O MITO DO MITO

O MITO DO MITO

O MITO DO MITO

Os fatos dizem que a eficiência das Forças Armadas na gestão pública é mais fantasia do que realidade

O verdadeiro mito que sustenta o governo não é o que dorme no Palácio da Alvorada. É aquele ao qual Jair Bolsonaro se agarra a cada nova crise, inclusive as que ele mesmo cria: o mito da eficiência das Forças Armadas. A ideia de que os militares são gestores eficazes, aptos a resolver qualquer parada, não vem de agora e ressurgiu em todos os governos desde a redemocratização – de Fernando Henrique Cardoso a Michel Temer, passando por Dilma Rousseff. Virou até expressão corrente na caserna chamar as Forças Armadas de “Posto Ipiranga”, em referência a uma campanha publicitária de 2011 que dizia que o estabelecimento resolvia tudo que as pessoas precisavam. Bolsonaro, espertamente, apropriou-se não só do mito, mas também da expressão. A diferença é que a aplicou não a um militar, mas ao seu ministro da Economia, Paulo Guedes, com os resultados que todos conhecem.

No embalo da ilusão de eficiência, as Forças Armadas estiveram significativamente ocupadas neste início de século: foram chamadas para pacificar o Haiti, combater a maior seca do semiárido, coordenar a segurança pública durante a Copa do Mundo e a Olimpíada, gerir o combate ao desmatamento da Amazônia, acolher refugiados venezuelanos, construir rodovias, proteger fronteiras, fazer revista em penitenciárias, ajudar no controle da pandemia e, agora, questionar se as urnas eletrônicas em uso no Brasil há décadas são realmente confiáveis.

Em todos os governos recentes, a justificativa para a convocação dos militares é sempre idêntica: são pessoas que prezam valores como a “lealdade”, a “probidade” e a “competência técnica”. “Estejam onde eles estiverem, na ativa ou na reserva, nos quartéis ou em repartições, os militares são cumpridores de suas obrigações e deveres”, escreveu o vice-presidente Hamilton Mourão, ele próprio um general da reserva do Exército, no jornal O Estado de S. Paulo, em abril do ano passado. Mas são palavras que poderiam vir de muitas outras penas ou bocas.

Em 29 de janeiro de 1993, O Globo estampou, na página 11 do jornal, o título Empresários querem Exército nos morros – demanda aprovada pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro e pela Associação Comercial do Rio de Janeiro. A mesma edição trazia a notícia de que o Alto Comando das Forças Armadas fora chamado para “debater” o combate à pobreza pelo então presidente Itamar Franco, que encarregara o Exército de fiscalizar a distribuição de 100 mil toneladas de feijão para a população. Quase vinte anos depois, Dilma Rousseff repetiu que, na luta para acabar com a pobreza extrema, as Forças Armadas seriam essenciais. “Sua larga experiência de trabalhos sociais, desenvolvida em todo o território nacional e alcançando as regiões mais longínquas e remotas, tem valor inestimável para chegarmos a esse objetivo primordial. Por seu espírito cívico e sua excelente formação profissional, os soldados brasileiros vêm atuando da forma mais dedicada e eficiente para que o Brasil se transforme definitivamente em um país desenvolvido”, discursou a ex-presidente, em 5 de abril de 2011.

 

Avaidade inerente às classes militares foi percebida já no século XVIII pela escritora feminista Mary Wollstonecraft, para quem o fru-fru das insígnias, as lustrosas botas e os uniformes bem aprumados só servem para esconder a ociosidade dos soldados em tempos de paz. Enquanto eu pesquisava sobre a atuação das Forças Armadas na segurança pública na última década para o livro Dano Colateral, publicado pela editora Objetiva, deparei-me com um autoelogio oficializado, no Museu Histórico do Exército, em pleno Forte de Copacabana, no coração do ponto turístico mais famoso do Brasil. Na Sala dos Presidentes Militares, inaugurada em 2008, os generais que comandaram a ditadura por 21 anos são apresentados como líderes que “souberam, com raro discernimento, interpretar os anseios de ordem e progresso do nosso povo, conduzindo o País com honestidade, dedicação e respeito, alcançando, inclusive, elevados níveis de crescimento econômico”.

