Uma comunista surpreende o Chile

Uma comunista surpreende o Chile
Jeanette Jara venceu as primárias da esquerda com folga e será candidata à Presidência. Sua origem humilde e atuação como ministra do Trabalho são trunfos. Ela avança nas pesquisas e desafia o favoritismo e a campanha suja da ultradireita
OutrasPalavras
Por Tomás Leighton

Boletim Outras Palavras
Por Tomás Leighton, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues
No dia 29 de junho, ocorreram eleições primárias no Chile, marcando o início do processo que culminará na escolha de um novo governo no final de 2025. Pela primeira vez desde a implantação do sistema de primárias, a direita tradicional decidiu não participar — o que exigiria um acordo entre suas diferentes facções —, e apenas o progressismo foi às urnas. [Na primeira pesquisa após as primárias, realizada pelo Panel Ciudadano, Jeannette Jara tem 26% das intenções de voto, superando o ultradireitista José Antonio Kast (23%) e a direitista Evelyn Matthei].
Com um sistema de voto voluntário que excluía apenas os militantes formais dos partidos que não participaram, a aliança Unidade pelo Chile inscreveu quatro candidaturas: Jeannette Jara (Partido Comunista e Ação Humanista), Gonzalo Winter (Frente Ampla), Carolina Tohá (Partido pela Democracia, Partido Socialista, Partido Liberal e Partido Radical) e Jaime Mulet (Federação Regionalista Verde Social).
Logo após as inscrições, a ex-ministra do Interior Carolina Tohá saiu na frente, com o dobro a intenção de voto dos concorrentes, com um nível de reconhecimento público próximo a 80%, segundo as principais pesquisas. A representante da coalição Socialismo Democrático começou sua carreira política nos protestos contra Augusto Pinochet na Universidade do Chile e foi uma das fundadoras do Partido pela Democracia (PPD). Trabalhou como subsecretária no governo de Ricardo Lagos e, nos anos seguintes, atuou como deputada, ministra e prefeita da comuna de Santiago.
Filha de José Tohá, ministro do Interior de Salvador Allende, cresceu exilada no México após o assassinato do pai e, 50 anos depois, ocuparia o mesmo cargo: sua longa experiência no serviço público foi requisitada pelo governo de Gabriel Boric para reestruturar seu gabinete em meio a uma crise de segurança sem precedentes e com níveis de medo “os mais altos do mundo”. Embora a gestão de Tohá tenha conseguido reverter o aumento na taxa de homicídios e aprovar mais de 60 leis — incluindo a criação do Ministério da Segurança Pública —, sua candidatura não conseguiu se distanciar dos problemas nessa área.
A campanha de Tohá tentou se distanciar da gestão do governo do qual fez parte até poucas semanas atrás, recorrendo a técnicos da era da Concertação (coalizão de centro-esquerda de socialistas e democratas-cristãos que liderou a transição pós-ditadura) e explorando seus atributos de liderança firme. No entanto, sua estratégia de se diferenciar do Frente Ampla e do Partido Comunista resultou em discussões pouco relevantes para a maioria dos eleitores.
Isso contrastou com a campanha de Jara, que adotou um estilo empático e evitou polêmicas com seus concorrentes. Para vencer, Jeannette Jara partiu do princípio de que apenas 34% da população a conhecia no início da campanha e focou todos os esforços em se tornar conhecida.
Natural do bairro El Cortijo (Conchalí), na periferia de Santiago, a candidata cresceu na “mediagua” (como são chamadas as moradias de emergência no Chile) da avó, enquanto frequentava a escola pública.
Quando os debates televisivos e a opinião pública focaram em seu militantismo comunista, Jara conseguiu se distanciar parcialmente de sua filiação partidária, explicitando as diferenças com a liderança do partido de forma cortês e descontraída, enquanto concentrava sua estratégia digital em partes de sua biografia direcionadas ao público jovem.
No Chile, como aponta uma pesquisa de Nicolás Angelcos, em vez da dicotomia esquerda-direita, os setores populares tendem a avaliar seus representantes por sua proximidade, e os políticos são especialmente penalizados quando vivem em bairros privilegiados e parecem defender interesses próprios. Num contexto de baixo entusiasmo popular pelas primárias, Jara entendeu que seu crescimento dependia de evitar as complexas interpelações de Winter e Tohá, enquanto sua origem humilde contrastava naturalmente com a de suas rivais. Foi assim que ela conquistou o apoio do independente Matías Toledo, prefeito de Puente Alto, uma das comunas mais populosas de Santiago.
Mas as estratégias que consolidaram o apoio majoritário do progressismo a Jara só funcionaram devido a seus feitos como ministra do Trabalho e Previdência. Indicada por Boric e peça fundamental de seu Comitê Político no governo, Jara aprovou a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, o aumento do salário mínimo (hoje o mais alto da América Latina) e a maior reforma previdenciária em 43 anos (após três governos consecutivos fracassarem na tentativa). Esse último ponto ilustra sua habilidade de negociação política, pois a reforma foi apoiada por parte da direita tradicional no Parlamento, enquanto era criticada pelo ex-pré-candidato comunista Daniel Jadue — derrotado por Boric em 2021 —, que a considerou tímida.
