Militares querem manter pressão sobre governo Lula, diz antropólogo

Militares querem manter pressão sobre governo Lula, diz antropólogo
Militares querem manter pressão sobre governo Lula, diz antropólogo

CHICO ALVES

REPORTAGEM

Militares querem manter pressão sobre governo Lula, diz antropólogo

O presidente Jair Bolsonaro, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército  - Marcos Corrêa/PR

O presidente Jair Bolsonaro, na Escola de Comando e Estado-Maior do ExércitoImagem: Marcos Corrêa/PR
Chico Alves-Colunista do UOL
 

 

Os grupos de bolsonaristas em camisas da seleção brasileira acampados à beira de quartéis não levarão as Forças Armadas a dar um golpe no governo eleito, como os manifestantes desejam, mas servem para manter os militares com cacife para pressionar o governo de Luiz Inácio da Silva. São como um espantalho, diz Piero Leirner, professor de Antropologia da Universidade Federal de São Carlos e pesquisador das Forças Armadas e da guerra.

É nesse contexto, acredita Leirner, que deve ser analisada a nota oficial divulgada na sexta-feira (11), com a assinatura dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

 

"Os comandantes militares poderão ter todo o interesse em manter um espantalho durante quatro anos do governo do Lula", analisa o antropólogo, em entrevista à coluna. "Eles não vão querer sepultar isso que virou uma espécie de capital político grande que os militares têm. Então, a nota alimenta essas expectativas".


Leirner desmente a crença geral de que os militares abertamente bolsonaristas do governo são uma minoria descolada do pessoal da ativa. Para ele, a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência é resultado de uma estratégia das Forças Armadas, como bloco.

O objetivo dos fardados agora é manter o controle da situação sem que precisem recorrer a uma quartelada.

Nessa conjuntura complexa, o antropólogo cita procedimentos que podem ajudar a esfriar a relação de Lula com as Forças Armadas, a começar por deixar de lado a ideia de mexer nos currículos das escolas militares e não interferir na dinâmica de promoção dos oficiais generais.

UOL - O que achou da nota assinada pelos comandantes das três forças?

Piero Leirner - Eu não lembro de ter visto nada parecido. Já no primeiro parágrafo vem com essa história de poder moderador. É uma palavra muito capciosa, tudo evidentemente pensado de acordo com a ideia que já está sendo construída por eles há muito tempo, da qual acho que eles não vão abrir mão, de que eles são fiéis da balança dessa eleição.

Então, eu acho que tem ali uma espécie de pegadinha narrativa para reforçar a percepção de que no fundo todo o processo depende deles. Para o lado que for, de Lula ou de Bolsonaro. Isso não é de agora.

Acredita que a nota foi feita por pressão de Bolsonaro?

Acho que não tem nada a ver. O Bolsonaro só é acionado em função do ponto que o topo hierárquico das Forças Armadas estão querendo provocar ou não, e isso acaba arrastando todo o resto. Ele é acessório, não é o iniciador do dispositivo do circuito, vamos dizer assim. Ele é o intermediário de uma vontade que colocam através dele. Sempre foi isso, com as eleições não ia ser diferente.

O que que eles estão querendo? É a grande pergunta. Do meu ponto de vista, o relatório da Defesa (sobre as urnas eletrônicas) e as notas do ministro da Defesa e dos comandantes fazem parte de um jogo em que eles alimentam expectativas de um campo de um lado e de forma mais ou menos combinada também alimentam a expectativa do outro lado. Para mim, tudo soa mais ou menos como uma espécie de movimento tácito, de uma guerra mais ou menos teatral.

Eu tenho a impressão que já há algum tempo eles (os comandantes militares) estavam desejando que quem ganhasse essa eleição não podia levar por uma ampla margem de votos. Isso para mim era o principal problema que eles tentariam evitar E eu acho que esse resultado ocorreu dentro das expectativas, num certo sentido, 51% a 49%. Talvez esperassem esse resultado a favor do lado contrário, isso eu acho que frustrou um pouco.

A nota vai ser lida, como todos os outros documentos, de forma ambígua. Quem quiser, vai ler que é uma nota que põe um ponto final na história. Mas quem quiser também pode interpretar que eles deixam uma espécie de chama acesa dentro do bolsonarismo.

 

O antopólogo Piero Leirner - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal

Imagem: Arquivo Pessoal

 

Qual o objetivo dessa estratégia?

Os comandantes militares poderão ter todo o interesse em manter um espantalho durante quatro anos do governo do Lula. Isso vai botar uma rédea no próximo governo, vai ser um ponto de pressão em cima do governo. Eles não vão querer sepultar isso que virou uma espécie de capital político grande que os militares têm. Então, a nota alimenta essas expectativas.

Por outro lado, com certeza vai haver uma reação dissimulada sobre essa nota, de agradecimento por reconhecer que o processo é lícito, que confiam nas instituições. Quem quiser vai ler que as Forças Armadas estão falando que estão dentro das quatro linhas da Constituição. E simplesmente vão passar uma borracha na citação ao poder moderador.

Além disso, a nota trata como legítimo movimentos golpistas que são proibidos por lei.

É claro, é evidente isso. Estão fazendo justamente com esse objetivo: "Vamos manter aí esse pessoal rezando pra muro de quartel". Mas você também não tem como dizer que a nota é um encorajamento direto a esse movimento. Porque isso equivaleria a eles dizerem: "Isso foi uma fraude e não aceitamos o resultado". Isso seria a senha. Uma outra senha seria o Bolsonaro fazer uma live falando isso. Não houve essa live.