Ao final da ditadura, claro, ninguém diria que tinha sido boa a condução do país pelos militares. Sem contar a tortura, os desaparecimentos e ameaças a opositores do regime, que não se encaixam muito bem na definição de “honestidade, dedicação e respeito”, o salário mínimo tinha perdido 50% do seu valor real, e a inflação, saltado de 80% para 300% ao ano, mas os índices eram manipulados pelo governo. Movimentos de trabalhadores e donas de casa tiveram que fazer, à mão, os cálculos que mostravam que o salário já não era suficiente para comprar a comida do mês. Apesar disso, os militares seguem acreditando – ou simulando acreditar – que “entregaram” de maneira “organizada” o poder aos civis. Poucos admitem que o governo militar se tornara insustentável, por falhas inerentes a uma ditadura, dentre elas a impossibilidade de crítica, ou de autocrítica.

É essa mesma falta de crítica que marca o pensamento militar a partir da década de 1990 com uma novidade, segundo o professor Heraldo Makrakis, coronel da reserva e doutor em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme). O fim da Guerra Fria obrigou as forças de defesa do Hemisfério Ocidental a se repensarem em um mundo unipolar, e foi então que ganhou força nas escolas militares o que ele chama de “gerencialismo”, uma nova roupagem à tradição positivista das nossas Forças Armadas.

Escolas como a Eceme, a Academia da Força Aérea (AFA) e a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) incluíram cursos de administração em seus currículos. Até mesmo o Conselho Federal de Administração passou a aceitar equivalências entre o diploma de ciências militares e o do bacharelado de administração. O resultado foi, segundo o pesquisador, “a prevalência do gerente neoliberal em detrimento do engenheiro desenvolvimentista”, este último uma imagem associada aos militares durante a ditadura. “Existe uma compreensão de que, tendo o treinamento adequado, é possível comandar, governar e gerenciar a tudo e a todos.” Para Makrakis, o gerencialismo anda de mãos dadas com uma nova doutrina de defesa hoje muito influente no pensamento militar brasileiro: a guerra de quarta geração, que mescla segurança pública com defesa e, por consequência, amplia os tentáculos militares para diferentes áreas da vida pública.

É um entendimento tecnicista do mundo que bate de frente com a gestão democrática da coisa pública. “A democracia não é uma coisa pronta, ela é um ponto de partida, sempre”, diz Makrakis. “A forma de discurso da democracia é a retórica dialética que prevê acordos. E a forma do discurso do gerencialismo é analítica, em que você parte de verdades estabelecidas e processos dedutivos e sempre chega às respostas corretas.” É uma percepção que, inclusive, deixa escapar uma verdade irrefutável: os militares erram tanto quanto os outros seres humanos.

Um bom exemplo desse tipo de “gerencialismo militar” é o documento “Projeto de Nação – O Brasil em 2035”, divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Elaborado pelo instituto do ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas, e coordenado pelo general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente da ONG do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, o documento mostra que, na imaginação dos militares, se eles seguirem no comando do Brasil por mais treze anos, o país poderá ficar livre do “globalismo”, do “ativismo judicial” e do marxismo cultural. Para tanto, basta aplicar os passos descritos no documento, como acabar com a gratuidade do SUS e das universidades públicas.

 

Do lado de fora da caserna, a cristalização da ideia de que os militares são “pau pra toda obra” ocorreu na era de ouro das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) durante os governos petistas. Foi o governo Lula que, em 2010, a pedido de Sérgio Cabral, lançou mão da primeira grande operação de GLO nas favelas cariocas. A Operação do Alemão entregou a chave da comunidade ao Comando da Força de Pacificação por um ano e meio. Os militares seguiram no Rio de Janeiro um modelo posto em prática no Haiti, do qual o Exército se orgulhava tanto, a ponto de promover tours gratuitos para jornalistas cobrirem o “êxito” brasileiro no país caribenho. Entre os anos de 2010 e 2016 foram realizadas 35 operações de glo, além das iniciativas de segurança durante a Copa do Mundo e a Olimpíada.

A campanha do Haiti teve bem mais problemas do que ficou registrado na opinião pública. Algumas operações, como a realizada na favela de Cité Soleil, em julho de 2005, causaram mais de sessenta mortes, segundo ONGs locais. Comandada pelo general Augusto Heleno, a operação foi denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A ONU nega que as mortes tenham ocorrido. Houve pelo menos duzentas denúncias de abuso e exploração sexual, poucas delas investigadas. As tropas nepalesas, sob comando do Brasil, importaram cólera para o Haiti, um desastre de gestão que matou mais de 4,5 mil pessoas em um país em frangalhos após um devastador terremoto em 2010. Os recentes distúrbios políticos no Haiti comprovam que, se houve algum legado da campanha militar no país, ele é menor do que apregoam nossas Forças Armadas.

