CINQUENTA TONS DE DIREITA
Da ópera bufa do PSDB ao bolsonarismo de toga
CINQUENTA TONS DE DIREITA
Da ópera bufa do PSDB ao bolsonarismo de toga
Fernando de Barros e Silva
Omês de novembro foi marcado por desfiles de grifes políticas aguardadíssimas pelo petit comité da elite brasileira. Os candidatos foram às passarelas para exibir as suas criações em torno do modelito terceira via, com o qual prometem atualizar o guarda-roupa nacional. A tendência se apresenta como alternativa – mais leve, mais dinâmica, mais versátil, mais tudo que é bom – aos trajes démodés que hoje vestem o país: a direita extravagante de coturno, de um lado, e a roupa de brechó reciclada pela esquerda, de outro. Os estilistas da terceira via pretendem arrasar na próxima primavera, mas a maioria deles corre o risco de ver suas peças encalhadas antes do verão que se aproxima.
Parece ser o caso do PSDB. Os tucanos se engalfinharam na passarela antes mesmo de o desfile começar. As prévias do partido foram um tremendo bafon, como dizia nos anos 1990 a jornalista Erika Palomino, que também popularizou a expressão “fiquei bege”, usada quando alguma coisa a deixava estarrecida, com ou sem ironia. Não sei se o PSDB a esta altura ainda tem repertório para deixar alguém bege. Se quisermos ir do mundo fashion para a haute cuisine, o fato é que as coisas desandaram na largada para o “partido da massa cheirosa” (definição consagrada pela jornalista Eliane Cantanhêde, que nos idos de 2010 reportou o entusiasmo de um assessor tucano com a quantidade de gente – mas gente cheirosa – que participava do lançamento da candidatura presidencial de José Serra). O cheiro hoje no ninho é de coisa queimada.
No domingo em que a escolha entre João Doria Jr. e Eduardo Leite teve que ser suspensa por problemas técnicos e as baixarias todas emergiram, expondo a estatura dos candidatos, a qualidade da disputa e a debilidade do partido, um veterano do PSDB disse a este jornalista, em tom mais amarelo do que bege: “Seja qual for o resultado, Aécio Neves já é o vencedor das prévias. Ganhando Doria, ele vai cristianizá-lo sem dó, com a missão de destruí-lo; ganhando Leite, vai usar a candidatura tucana para barganhar até não poder mais com as outras forças da direita.” É um bom resumo dessa ópera bufa. Horas depois, Arthur Virgílio foi a público para dizer que Aécio é uma maçã podre no partido e relacionou a influência do deputado ao comportamento “bolsonarista” da bancada tucana na Câmara.
É tudo verdade. Aécio Neves tornou-se o que sempre foi – um político do Centrão, ou, antes, um playboy do Centrão que teve a sorte de nascer Neves na vida. Foi ele, aliás, quem começou a moldar a feição que o PSDB assumiu nos anos recentes, ao ir à Justiça para colocar sob suspeição a vitória de Dilma Rousseff em 2014. De lá para cá, os tucanos participaram das articulações pelo impeachment, votaram em bloco pela destituição da petista, entraram de cabeça no governo Temer e finalmente apoiaram Bolsonaro contra Fernando Haddad, sendo devidamente beneficiados por esse apoio. Até aí eles avançaram. E recuaram pouco, quase nada, muito mais por conveniência e oportunismo do que por convicções democráticas.
O compromisso retórico dos tucanos com a democracia não se reflete nos atos e decisões fundamentais do partido, que navega de forma ambígua no ambiente tóxico do bolsonarismo e a cada dia vai se tornando uma legenda de direita como outra qualquer. O papel histórico mais provável que 2022 lhes reserva é o de coadjuvante do antipetismo.
Ao contrário dos tucanos, Sergio Moro fez a lição de casa. Seu discurso de filiação ao Podemos, no dia 10 de novembro, quando lançou sua pré-candidatura à Presidência, é obra de profissionais. Indica, entre outras coisas, que tem dinheiro irrigando a horta de Alvaro Dias.
Moro defendeu a volta da prisão em segunda instância, o fim do foro privilegiado para os políticos e o fim da reeleição para cargos executivos. Falou em privatizar estatais, louvou o livre mercado e o espírito empreendedor, mas ressalvou que “o nosso senso de comunidade impede que adotemos um capitalismo cego, sem solidariedade ou compaixão”. Ao longo de cinquenta minutos, usou várias vezes esse contraponto retórico para humanizar a pauta liberal que endossa e, sobretudo, para criar a sensação de que ele representa o caminho do bom senso necessário ao país.
Valendo-se do vocabulário da Operação Lava Jato, o ex-juiz prometeu criar uma “força-tarefa de erradicação da pobreza” e disse que ela seria “permanente e sem interesses eleitoreiros”. Não chegou a anunciar que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão, mas a plateia ouviu de sua boca que “erradicar a pobreza é o maior desafio da nossa geração”.
Tudo somado, não é difícil perceber que o cerne do discurso de Moro se sustenta em torno de duas falácias: 1) A disputa política está polarizada entre dois extremos igualmente nocivos; 2) Eu represento a opção do meio, o centro, o ponto de equilíbrio entre eles.
Sabemos que não é assim. Em primeiro lugar, só há um extremista politicamente competitivo no país; ele ocupa a Presidência da República e já deu inúmeras provas de que sua obsessão é destruir a democracia. Segundo: Moro não é nem nunca foi equidistante de Lula e Bolsonaro. Decretou a prisão do primeiro cometendo ilegalidades que estão documentadas e abriu caminho para a eleição do segundo, do qual em seguida se tornou ministro. Ministro da Justiça, além de avalista de um presidente cuja biografia se confunde com a história da milícia e que tem como ídolo o comandante de um dos mais sinistros porões da tortura na ditadura militar. Que centro é esse?
A fantasia de arauto da democracia e da legalidade definitivamente não cabe em Sergio Moro, mas é vestido assim que ele vai desfilar nas ruas. Aquilo que o tornou indefensável como juiz é exatamente o que o habilita como político. Mas não será fácil roubar de Bolsonaro a bandeira do antipetismo. Há um núcleo regressivo na sociedade – violento, ultraconservador, carola, fanatizado – que encontrou no bolsonarismo um espelho poderoso. É para eles que um tipo como Ricardo Salles se dirige quando diz na Rádio Jovem Pan que Moro é comunista.
O que esse comunista do Podemos promete é um governo de direita exemplar, com roupa nova, mais funcional. Deixar de lado as olavices de Bolsonaro – na cultura, na educação, no meio ambiente, nas relações internacionais – para se concentrar no que de fato interessa: a agenda de reformas liberais e a pauta autoritária, tudo dentro das quatro linhas da Constituição. Moro está para Bolsonaro como o excludente de ilicitude está para o pau de arara.
A boa vontade da mídia com o herói da Lava Jato será imensa. Quanto à elite, sabemos que ela é como Silvio Santos – topa tudo por dinheiro. Já inventou até pato amarelo para esfregar na cara do país que a conta social não seria paga por ela, ao mesmo tempo em que mandava às favas quaisquer escrúpulos democráticos. Deu Bolsonaro na cabeça. Engodo por engodo, agora pode sair até barato comprar um marreco de direita como se fosse uma lebre de centro. Vai que cola.