Getninjas: o perverso leilão digital de trabalho humano

Plataforma cobra por promessas de trabalho. Usa moeda virtual própria, cujo valor é definido sem transparência – e por especulação algorítmica. Trabalhador é submetido a leilão negativo: ganha quem aviltar ao máximo o preço do serviço

Getninjas: o perverso leilão digital de trabalho humano

Getninjas: o perverso leilão digital de trabalho humano

Plataforma cobra por promessas de trabalho. Usa moeda virtual própria, cujo valor é definido sem transparência – e por especulação algorítmica. Trabalhador é submetido a leilão negativo: ganha quem aviltar ao máximo o preço do serviço

OUTRASPALAVRAS

TECNOLOGIA EM DISPUTA

Por 

 

Este artigo integra as discussões semanais a respeito do processo de digitalização da economia e do espraiamento setorial das empresas-plataforma no Brasil, sobretudo as de trabalho, que farão parte da edição da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho de maio de 2022. As publicações também são fruto de parceria com a Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) e a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET). Leia outros textos desta série sobre as várias faces da precarização do trabalho.

> Título original: Uma breve análise do trabalho na Getninjas

As plataformas digitais de trabalho, vetor expoente da economia digital, estão cada vez mais presentes no mundo do trabalho, alcançando desde as conhecidas viagens em veículos privados, entregas, serviços domésticos, compras, mas também a venda de pequenas tarefas e serviços técnicos on-line e presenciais. Diante da diversidade de atividades e de modos de intermediar o trabalho, optamos por analisar o modelo da empresa GetNinjas, que funciona de modo muito diferente, por exemplo, do modelo mais conhecido, como é a Uber.

GetNinjas S/A é uma plataforma digital de trabalho brasileira fundada em 2011. Classifica-se como prestadora de serviços de anúncios on-line, definindo-se como “a maior plataforma de contratação de serviços do Brasil”. A empresa alega ser somente responsável por conduzir a conexão entre promitentes contratantes (tomadores de serviço) e promitentes prestadores/as de serviço (trabalhadores), por meio de um aplicativo para Android e iOS ou através de seu portal eletrônico. Destaca-se que a plataforma possui mais de 500 categorias de serviços disponíveis e mais de 2 (dois) milhões de profissionais cadastrados. Em 2021 a empresa abriu o seu capital captando algo em torno de R$ 550 milhões em sua oferta pública inicial (IPO) na Bovespa.

Inicialmente, é preciso situar que, conforme literatura sobre o tema, há inúmeros modos de organização do trabalho por intermédio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), resultando em variadas classificações. No entanto, a concepção de plataforma como um modo de organização empresarial (modelo de negócios) não é nova, bem como não se limita apenas ao ambiente virtual. O shopping center e a feira são exemplos de modelos de plataforma, pois são espaços em que comerciantes distintos podem encontrar (função de conexão) compradores e, naquele ambiente físico (ou digital) realizar os seus negócios. Desse modo, uma plataforma nada mais é do que um local físico e/ou virtual que propicia a comunicação entre grupos, ou melhor, que apenas realiza a governança de diversos atores/grupos1.Ademais, alertam Carelli e Oliveira que a plataforma não é uma atividade econômica, não se confunde com empresa, mas é uma técnica de organização empresarial. Ainda segundo os autores, quando esse modelo empresarial utiliza da tecnologia computacional para integração desses grupos então se tem uma plataforma digital. Ainda de acordo com os autores, essas plataformas podem ser observadas e classificadas a partir de três critérios: (i) conforme sejam plataformas puras ou mistas/híbridas; (ii) de acordo com o ramo ou setor de prestação de serviço; e, por último, (iii) em relação ao local de entrega do resultado do serviço.

A plataforma pura não exerce controle sobre os negociantes, ou seja, opera simplesmente como marketplace, ou como “ponto de encontro” entre compradores e vendedores. Já nas plataformas mistas/híbridas há uma combinação entre mercado e hierarquia. Pode-se dizer também que são plataformas dirigentes, porque gerenciam e dirigem os vendedores, inclusive com padronização dos serviços, vigilância, precificação e punição. O segundo critério é mais propriamente classificatório, referindo-se ao ramo do serviço intermediado ou ofertado pela empresa, se de transporte de objetos, de pessoas, entrega de comida, de compras de supermercado; de manutenção doméstica ou serviços pessoais de todo tipo etc. O último critério refere-se ao fato de a entrega do serviço ocorrer on-line ou fisicamente.

