A LÓGICA OBLÍQUA DAS POLÍCIAS MILITARES

A LÓGICA OBLÍQUA DAS POLÍCIAS MILITARES

questões de segurança pública

A LÓGICA OBLÍQUA DAS POLÍCIAS MILITARES

Acúmulo de mortes explicita recado das corporações: PMs ameaçam inviabilizar governos caso não sejam apoiadas em seus projetos de autonomia

Renato Sérgio de Lima|09 ago 2023_18h38

 

Os acontecimentos que resultaram na morte do policial da Rota Patrick Reis e de outras dezesseis pessoas na Baixada Santista não podem ser resumidos apenas aos episódios ocorridos entre os últimos dias de julho e começo de agosto. Elas são construções políticas e sociais que têm múltiplas origens e que estão associadas à forma como o uso letal da força é aceito ou justificado no Brasil.

Em 5 de julho, durante um evento realizado no Quartel do Comando Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), o coronel da PM Cássio Araújo de Freitas, atual comandante geral da Corporação, gravou e, posteriormente, divulgou nas redes sociais mensagem em que, literalmente, declara: “Não hesite em cumprir a lei, não hesite em utilizar a legítima defesa a seu favor. Faça isso!” O vídeo foi veiculado nas redes sociais da PMESP no mesmo dia em que Ricardo Boide, um PM aposentado, foi encontrado morto em Itapecerica da Serra, na Grande SP, após ter sua casa invadida e ser raptado por criminosos.

Na ocasião, muitos comentários feitos nas redes sociais criticaram a fala do comandante por incentivar a ação de policiais sem, contudo, dar retaguarda jurídica para os policiais que eventualmente seguissem o conselho/ordem do comando. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, a pressão das redes sociais não foi para reclamar da declaração, mas para reforçar a demanda por mais liberdade dos policiais decidirem a legitimidade de suas próprias ações, sem o temor de eventuais apurações de abusos; sem o escrutínio do Ministério Público e do Judiciário.

 

E por que a fala do coronel Cássio Araújo de Freitas é importante? Existem estudos acadêmicos muito sérios, inclusive de pesquisadores associados a professores tradicionalmente alinhados e aliados das polícias militares, que mostram que a postura dos comandos tem, estatisticamente, mais peso na definição do padrão do uso letal da força do que, até mesmo, as declarações do governador. Ou seja, falas dos comandos, sobretudo do Comando Geral, função de direção política das corporações, são fundamentais para o direcionamento das tropas – e precisam ser consideradas na montagem do quebra-cabeça que rege a segurança pública do país.

E aqui reside um dos nossos maiores dilemas democráticos. Como já frisei em vários artigos aqui na piauí, as polícias brasileiras, em especial as militares, atuam como fiadoras da ordem e gozam de um grau de discricionariedade muito grande, sem que existam mecanismos de supervisão, controle e accountability que premiem o bom policial e inibam a autonomização da atividade policial em relação à lógica dos sistemas de segurança pública e justiça do país. E, quando tais mecanismos começam a ser implementados, eles enfrentam uma forte resistência de setores das corporações e de políticos alinhados à linha dura na ação policial, sejam de direita e/ou de esquerda.

É isso que tem ocorrido com o Programa Olho Vivo, que determina o uso de câmeras nas fardas dos policiais militares paulistas e que virou um caso internacional de sucesso no controle da atividade policial; ou com a determinação do STF no âmbito da ADPF 635, para que as Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro adotem, inclusive no Bope e na Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), câmeras corporais e criem um sistema de monitoramento das suas operações.

 

Isso para não dizer que as pressões por mecanismos de accountability e/ou de compatibilização das leis e normas que regem as instituições policiais são completamente ignoradas e/ou lamentadas ou vistas como “indevidas” por parte da sociedade civil em temas que seriam, na concepção equivocada de alguns grupos, competência exclusiva do Estado – como se a segurança fosse um tema a ser dirigido somente pelo Estado, e não resultado dos interesses e demandas legítimas da sociedade. Os dados existentes são criticados ou vistos como ideológicos, a exemplo daqueles publicados na 17ª. Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e que colocam Amapá, Bahia e Rio de Janeiro como os estados com maiores taxas de letalidade policial do país.

 

Não estão em discussão padrões institucionais e cultura organizacional. Tudo fica na conta da conduta individual de cada policial, em um processo que desresponsabiliza a cadeia de comando, mesmo que esta seja a instância que defina os padrões, os meios e a alocação do policiamento no território. Quem tenta fazer esse debate é visto como inimigo ou alguém influenciado pelo “globalismo” ou “comunismo”. O estrago da radicalização no debate público de diferenças e convergências é imenso.

Não à toa, na hora da decisão, vale manter tudo como está. Em um acordo que uniu a base bolsonarista mais radical e o governo do presidente Lula, que tem o ex-governador da Bahia, Rui Costa, como o seu poderoso ministro da Casa Civil, o projeto de lei que institui a Lei Orgânica das Polícias e Corpos de Bombeiros Militares avançou também em julho e deve ser aprovado sem nenhuma alteração pelo Senado, mesmo após várias falhas ou omissões identificadas no projeto, como aquelas que limitam a participação de mulheres e/ou que invadem a competência de órgãos ambientais.