O mesmo vale para a Operação Arcanjo, que ocupou os complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, a partir de novembro de 2010. Durante alguns anos viu-se uma redução da atividade de organizações criminosas, que migraram para outras favelas, dando espaço à Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Construiu-se um teleférico no Alemão e jovens moderninhos estrangeiros se mudaram para lá. O policiamento extensivo com armas pesadas “permitiu que mais de 250 mil pessoas recuperassem a possibilidade de viver com dignidade”, disse o general Adriano Pereira Júnior, na cerimônia de encerramento da operação que ele próprio comandou. Hoje, tudo voltou ao que era antes. Quando entrevistei o general Pereira Júnior para o meu livro, anos depois do fim da Arcanjo, ele foi incisivo. Disse que a operação “não deixou nenhum legado” para o Complexo do Alemão. Ele acha, porém, que as GLOs são “necessárias” sempre que o governo do estado “reconheça que não tem meios suficientes para atender àquela operação”.

Para o general Sérgio Etchegoyen – com quem conversei durante a escrita do meu livro –, a GLO no Brasil “é a falência das outras agências”, que buscam os militares como último bastião. “No Exército a gente tem a expressão ‘Posto Ipiranga’. Tem algum problema? Passa no Posto Ipiranga. E ele vai pra rua fazer tudo, inclusive GLO. Isso é bom? É, do ponto de vista do país é bom saber que tem uma reserva de pessoas, de competências, de capacidades de que ele pode lançar mão numa emergência, mas, ao mesmo tempo, denuncia que as agências do governo brasileiro não têm a saúde que deveriam ter.”

Elogiadas pelos ministros de plantão a cada GLO, as Forças Armadas ganharam ainda mais terreno depois do impeachment de Dilma Rousseff. O sucessor dela, Michel Temer, com uma aprovação popular que raramente passou de um dígito, admitiu (em seu livro A Escolha: Como um Presidente Conseguiu Superar Grave Crise e Apresentar uma Agenda para o Brasil) que os militares deram “prestígio enorme” ao seu governo. O auge desse acordo de cavalheiros foi a intervenção federal no Rio de Janeiro, em 2018, em decorrência do aumento da violência urbana. Um grande fiador da intervenção foi o próprio general Etchegoyen, alçado ao cargo de ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo Temer e amigo de infância do general Villas Bôas.

Naquela época, a imprensa relatou que Villas Bôas estava contrariado. Ele já havia dito abertamente: “Não gostamos de participar desse tipo de operação.” Meses depois, com Bolsonaro já eleito, sua visão era bem outra: “O chamamento de militares para ocupar cargos em outras áreas é uma volta à normalidade”, disse, reforçando que a violência urbana havia se tornado uma questão de segurança nacional. “Naturalmente, de acordo com o que a Constituição prevê, os militares inexoravelmente terão de participar desse esforço nacional, quer como protagonistas, quer como coadjuvantes.”

Os anos seguintes à intervenção no Rio demonstraram que durante essa operação os generais foram picados pela “mosca azul”, como descreveu uma pessoa que tinha trânsito no gabinete do secretário de segurança pública da intervenção, o general Richard Nunes. Ele havia sido nomeado pelo interventor, general Walter Braga Netto, provável candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro e cujas digitais no apoio ao presidente em seu plano de demolir a democracia já fazem dele um dos personagens infames da história brasileira.

A ideia de que os militares seriam “uma reserva de competências e capacidades” à disposição da nação era só a metade da história contada da porta dos batalhões para dentro. A outra metade construía, fechando os olhos para os seus próprios (e numerosos) erros, uma visão preconceituosa e maléfica, segundo a qual os civis falharam na condução do país durante a democracia. Ouvi isso de muitos generais, com divergências apenas nos tons de cinza. Essa visão foi resumida de maneira cristalina em um artigo também de Hamilton Mourão, publicado pelo jornal Zero Hora no dia do primeiro turno das eleições de 2018. No fim da ditadura, escreveu Mourão, uma “parcela da nação, extasiada, julgou que iríamos viver uma época de liberdade, democracia e progresso”. Foi um “ledo engano”, segundo ele, pois aquele período histórico (que estava por terminar) fora marcado por “sucessivos escândalos, todos tendo como escopo o desvio de recursos públicos, seja pelo desperdício, seja pelo roubo puro e simples”.