As plataformas digitais do tipo marketplaces, ou puras, têm denominação inspirada no funcionamento das feiras livres e dos shoppings centers. São exemplos tipo de plataforma o Mercado Livre e algumas empresas de varejo on-line do Brasil, por exemplo, Magalu e Submarino etc. Algumas plataformas digitais de trabalho também operam como marketplace, pois apenas intermediam oferta e demanda de serviços, atuando como agências de trabalho.

Este é o caso da plataforma GetNinjas que atua como marketplace realizando a intermediação entre o/a trabalhador/a e o/a solicitante. Outrossim, pode-se classificar a GetNinjas em um crowdsourcing misto e genérico, em conformidade com a categorização proposta por Todolí Signes2Crowdsoucing misto dado que a prestação de serviço pode ser efetuada tanto de modo online quanto offline e, genérico, em razão que o/a solicitante pode requerer qualquer tipo de atividade, dado que a plataforma oferece desde uma faxina do dia a dia até uma assessoria de investimentos, logo, disponibiliza uma multiplicidade de serviços e trabalhadores/as com qualificações diversificadas.

A GetNinjas anuncia ao/à demandante de trabalho/serviço a oferta gratuita de até 4 (quatro) orçamentos. Essa gratuidade, entretanto, só é possível porque os/as trabalhadores/as pagam para ter acesso ao contato dos/as solicitantes, por meio das moedas virtuais. Sem a compra dessas moedas os/as trabalhadores/as não podem negociar o preço dos seus serviços com os/as prováveis clientes.

A plataforma GetNinjas comercializa 3 (três) pacotes de moedas virtuais: prata, ouro e diamante. O pacote prata custa R$ 149,00 para 1000 moedas, enquanto o pacote ouro custa R$ 299,00 e oferece 2000 moedas. Por último, o pacote diamante cobra R$ 599,00 para 4000 moedas (valores verificados em 8/2/22). O pagamento pode ser parcelado no cartão de crédito em até 3 (três) vezes.

Registre-se que a plataforma não regula a negociação, deixando livremente as partes acordarem entre si, isto é, sem impor valor, qualidade ou condições de prestação de serviço. Apesar disso, não existe outra forma de obter acesso aos/às clientes, senão a partir das moedas virtuais definidas pela plataforma. Além disso, a disponibilidade e o valor da moeda podem ser alterados unilateralmente, conforme o item 13 nos termos de uso.

Ademais, os valores para desbloquear os contatos dos/as prováveis clientes podem variar muito de uma solicitação para outra, não tendo um padrão, mesmo que sejam pedidos de trabalhos/serviços semelhantes. Consoante os termos da GetNinjas essa variação dinâmica é estruturada por particularidades como o tipo de serviço, oferta de orçamentos e local. É imperioso assinalar que a alteração do valor dos pacotes e da quantidade de moedas para desbloquear o contato do/a contratante podem ocorrer sem qualquer aviso. Como é comum nas Plataformas Digitais de Trabalho, o preço dinâmico é determinado por algoritmos de inteligência artificial, que operam sem transparência ou controle de terceiros, incluindo os/as trabalhadores/as.

Igualmente, esse sistema de cobrança afronta o princípio da não-mercantilização do trabalho da Convenção 181 da OIT de 1997, relativa às agências de emprego privadas. A plataforma cobra do/a trabalhador/a para aproximá-lo/a da oferta de trabalho/serviço. Logo, há uma venda de oportunidade de trabalho. Carelli e Bittencourt3 defendem que essa convenção da OIT se aplica à GetNinjas, pois a natureza da plataforma é de uma agência de emprego privada. Além disso, apesar de o Brasil ainda não ter ratificado a Convenção 181, a CLT permite a sua aplicação4, haja vista que o país não possui regulamento específico para as agências de emprego. Dessarte, esses autores apontam a redação do art. 1.º, item 1, alínea “a”, da C181/OIT5, para demonstrar que a convenção abarca o modelo de negócio da GetNinjas, assim como o art. 7.º, item 1, da C181/OIT6, que estabelece a proibição da cobrança de encargos ou honorários dos/as trabalhadores/as por parte das agências privadas.

