Cinzas lançadas no rio

Há um cemitério sob as águas do Rio Novo, em Avaré. O que os olhos não veem, o coração pressente.

Cinzas lançadas no rio

João Teixeira 

Cinzas lançadas no rio

Juliana Neves 

Há um cemitério sob as águas do Rio Novo, em Avaré. O que os olhos não veem, o coração pressente.

E, se cada um tem seu papel na História, eu, como jornalista e escritor, obrigo-me a transmitir ás novas gerações o escabroso legado de terror herdado dos “anos de chumbo”, que explica muito a existência de milícias e “esquadrões da morte” do Brasil pós-moderno. O terror praticado pelos órgãos de segurança em defesa dos valores da civilização ocidental cristã e da Doutrina da Segurança Nacional. Porém, como dizia o esquartejador, vamos por partes. O Estado militar (1964/1985) que instituiu uma democracia de fachada, manteve abertas as Câmaras Municipais e o Senado, e realizava eleições a cada 4 anos através de 2 partidos artificiais (Arena e MDB), além de promover o rodízio dos generais no poder, foi único no continente. O Brasil miscigenado é único, singular, distinto da tradição caudilhesca da América espanhola.

Os generais brasileiros, á frente da cadeia de comando na segurança interna, também inovaram ao criar um eufemismo muito mais terrível que a morte na perseguição movida a seus adversários políticos: os “desaparecidos”. Significava assassinatos em cárceres privados, fora de quartel ou delegacia, sem direito a defesa, atestado de óbito, velório nem choro nem vela por parte dos companheiros e entes queridos. Sem corpo para sepultar, conforme nossa tradição cristã. Os “desaparecidos” foram vítimas da perseguição, prisão, tortura, esquartejamento (como Tiradentes) e incineração por parte dos algozes. Esta foi uma das fórmulas, dignas de filme de terror, que o aparato policial e militar utilizou para livrar -se de seus adversários, segundo denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra ex-agentes do DOi/Codi, do II Exército, pelo assassinato de um jornalista e dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), na “Casa de Itapevi”, na Grande SP.

Como chegamos a essa realidade macabra? Precisamos compreender a conjuntura política dos anos 70. Para concretizar a “abertura lenta, segura e gradual”, o presidente Geisel compôs com a “linha dura” militar e resolveram “limpar o terreno”, “cortar a cabeça da serpente”, o comunismo, o “câncer social”, defensor da luta de classes revolucionária. Desta forma, montaram um novo cenário político, dando lugar a partidos domesticáveis, afinados com a lei e a ordem, classistas e economicistas, partidos de massa que não contestassem a ordem social vigente. Foi o preço da anistia (1979) que permitiu o retorno de Brizola e milhares de exilados. O “desaparecimento” de dirigentes comunistas – contrários á luta armada contra o regime – não poderia mais ocorrer forjando-se versões oficiais de “confrontos”, “suicídios” (como Herzog) e “troca de tiros”, como ocorrera até o extermínio da Guerrilha do Araguaia (1972/75). Os órgãos de segurança, então, decidiram sequestrá-los e matá -los clandestinamente, fora de dependências oficiais, onde, bem ou mal, eram tratados como hóspedes do Estado.

Para isso, criaram uma estrutura repressiva paralela, que driblava a própria Justiça Militar. Casas, apartamentos, chácaras e sítios distantes, nos subúrbios, tornaram-se assim açougues humanos. A “Casa da Morte”, em Petrópolis (RJ), fechou em 1974 e a “Casa de Itapevi” (Boate Querosene) tornou-se um dos depósitos ilegais de militantes capturados. O tenente-coronel Paulo Malhaes, no depoimento que prestou á Comissão Nacional da Verdade/RJ, contou como o Centro de Informações do Exército (CIE) foi criado, as disputas entre os comandantes militares e como fabricava infiltrados que atuavam como informantes nas organizações clandestinas de esquerda. O oficial do Exército lamentou a sangrenta investida contra os “velhinhos do PCB, que eram filósofos e não guerreiros, explicou. Desta forma, podemos entender como os comunistas tornaram-se repasto de peixes e animais silvestres. A denúncia do MPF aponta o nome do jornalista Élson Costa, do setor de agitação e propaganda do PCB, que atuava na edição e distribuição do jornal “Voz Operaria”, como vítima dos militares. Élson foi preso no dia 15 de janeiro de 1975, em Santo Amaro, 2 dias após a descoberta da gráfica clandestina do PCB, no RJ, onde o jornal era impresso e distribuído no Brasil e no exterior.

O militante foi submetido a intensa tortura durante 20 dias, esquartejado, incinerado e suas cinzas lançadas no Rio Novo, em Avaré. As circunstâncias de sua morte são comprovadas em documentos do Exército e testemunha ocular das atrocidades cometidas na “Casa de Itapevi”. O advogado e jornalista Marco Antonio Coelho, dirigente nacional do PCB, que por 18 anos foi editor-executivo da revista “Estudos Avancados”, da USP, foi preso e torturado em 1975. Sobreviveu porque sua esposa denunciou publicamente sua prisão e enviou carta até para o presidente Geisel – que avalizava as execuções nos porões. Marco Antonio contava as várias gerações de comunistas que sacrificaram suas vidas pela causa e as tremendas perseguições sofridas por eles e seus familiares. O PCB é exemplo único de longevidade no Brasil. Fundado em 1922 – completaria um século em 2022 – atuou na legalidade apenas por 2 anos (1945/47). A trajetória dos comunistas brasileiros é marcada por cruel e permanente perseguição ideológica. Os “vermelhos”, “agentes de Moscou”, os “inimigos da religião”.

Antes de 1964, as “campanhas de pânico” criadas pelo IPES, do general Golbery, acenavam com a “ameaça vermelha” e foram extremamente úteis para arrecadar fundos junto a empresários dominados pelo medo de perder suas propriedades privadas e profissionais que temiam o futuro. Acreditavam em fantasmas. Os golpistas fardados derrubaram Jango com o apoio de expressivos setores da classe média – Brizola foi considerado o Anti-Cristo e expulso de BH por senhoras católicas- influenciados pela Imprensa e a cúpula conservadora da Igreja católica. Entre os “desaparecidos” figuram vários jornalistas: Orlando Bonfim Júnior; Luiz Inácio Maranhão Jaime Miranda; Hiram Pereira; Edmur Péricles de Camargo; Itair Veloso (operário); David Capistrano (ex-deputado); José Roman (motorista): João Massena (sindicalista); Rubens Paiva (ex-deputado; e José Montenegro de Lima (técnico em edificações), líder da Juventude Comunista, encarregado de reorganizar a gráfica do PCB. Dispunha de 60 mil dólares para isso. A fortuna foi dividida na cúpula do DOI.

O terror estatal reforçou a luta pela democracia. A frente única democrática do PCB permitiu a luta dos trabalhadores e a volta do Estado de Direito. A aventura da luta armada foi o pretexto que justificou o terror implantado pelo Estado militar. Ditadura, nunca mais