"Para quem quer entender o que significa TERRORISMO DE ESTADO."

"Não é de hoje que policiais e militares ensinam a torturar e matar no Brasil.

"Para quem quer entender o que significa TERRORISMO DE ESTADO."

 

"Não é de hoje que policiais e militares ensinam a torturar e matar no Brasil.

Aos 23 anos, o estudante Ângelo Pezzuti da Silva teve seu corpo violado durante uma aula prática de tortura, realizada pela Polícia do Exército em Juiz de Fora (MG) em 1970, diante de uma plateia fardada com mais de 100 sargentos. Didático, o tenente responsável pela aula apresentou uma série de slides sobre como provocar o máximo de dor e humilhação num ser humano, ao mesmo tempo em que demonstrava essas técnicas no corpo nu e subjugado do estudante.

 

Outra estudante, Dulce Pandolfi, 24 anos, também foi cobaia de uma aula muito parecida, realizada no mesmo ano, nas dependências do Exército do Rio de Janeiro. "Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no pau de arara, ouvia o professor dizer: 'Essa é a técnica mais eficaz'", contou à Comissão Estadual da Verdade do Rio, quatro décadas depois.

 

Esses relatos fazem parte do projeto Brasil Nunca Mais, que reuniu denúncias violações cometidas durante a ditadura militar a partir dos próprios documentos do regime. O livro conta que as aulas com cobaias humanas se disseminaram entre os agentes da repressão da época, com a tortura elevada à condição de “método científico”. Um dos responsáveis por sistematizar a prática foi Daniel Anthony Mitrione, um agente do governo dos EUA, que teria ministrado as primeiras aulas de tortura em Belo Horizonte, ainda nos primeiros anos do regime militar, usando “mendigos recolhidos nas ruas para adestrar a polícia local”.

 

Não consta que qualquer um dos policiais e militares que participou dessas aulas tenha alguma vez feito qualquer objeção a essas práticas. Nem haveria por quê. Humilhar e matar seres humanos tidos como “matáveis”, fossem moradores de rua, negros, indígenas ou presos políticos, sempre foi parte essencial do trabalho de quem veste uma farda no Brasil.

 

Como as polícias do período democrático, legítimas herdeiras da ditadura, nunca deixaram de torturar e matar, é natural concluir que as aulas de violações de direitos humanos nunca deixaram de ser ministradas, de um jeito ou de outro. O que acontece é que hoje provavelmente essas aulas são apresentadas de um jeito menos oficial, como parte de um “currículo oculto” ensinado aos agentes de segurança.

 

Aliás, um currículo nem tão oculto assim, já que alguns flagrantes dele já vieram à tona. Ficaram famosos os cantos de guerra usados no treinamento do Bope (Batalhão de Operações Especiais), da PM fluminense, como “Homens de preto, / Qual é a sua missão? / Entrar pela favela / e deixar corpo no chão” ou “O tiro é na cabeça / E o agressor no chão. / E volta pro quartel / pra comemoração”. Em São Paulo, o Batalhão de Operações Especiais local, chamado Baep (sim, os caras que mais matam nessas corporações adoram se chamar de “especiais”), realiza treinamentos contra inimigos imaginários com a inscrição “favela”, para deixar bem claro aos recrutas contra quem se espera que ele vá usar as técnicas de violência que aprende ali, como a Ponte já denunciou. Em 24 de outubro de 2014, homens do curso de formação da PM baiana mataram e desapareceram com o corpo de um jovem negro de 16 anos, Davi Fiúza, como parte do que seria um “batismo”, segundo o relato de sua mãe, Rute Fiúza: “Vocês somem com um jovem negro da periferia e têm como prêmio a honra de vestir e ostentar o manto da Polícia Militar do Estado da Bahia”.

 

Aulas práticas de violações de direitos com corpos negros, exatamente como era feito com os moradores de rua de Belo Horizonte durante a ditadura.

 

Essa longa tradição é o que explica que as menções a técnicas de tortura e execução apareçam com tanta frequência nos cursos da escola para concurseiros Alfacon, preparadas por policiais para futuros policiais, e que os alvos dessas violências sejam descritos como “favelados”, “traveco”, “crioulada feia e sem dente”, “putas”, mulheres e crianças — os matáveis de sempre. As falas, gravadas em vídeo e disponibilizadas pela própria escola ao longo de anos, não tinham como ser mais claras e didáticas.

 

“Quando eu entrava chacinando eu matava todo mundo. Mãe, filho, bebê. Foda-se. Eu já elimino o mal na fonte”, relatou, em uma das aulas, o professor de direito e ex-PM Norberto Florindo Júnior. O fundador da escola, o também ex-PM Evandro Bitencourt Guedes, não deixava por menos, em declarações como “Evandro, você já bateu em muita gente? Já. Inclusive nas putas, entrava, tomava todo mundo borrachada. Evandro, você era violento na PM? Muito violento” ou “Eu dei porrada em todo mundo. Homens, mulheres, crianças, velhos e adolescentes. Todo mundo tomou."

 

Como acontecia nas aulas de tortura dos porões da ditadura dos anos 70, os alunos da Alfacon não reclamam do conteúdo de suas palestras. Nos vídeos, dá para ouvir o público rindo das falas desses professores. Isso diz muito sobre a cabeça dos concurseiros que sonham em ser policiais. E não só deles. O elogio à tortura e à morte nunca impediu a Alfacon de atrair os donos do dinheiro. Alguns dos principais grupos empresariais da educação privada do Brasil, como a Somos Educação e o Cogna, já se associaram em algum momento à Alfacon. O que também diz muito sobre a mentalidade empresarial desse país.

 

A Alfacon voltou para o noticiário após a morte de Genivaldo de Jesus, assassinado por uma câmara de gás improvisada num camburão da Polícia Rodoviária Federal, quando veio à tona um vídeo de 2016 em que um outro professor da escola, o policial rodoviário federal Ronaldo Bandeira, descrevia um método de tortura semelhante em uma de suas aulas. Mas a Ponte vem denunciando desde 2019 os abusos cometidos pela escola.

 

Ao longo deste tempo, as práticas da escola foram analisadas por instituições tão diferentes como Corregedoria da PM de SP, Ministério Público Federal e por dois Ministérios Públicos Estaduais, de São Paulo e Paraná, sem qualquer uma delas tenha chegado a uma ação concreta, como oferecimento de uma denúncia. O que também diz muito sobre a qualidade das instituições brasileiras no combate a violações de direitos."

 

Fausto Salvadori

diretor de redação/ Ponte Jornalismo.  Via Marcos Bagno