A gente precisa pensar também no tipo de compromisso que as Forças Armadas têm. Por exemplo, como é que ficaria a situação das Forças Armadas brasileiras lá no US South Com (Comando Sul das Forças Armadas dos Estados Unidos, elo com a América Central e América do Sul)? Ou como ficaria a situação deles lá no escritório de compras de Washington?

Ou seja: não creio que (os militares) vão virar a mesa. Me parece completamente inverossímil a possibilidade de eles fazerem uma quartelada ao modo clássico, mas sim agirem sempre nesse plano subliminar, fazendo pressão política, utilizando o que a gente pode chamar "procuradores" para fazer isso. Como esses manifestantes, por exemplo.

A ideia é que as Forças Armadas mantenham o controle, mas sem se expor?

Sim. O governo Bolsonaro foi a primeira tentativa disso. Quantas vezes não vimos vez ou outra alguma super-operação de mídia para passar a ideia de que governo é uma coisa e a instituição das Forças Armadas é outra? Ou a própria ideia de que existem generais bolsonaristas e também generais não-bolsonaristas. Como se não fossem um bloco, como se não tivesse de fato uma ação militar por trás desse negócio e fosse uma questão de adesão pessoal, por magnetismo, em relação a Bolsonaro. Isso sempre foi uma característica e não vão se desfazer disso.

Um outro ponto importante para eles estarem alimentando essa pressão é a expectativa de como vai ser a condução do governo Lula em relação à nomeação dos próximos comandantes.

O que esperar da relação das Forças Armadas com o governo eleito?

Não sei, porque não está claro ainda o tipo de relação que o próximo governo vai propor às Forças Armadas. Eles não deram ainda sinal de qual vai ser o script. Saiu transição pra quase todas as áreas, mas pra essa ainda é uma incógnita.

Os militares devem estar esperando para ver quem vai ser o ministro, quem vão ser os comandantes, e talvez a tal nota tenha a ver com isso também.

Parece que Bolsonaro esperava das Forças Armadas algum gesto mais forte do que uma nota.

Eu não acho que o Bolsonaro esperava mais, não. Não acho que ele se vê enquanto um agente com plena liberdade de ficar esperando coisas, chantageando e tal. Acho que ele age de forma a parecer um errático, desvairado, de forma pensada. Mas em relação às Forças Armadas ele sabe muito bem quais são os limites dele.

Bolsonaro não faz nada ali que não esteja de certa forma ou endossado ou mesmo ordenado ou sugerido a partir daquele cluster militar que o engloba. Não acho que esse núcleo trabalhe em dissonância em relação à ativa, embora eles tentem mostrar isso o tempo inteiro. Pelo contrário, eu acho que é uma linha muito bem construída.

Para os militares do governo foi muito confortável ter Olavo de Carvalho e aquele bando de radicais como Ernesto Araújo, etcetera e tal? Porque isso blindava a real posição deles ali. Em relação a esses, os militares apareciam como moderados, como os racionais. Isso nunca foi assim.

Qual o melhor caminho para fazer os militares voltarem aos quartéis e que se mantenham nos limites de sua missão constitucional?

Acho que tem dois pontos. Primeiro: não se pode chegar com o pé na porta. Não tem jeito, se voltar a essa conversa de mudança de currículo e de mexer nas promoções é a senha para tudo dar errado. Principalmente porque eles ainda estão com muita força e muito mais força que o PT, que está entrando em uma posição fragilizada. Mais uma vez ressalte-se o interesse dos comandantes das Forças Armadas em manter um espantalho durante o governo inteiro, porque assim eles se tornam imexíveis.

De outro lado, acho que tem que ser uma conversa a conta-gotas. Tem que fazer aquilo que o Lula sempre soube fazer, diga-se de passagem, de chamar para a mesa e começar a acertar uma negociação. Mas para isso é preciso ter algum cacife na mão, para negociar. Que cacife ele vai ter, eu não sei.

Por enquanto há uma boa vontade da imprensa com o novo governo, mas você vê que os militares estão mais ou menos se lixando para o que a imprensa está falando ultimamente. Descobriram que podem mobilizar uma base alternativa e que podem dar um "by pass" na opinião da imprensa, da ciência, de tudo mais.

Ou vamos fazer uma solução à brasileira e passar uma borracha em absolutamente tudo. "Vamos deixar esse negócio aí?", "vamos esquecer?", etcetera e tal. Eles têm a preocupação de passar a borracha em muita coisa e eles podem querer isso. O negócio do Pazuello pode ser um calo.

E essa ideia de que a chegada de generais de uma nova geração pode atualizar o perfil do Alto Comando? Faz sentido?

Isso faz alguma diferença. Não porque eles pensem tão diferente, mas porque eles podem mobilizar a ideia de que são uma nova geração e que, portanto, são diferentes. Isso pode ser uma carta na manga e provavelmente é algo que deve estar sendo falado para o governo de transição. Algo como; "Pensa bem em quem você vai por como comandante". Porque o xadrez é o seguinte: dependendo de quem for, é possível mover todo o xadrez dentro do generalato.

´Mas tirar os mais antigos na fila de possíveis comandantes não causaria descontentamento?

Essa é uma iniciativa que talvez parta dos próprios militares. Seria um jeito de eles equacionarem. Jogam essa proposta no colo do Lula, para parecer que é movimento do presidente. Assim eles poderiam dizer: há uma nova geração aqui, vamos passar uma borracha no episódio Bolsonaro.

Enquanto isso, continuam com o Bolsonaro ativo, quase como se fosse um algoritmo, um pernilongo, que fica zumbindo a noite inteira.