Não existe um éthos mais profundamente arraigado na retórica bolsonarista do que essa visão tacanha, gestada dentro da caserna e abraçada por parte dela, segundo a qual a democracia foi apenas corrupção – esquecendo-se, convenientemente, de que a censura à imprensa promovida pela ditadura impedia até mesmo que se noticiasse a corrupção no regime militar. Segundo Mourão, o novo governo iria prover “a ordem necessária”, seguindo o exemplo de Duque de Caxias, o Pacificador. “Nossas façanhas servirão de exemplo a toda Terra”, ele escreve, citando o hino do Rio Grande do Sul, seu estado natal.

Vale relembrar melhor essas façanhas.

A intervenção federal do Rio – que inspirou o éthos do governo Bolsonaro – terminou com 76% de aprovação dos cariocas. O combate ao roubo de cargas foi uma prioridade: diminuiu 19% em relação ao ano anterior. Os outros crimes caíram menos, como roubos de rua (7%) e de veículos (8%). Homicídios foram reduzidos em 6,7%. Por trás desses números, a operação deixou um rastro de descalabros difícil de superar. A reforma da polícia e a redução da letalidade e da corrupção policial foram abandonadas no meio do percurso. O crime fugiu da capital e se aboletou no interior. A vereadora Marielle Franco foi assassinada a tiros e até hoje não se sabe quem mandou matá-la. Um levantamento feito pela Defensoria Pública da União contabilizou nada menos que quinhentos relatos de violações de direitos humanos cometidas por policiais e soldados do Exército. O mais chocante talvez sejam as acusações de torturas dentro da Vila Militar, na Zona Oeste do Rio, incluindo chicotadas com fios elétricos, ameaças de sufocamento com saco plástico e de estupro com cabo de vassoura.

Enquanto isso, o Exército ganhou um “banho de loja”, como me disse o general Etchegoyen: “um choque de gestão” de 1,2 bilhão de reais, a verba federal empenhada na intervenção no Rio. Mas até mesmo o choque de gestão está agora sob suspeita: de acordo com uma auditoria sigilosa em uma amostra de despesas da intervenção, ficou comprovado o desvio de finalidade em 80% dos gastos. Segundo a auditoria, obtida pela piauí, grande parte do dinheiro foi gasta com o próprio Exército, em veículos blindados Lince, reforma de instalações em outros estados, upgrade de softwares para o sistema de inteligência. E camarões, muitos camarões, bacalhau e torta holandesa, guloseimas que saíram a um custo de mais de 300 mil reais. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o caso ainda não foi relatado pelo ministro Vital do Rêgo Filho nem enviado para apreciação do plenário.

Na época, o general Richard Nunes se autocongratulou pelo sucesso da intervenção em entrevista a Marcelo Godoy, publicada no Estado de S. Paulo, em 14 de dezembro de 2018. “A sociedade chegou a um ponto de amadurecimento de entender que nossa maior crise era ética, muito mais do que econômica e social”, disse. “E as Forças Armadas conseguiram atravessar todo esse processo mantendo alto grau de credibilidade. Elas conseguiram preservar-se pelos valores que encarnam.” Segundo Nunes, os generais da reserva “não têm outro interesse que o da sociedade”, pois “construíram uma vida calcada em princípios e valores éticos sólidos”.

 

Do mesmo modo, a gestão do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde – seguramente um marco na história das calamidades promovidas por militares – foi recompensada. A lógica era bem pouco dialética. “É simples assim: um manda e o outro obedece”, disse o general, em uma live de Bolsonaro, sentado ao seu lado. Obediente, Pazuello ganhou lugar no palanque do presidente e deve ser candidato a deputado federal pelo Rio de Janeiro, com a bênção do ex-patrão. Seguem até hoje diversas investigações sobre o ex-ministro, que, sem ter nenhuma qualificação para o cargo, assumiu a pasta da Saúde quando havia no Brasil pouco mais de 15 mil mortos pela Covid. Deixou o ministério quando os óbitos chegavam a 280 mil, o que garantiu que o país permanecesse em segundo lugar no ranking mundial de vítimas fatais da pandemia.

Além da tragédia que provocou, o comando militarizado da Saúde foi marcado por desastres de gestão. Um grupo de procuradores do Ministério Público Federal (MPF) apontou seis decisões tomadas pela pasta de Pazuello que configuram improbidade administrativa e indicou que as centenas de milhares de mortes ocorridas eram “em grande parte evitáveis”. Entre os erros, omissão na compra da vacina da Pfizer, perda de validade de milhares de exames RT-PCR e obstrução de informações sobre a Covid. Sem falar que Pazuello capitaneou a política de produção e distribuição de cloroquina pelo Exército – foram entregues em todo o Brasil mais de 2,8 milhões de comprimidos sem qualquer eficácia contra a Covid.