 

O debate descamba para a usual disputa entre defensores do rigor na aplicação da lei e da ordem versus aqueles que reforçam a garantia de direitos humanos, como se ambas as coisas fossem contraditórias. Sim, uma boa segurança pública passa pelo respeito inalienável dos Direitos Humanos, inclusive dos profissionais da área, e pelo enfrentamento eficiente do crime. O fato é que esse falso antagonismo faz a festa daqueles que querem ganhos eleitorais sem, necessariamente, se comprometerem com reformas substantivas no sistema de segurança pública do país.

Enquanto isso, jovens negros matam e morrem (muito mais), sejam como policiais ou não policiais. Mas a sociedade brasileira está cindida em duas partes quase idênticas e tem optado por travar batalhas morais e guerras culturais que só retroalimentam essa máquina de moer carnes humanas negras. Como resultado, falar de justiça social e direitos humanos tem soado como sinônimo de ser contra as polícias e contra o combate ao crime.

Levantamento exclusivo feito pela Arquimedes junto à plataforma X, ex-Twitter, a pedido da piauí mostra que, entre os dias 28 de julho e 3 de agosto, foram encontradas 324 mil menções referentes às mortes decorrentes de ações policiais ocorridas no Guarujá-SP. O grafo de menções no X evidenciou um debate bastante polarizado, com bolsonaristas formando maioria (51%), contra 49% do agrupamento do que seria uma “frente ampla”, formado por perfis mais à esquerda e de centro.

O agrupamento bolsonarista correu para ocupar o espaço em defesa da ação policial e reforçou a tradicional narrativa de combate ao crime organizado e defesa da sociedade, inclusive com os chavões de sempre sobre o suposto “silêncio da esquerda” diante do caso, o que seria um endosso à criminalidade. Já o outro agrupamento, que a Arquimedes chamou de “frente ampla”, se destaca pela multiplicidade de perfis de usuários e por acusações de excesso da atuação da Polícia Militar, e compadecimento às vítimas, o que segundo alguns posts, seriam mortas apenas pela condição socioeconômica e racial.

O que chama atenção é que o debate se intensificou no X a partir do dia 31 de julho – que reuniu quase um terço do debate –, com opiniões polarizadas sobre o ocorrido. Nos dias subsequentes, o volume de menções registrou queda constante, como se as mortes do soldado de Rota Patrick Bastos Reis e de outras dezesseis pessoas após a deflagração da intitulada “operação escudo” fossem o “assunto do dia”, rapidamente substituído por outros para que o engajamento de cada postagem seja continuamente reposto. O que importa é aparecer. Por essa lógica, valem frases de impacto e a sinalização do conteúdo da mensagem transmitida. Depois, na prudência legal, é hora de se afastar do debate e deixar que ele seja travado por emissários.

Na mídia profissional, a postura foi um pouco diferente. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre os dias 28 de julho e 7 de agosto foram identificadas 2.242 notícias sobre segurança pública. Destas, 419 tratam sobre letalidade policial e 172 tratam sobre crime organizado ou tráfico de drogas. Trinta e seis matérias associaram o caso do assassinato do policial Patrick Reis ao calibre da arma 9mm, liberada para civis por Jair Bolsonaro. Não houve a polarização das redes sociais, e a cobertura foi mais factual, com as exceções de praxe dos colunistas e veículos alinhados ao pensamento conservador que valoriza a mão dura da ação policial.

Porém, foram poucas as colunas e as reportagens que tocaram, por exemplo, na questão da corrupção, que precisa ser inserida para que compreendamos o que exatamente ocorre na Baixada Santista, que abriga o principal porto marítimo e uma das maiores rotas das redes de narcotráfico, evasão fiscal e contrabando do país. É preciso que consigamos superar os antagonismos que turvam a completa compreensão do que está em jogo, que, a meu ver, passa pela discussão sobre a urgência de novos mecanismos de governança democrática da segurança pública e de reconhecimento da área como fundamental para a cidadania.

 

As mortes dos policiais Ricardo Boide e Patrick Bastos Reis, bem como das cerca de sessenta outras vítimas letais das polícias militares no Guarujá, na Bahia e no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, nas últimas semanas, não podem ser esquecidas. Elas exigem uma profunda reflexão sobre os usos políticos partidários das polícias que estão sendo feitos e, também, desafiam o Estado a ser mais eficiente e efetivo no enfrentamento das organizações criminosas. Sem dúvida, o Estado precisa reagir e jamais aceitar a morte de policiais, mas, para isso, é imperativo que a ação das polícias não seja vista como vingança ou equivalente ao que os criminosos fazem. E, quando querem, as polícias sabem fazer isso sem a opção pelo confronto letal, como ocorreu em junho na prisão do homem que atirou em PMs paulistas com arma tomada de um dos policiais que o abordaram.

Para concluir, impressiona que essa explosão de mortes provocadas pelas polícias ocorra no começo da gestão do presidente Lula. A mensagem que fica é que certos segmentos das polícias militares estão explicitando que ou as PM são apoiadas nos seus projetos de insulamento e autonomização ou elas podem inviabilizar governos. Quais as cenas dos próximos trágicos capítulos?