%.

Uma comparação sobre o custo do trabalho precisa levar em consideração o valor efetivo do salário mínimo e a duração da jornada legal, acrescido dos encargos em cada um dos países. Nos EUA, o salário mínimo nacional é de U$ 7,25 para uma jornada de 40 horas semanais, porém há enormes variações deste valor conforme o Estado ou o condado, ou mesmo políticas empresariais (a empresa Amazon, atualmente a maior empregadora dos EUA, paga um salário mínimo de U$ 15,00 em todo o país, mesmo valor estipulada pela cidade de Nova Iorque). Vou considerar, para fins de exemplo, que o “imigrante nigeriano” foi trabalhar na Califórnia, o estado mais populoso dos EUA, onde o salário mínimo é de U$ 12,00.

No Brasil, uma empresa de jardinagem que contratar um trabalhador pelo salário mínimo (R$ 1.045), para jornada de 44 horas semanais, pagará ao final de um mês um valor total de R$ 1.807,85, considerados os encargos. Na Califórnia, a empresa de jardinagem que contratar o “imigrante nigeriano” e colocá-lo para trabalhar as mesas 44 horas semanais, pagará um total de U$ 2.760,00 (salário líquido de U$ 2.400 + 15% de encargos sobre a folha; considerei um mês de 22 dias úteis e quatro sábados, compreendendo o pagamento de 16 horas extras com adicional de 50%, já que a jornada nos EUA é de 40 horas, tudo conforme a Federal Labor Standards Act). Isto é, o empregador pagará mensalmente na Califórnia por um empregado jardineiro R$ 14.628,00 (U$ 1,00 = R$ 5,3), oito vezes mais do que se pagaria no Brasil.

A existência de empregos abundantes e salários altos na economia americana não se deve ao custo do trabalho ou a modelo de encargos, mas sim à presença de uma classe média gigantesca e afluente que pode pagar caro por serviços prestados por empresas de jardinagem, com capacidade para pagar salários de U$ 2.760,00 mensais por jardineiros nigerianos.

 

Mas e por que os Estados Unidos possuem uma classe média gigantesca e afluente que sustenta emprego e salários altos?

 

Por uma série de condições sociais, econômicas e políticas particulares da história dos EUA que não ocorreram no Brasil… a começar pelo fato de que o principal fator foi a massificação da educação (zero analfabetismo no final do século XIX) e uma rede ampla de universidades que permitiu a formação daquela classe média.

Mesmo que no Brasil os encargos trabalhistas e sociais fossem “zerados” (no delírio inconstitucional da “carteira verde-amarela”) e o empregador pagasse apenas o salário mínimo de R$ 1.045,00 sem qualquer aditivo, por que é que as empresas de jardinagem de Brasília contratariam e registrariam centenas de jardineiros autônomos se não há demanda por serviços de jardinagem? Será que o Ministro, como “economista”, poderia responder a essa questão de economia basilar?

A demanda por serviços de jardinagem aumentará quando mais pessoas puderem comprar casas com jardim e tiverem dinheiro suficiente para contratar serviços profissionais de jardinagem e não encontrarem facilmente um “estoque” de mão de obra desqualificado que pode prestar serviços “artesanais” de jardinagem por um valor-hora muito inferior ao salário mínimo.

Mesmo que todos os encargos sejam abolidos, sempre haverá salário mínimo e trabalhadores autônomos poderão oferecer seu trabalho por menos do que aquele valor. Enquanto houver um “exército de reserva” de mão de mão de obra miserável, desqualificada e não absorvida pelo mercado formal (justamente por falta de demanda e qualificação), ela vai oferecer seus serviços “informais” por um valor inferior ao salário mínimo…

A solução não é rebaixar os salários do mercado formal pela extinção de direitos sociais (em parte redução do salário mínimo pela extinção de salário diferido), mas sim elevar os salários capacitando os trabalhadores a ocupar melhores empregos, reduzindo o “estoque” de mão de obra desqualificada, o que aumentará o nível médio dos salários. Quem afirma isso não sou eu, mas um economista caro aos liberais, o inglês Alfred Marshall (1842-1924), responsável por demonstrar que a teoria dos salários declinantes de Karl Marx estava errada justamente por desconsiderar os ganhos de produtividade decorrentes da capacitação profissional, fenômeno que ele observou estudando a economia americana.

É claro que isso não tem como ocorrer do dia para a noite. Não se cria emprego e salário alto com canetada, ou com leis. Achar que o Brasil vai virar Estados Unidos de uma hora para outra, apenas mudando leis trabalhistas (e reduzindo a massa salarial), é um truque de ilusionismo barato.

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Além de não conhecer a economia do trabalho nos EUA, Paulo Guedes aparenta ignorar a economia de Brasília. Por um motivo bastante fácil de entender para quem aprecia a verdejante cidade, a capital federal é uma das cidades com maior número de empresas de jardinagem e paisagismo do país (basta uma rápida consulta no google, parei de contar quando cheguei em 60).

Portanto, o “jardineiro artesanal” de sua fábula é uma exceção, não a regra (anecdotal evidence). A existência de uma legislação trabalhista “complexa” no Brasil não impediu o desenvolvimento daquele segmento econômico. Ademais, havendo demanda, empresas de jardinagem vão contratar trabalhadores mesmo “sem carteira”, ou vão pagar salários “por fora” para não perder oportunidades de negócio. E eventuais diferenças serão negociadas posteriormente à extinção do contrato de trabalho, quando haverá uma “formalização ex-post facto”. Basta passar um dia na Justiça do Trabalho para perceber esta peculiar “flexibilidade” das relações de trabalho no Brasil.

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Paulo Guedes não deve estar acompanhando o noticiário político e econômico dos EUA. Imigrantes nigerianos sem qualificação entrando com facilidade nos EUA, encontrando dois empregos bem remunerados, trazendo em seguida a família e comprando casa rapidamente é outra “anecdotal evidence” completamente fora da realidade atual. Nem mesmo os americanos com grau superior e empregos razoáveis estão conseguindo fazer poupança para o “american dream” da casa própria, havendo estimativas de que na Califórnia o trabalhador médio pode levar até vinte anos para dar uma entrada de 20% em uma hipoteca imobiliária.

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Não há nenhuma lei trabalhista que impeça o trabalhador de ter dois empregos no Brasil.

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Por fim, não posso deixar de notar outro erro na fábula de Guedes, quando afirma que nigerianos chegam aos EUA “sem falar inglês”. O inglês é a língua oficial e uniforme da Nigéria. Embora o país seja um caldeirão étnico no qual muitos falam também suas línguas ancestrais (ioruba, haussa, igbo, etc.), o ensino público é feito na língua inglesa em quase todo o país, os habitantes de áreas urbanas são proficientes na língua e mesmo habitantes do interior dominam um inglês rudimentar e adaptado (pidgin).

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Para os cálculos de encargos trabalhistas e sociais no Brasil e nos EUA, usei as tabelas criadas pelo Dr. Pablo Mourente, advogado trabalhista com experiência internacional hoje atuando no Canadá, em texto que foi publicado aqui mesmo no JOTA.

CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense - UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.