As divergências com o ex-rival de Boric e até com o presidente do PC, Lautaro Carmona, foram constantes durante a campanha. No final da campanha, Carmona negou violações de direitos humanos na Venezuela mencionadas por Jara, chamou Cuba de “democracia avançada” e sugeriu um terceiro processo constituinte — o que a candidata desmentiu imediatamente (após duas constituições rejeitadas em plebiscito, poucos chilenos querem ouvir falar em nova convenção).
“A vitória de Jara nas primárias é o triunfo de uma liderança pessoal notável e também das novas gerações comunistas pavimentadas por Guillermo Teillier no PC, que amadureceram politicamente, adquirindo habilidades de gestão estatal e cultura de coalizão nos governos de [Michelle] Bachelet e Boric”, explicou o historiador Alfredo Riquelme, autor do livro Ocaso Vermelho: O comunismo chileno entre ditadura e democracia (2009), ao jornal La Tercera.
Em resumo, Jara – que procurou deixar de lado a simbologia do PC na campanha – conseguiu não se envolver em discussões internas com seus concorrentes de centro-esquerda e, ao mesmo tempo, contornar as tentativas da direção do partido de impor sua linha ideológica. Dessa forma, conseguiu focar no essencial: consolidar atrás de si a maior parte da base de apoio do governo Boric. Com isso, conseguiu encurralar o próprio candidato da Frente Ampla, a força política do presidente, unificada em um único partido no final de 2024: Winter ficou relegado a apenas 9% dos votos.
Próximo colaborador de Boric antes que este chegasse ao Palácio de La Moneda, durante seu mandato como deputado Winter aproveitou sua habilidade discursiva para assumir o papel de espadachim nos principais meios de comunicação e especialmente nas redes sociais. Mas desta vez, em vez de “defender os pontos” do governo, sua campanha optou por evitar ser o candidato da continuidade para se conectar com as frustrações de sua própria base.
Nessa linha, a campanha da Frente Ampla reabriu a discussão sobre o ciclo de governos da Concertação, do qual Tohá foi uma figura relevante. Mas enquanto se intensificava o embate entre Tohá e Winter sobre a interpretação de um período que terminou há 16 anos, Jara já havia fincado sua bandeira com força. Sua vitória esmagadora com mais de 60% dos votos só é comparável ao triunfo de Michelle Bachelet na primária presidencial de 2013, quando obteve 73% das preferências.
O dado mais importante de uma eleição primária para prever as gerais é a participação. Embora o comparecimento de 1.420.435 eleitores tenha sido menor que o registrado na primária entre Boric e Jadue em 2021, superou amplamente a participação da direita em suas primárias de 2013 e 2021. E a votação pessoal de Jara ficou a apenas 2.000 votos de alcançar a votação de Sebastián Piñera na primária do Chile Vamos em 2017, após a qual foi eleito presidente da República.
De qualquer forma, a comparação com a participação em primárias anteriores deve considerar que tanto o primeiro quanto o segundo turnos presidenciais ocorrerão com o sistema de voto obrigatório, que incorporou mais de 3 milhões de eleitores que antes não votavam. Em outras palavras, Jara precisará triplicar sua votação para chegar ao segundo turno presidencial, o que impõe grandes desafios de negociação no campo progressista e o enfrentamento de uma forte campanha anticomunista contra ela.
Nestas primárias, a direita não foi o único ator que se autoexcluiu das eleições. Apesar de ter participado da aliança eleitoral progressista nas últimas eleições locais, o Partido Democrata Cristão decidiu se afastar diante da possibilidade de ter que apoiar uma candidata comunista. O partido não faz parte da aliança governista, mas tem sido um apoio fundamental de Boric no Congresso. Embora a votação democrata-cristã tenha caído significativamente nas últimas décadas, o longo caminho que a Unidade pelo Chile precisará percorrer para chegar ao segundo turno deve incluir um entendimento com os setores moderados reticentes.
Jara já adiantou que tentará seduzir a Democracia Cristã. Há 20 anos, o Chile vive uma situação hoje mais comum na região: quase nenhum governo democrático consegue passar a faixa presidencial a outro do mesmo espectro político. Desse ponto de vista, a direita – que lidera as pesquisas – está melhor posicionada para as eleições de 16 de novembro próximo.
A oficialização de Jara como candidata do progressismo chileno pode ter efeitos díspares no campo das direitas. Por um lado, José Antonio Kast (Partido Republicano) e Johannes Kaiser (Partido Nacional Libertário) – que busca repetir o fenômeno Javier Milei na Argentina – poderiam radicalizar seu discurso contra a esquerda, atribuindo a herança do comunismo no mundo a todos os setores democráticos. Por outro lado, Evelyn Matthei poderia tentar ocupar o centro político. Favorita nos últimos meses, a candidata da União Democrata Independente (UDI) teve que enfrentar problemas em sua campanha e o desgaste de liderar as pesquisas por muito tempo, e hoje luta contra a ameaça persistente de Kast, que chegou a superá-la nas pesquisas.
O desafio de Jara é chegar ao segundo turno e, nesse caso, tentar reduzir a vantagem da direita. Embora o objetivo máximo do progressismo seja repetir o governo, o objetivo mínimo é que a direita não obtenha 4/7 das cadeiras parlamentares, o que lhe permitiria reformar a Constituição. Para isso, a vitória de Jara nas primárias deixa algumas lições úteis.