O general foi investigado também a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) por suspeita de não ter agido a tempo de evitar a falta de oxigênio nos hospitais do Amazonas, no início de 2021, e pelas mortes em consequência da escassez do produto. (Pazuello foi inocentado graças a uma mudança na lei naquele mesmo ano, segundo a qual é preciso dolo para configurar crime de improbidade administrativa – omissão ou incompetência não bastam.) Ele, claro, não andava só. Uma espiada no levantamento do TCU sobre o número de militares empregados no governo federal, publicado no ano passado, revela que o Ministério da Saúde era a pasta que mais concentrava membros da ativa das Forças Armadas: 1 249, o dobro de 2016. Além disso, o general tinha vinte militares na sua assessoria direta.

O país assiste a recordes de desmatamento nos últimos anos, e também aí se pode encontrar a marca indelével do dedo dos militares. A resposta aos incêndios que devoraram a Amazônia em 2019 – e atraíram atenção internacional – repetiu, claro, a velha fórmula: Bolsonaro mandou o Exército resolver, com uma GLO, a Operação Verde Brasil, dedicada a combater o crime ambiental. Depois disso, fez do general Mourão o principal articulador das políticas para a Amazônia, como presidente desde 2020 do Conselho Nacional da Amazônia Legal, entidade da qual excluiu membros da sociedade civil e até mesmo os governadores dos estados da região – que voltaram ao conselho graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). À primeira GLO seguiu-se outra, a Operação Verde Brasil 2, que teve pouco resultado e causou vergonha ao país no plano internacional, ao ser taxada de “fracasso”. Outra encrenca foi a compra de um satélite finlandês de baixa eficiência por um valor 66 vezes maior do que o gasto com satélites mais adequados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O desmatamento foi o maior da última década. Desapareceu uma área de floresta equivalente a nove vezes o tamanho da cidade do Rio de Janeiro.

 

Conforme a regra do “um manda, o outro obedece”, as Forças Armadas agora protagonizam um dos episódios mais deprimentes de sua história. Em fevereiro, elas enviaram uma série de questionamentos sobre a segurança das urnas eletrônicas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e fizeram sete sugestões de mudança. O TSE respondeu com dois documentos, um deles com mais de seiscentos anexos, e o outro com 48 pontos, respondendo às dúvidas, uma a uma. Nos documentos, o tribunal demonstrou que os militares não estavam entendendo direito o funcionamento das urnas, recusou três das sete sugestões que as Forças Armadas haviam feito e informou que as demais sugestões já eram adotadas, entre elas a totalização de votos em nível regional. Por fim, o TSE apontou erros de cálculos dos militares.

Neste caso, a incompetência juntou-se ao ânimo golpista. A trama contra a lisura das eleições vem sendo armada por bolsonaristas desde 2019, quando o general Luiz Eduardo Ramos, hoje ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, recorreu aos serviços de um técnico em eletrônica para apregoar a ocorrência de fraude no pleito de 2014 – o que nunca foi comprovado. O técnico em eletrônica contou à Polícia Federal que, além do general Ramos, chegou a se reunir com o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e com o próprio presidente Bolsonaro, todos interessados em encontrar algum indício capaz de desmoralizar a votação eletrônica.

Em agosto do ano passado, a porcentagem de brasileiros que aprovava a participação de militares no governo chegou ao nível mais baixo: 32%. Contudo, no levantamento mais recente do jornal digital Poder360, essa porcentagem se recuperou, chegando a 43%, contra 44% que desaprovam a presença militar no governo.

Os erros cometidos pelos militares em suas investidas como gestores públicos são tabus no reino de Bolsonaro. O silêncio mais ensurdecedor é o dos generais, que no passado lamentavam toda vez que um governo os procurava para funções extras. A primeira vez que vi a expressão “Posto Ipiranga” foi no começo de 2018, em uma entrevista ao Correio Braziliense do general José Carlos de Nardi, ex-comandante do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas que coordenou a segurança da Copa do Mundo. Ele reclamava que a intervenção federal no Rio de Janeiro não daria em nada – como não deu – e criticava a decisão de relegar ao Exército a Operação Acolhida, que recebe e abriga refugiados venezuelanos na fronteira com Roraima. Sabiamente, o general fez uma pergunta que cabe como uma luva nos dias de hoje:

– O que o Exército tem a ver com isso?