Do modo como foi projetada, a GetNinjas conduz os/as trabalhadores/as a participarem de uma espécie de leilão negativo. Ao contrário dos leilões convencionais, em que vence quem der o lance mais alto, num sistema em que os lances são transparentes, o sistema da GetNinjas força o/a prestador/a do serviço a oferecer o menor valor possível, já que a pessoa não tem conhecimento das outras propostas apresentadas por outros/as trabalhadores/as. Isto é, o/a trabalhador paga a plataforma pelo direito de participar de um leilão com outros três concorrentes, no qual o vencedor é aquele/a que aviltar ao máximo o preço do serviço ofertado.

Nesse modelo de funcionamento, o/a trabalhador/a fica desprotegido/a, sem a garantia de que, ao gastar as moedas, conseguirá fechar os pedidos. Partindo da perspectiva de disputa e meritocracia, encapada pela racionalidade neoliberal do homem empreendedor, essa dinâmica do leilão negativo, o “melhor” significa aquele que oferecer o menor orçamento, não tendo, necessariamente, relação com a qualidade.

O mais curioso é que a concorrência exacerbada decorrente do leilão negativo, que causa incertezas e frustrações, nem sempre é percebida como o problema maior da relação entre os/as trabalhadores/as e a empresa, mas apenas como alguns pormenores na estruturação das plataformas. Muitos nem chegam a reconhecer o problema7. É mais um caso dentre os muitos discutidos nesta série de estudos, de influência da ideologia neoliberal na construção da subjetividade dos/as trabalhadores/as, nesse sistema que transforma tudo em mercadoria.

Assim, pensamos que não existe relação de emprego dos prestadores de serviços na GetNinjas pois a plataforma não tem um controle relevante dos/as trabalhadores/as cadastrados/as, especialmente porque não precifica, vigia ou controla os/as trabalhadores/as mesmo que ela promova um sistema de concorrência desleal e de leilão negativo que encontra óbice por força do princípio da não-mercantilização do trabalho. Desse modo, faz-se necessário o afastamento desse sistema de leilão negativo, a fim de que, conforme princípio da OIT, que o trabalho humano não seja tratado como mera mercadoria.


1 CARELLI, R. L.; OLIVEIRA, M. C. S. As Plataformas Digitais e o Direito do Trabalho: como entender a tecnologia e proteger as relações de trabalho no Século XXI. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021.

2 SIGNES, 2017 apud CARELLI, R. D. L.; BITTENCOURT, A. T. DE C. Ninjas Fazem Bico? Um estudo de plataforma de crowdsourcing no Brasil. REI – Revista Estudos Institucionais, v. 6, n. 3, p. 1289–1309, 30 dez. 2020.

3 CARELLI, R. D. L.; BITTENCOURT, A. T. DE C. Ninjas Fazem Bico? Um estudo de plataforma de crowdsourcing no Brasil. REI – Revista Estudos Institucionais, v. 6, n. 3, p. 1289–1309, 30 dez. 2020.

4 Empregando o direito comparado, conforme o art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho.

5 Serviços que visam a aproximação entre ofertas e procuras de emprego, sem que a agência de emprego privada se torne parte nas relações de trabalho que daí possam decorrer (art. 1.º, item 1, alínea “a”, da C181/OIT).

6 As agências de emprego privadas não devem impor aos trabalhadores, directa ou indirectamente, no todo ou em parte, o pagamento de honorários ou outros encargos. (art. 7.º, item 1, da C181/OIT).

7 OLIVEIRA, M. C. S.; CARDOSO, A. K. M.; LOPES, R. H. S.; GOMES, S. H. C.; FRANCA, T. B. O Trabalho Na Plataforma Digital GetNinjas: vitrine de pessoas, moedas virtuais e leilão reverso. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 6, p. 1-31, 2021. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/rjur/article/view/e41812>. Acesso em: 08 de fev. de 2022.