A CONCILIAÇÃO QUE NOS TROUXE ATÉ AQUI

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questões históricas

A CONCILIAÇÃO QUE NOS TROUXE ATÉ AQUI

Na redemocratização brasileira, discurso de pacificação foi pretexto para não punir responsáveis pela violência de Estado durante a ditadura

Lucas Pedretti|

 

Desde os acontecimentos do 8 de janeiro, a discussão sobre responsabilização vs. anistia ganhou enorme fôlego. Os gritos de “Sem Anistia!” que já haviam sido ouvidos na posse de Lula multiplicaram-se, e o coro contra a impunidade foi engrossado.

No entanto, dizer-se a favor de punição não é o suficiente. Muitas podem ser as formas de se levar adiante um processo de responsabilização. Serão julgadas apenas pessoas como Dona Fátima, a idosa de Santa Catarina condenada por tráfico de drogas que disse ter defecado no Supremo Tribunal Federal? Ou entrarão no rol também os financiadores, apoiadores e mentores intelectuais dos atos?

As autoridades têm prometido não deixar ninguém impune. Ao mesmo tempo, no entanto, uma operação parece ter sido deflagrada para deixar intocados aqueles cujas digitais estão em todas as etapas do fatídico 8 de janeiro: os militares. Generais como Sérgio Etchegoyen e Paulo Chagas vieram a público afirmar que as falas de Lula criticando as Forças Armadas “queimam pontes” e impedem a “pacificação” da caserna. Ao mesmo tempo, analistas que usualmente amplificam as vozes dos generais que falam em off aumentam o coro por uma acomodação em que os fardados mais graúdos não sejam incomodados.

 

Uma das ações dessa operação consiste em isolar meia dúzia de militares que participaram diretamente da tentativa de golpe para que sejam investigados e, eventualmente, punidos. Quando Lula e os comandantes das três Forças almoçaram juntos em 20 de janeiro, a imprensa noticiou que um dos objetivos dos militares era sinalizar seu desejo de “virar a página”. A demissão do comandante do Exército, Júlio César de Arruda, cuja postura escancarou a conivência do Exército com os golpistas, veio horas depois. Apesar da importância do gesto de Lula, a exoneração de Arruda não será suficiente para alterar o cenário se não vier acompanhada de outros movimentos que imponham a autoridade civil sobre as Forças Armadas.

“Pacificar” e “virar a página” são termos que, ao lado de outros que vêm sendo amplamente utilizados – tais como “esquecer” e “conciliar” –, remetem de imediato ao contexto da redemocratização nos anos 1980, depois de duas décadas de ditadura militar. A memória daqueles tempos tem sido muito evocada pelas palavras de ordem que recusam uma nova anistia.

Desde meados dos anos 1970, quando teve início a autoproclamada “abertura lenta, gradual e segura”, um dos objetivos principais dos militares se tornou garantir não apenas a impunidade dos torturadores, mas também o esquecimento do passado. Esse é o sentido profundo da Lei de Anistia de 1979: impedir a responsabilização criminal, é claro, mas também garantir que as Forças Armadas não seriam vistas, pela opinião pública e pelo conjunto da sociedade, como responsáveis pela violência da repressão e pela tragédia econômica e social do regime.

 

O núcleo fundamental desse processo foi a recusa ao chamado “revanchismo” – termo a partir do qual os militares caracterizavam qualquer demanda por memória, verdade, justiça e reparação. Nos documentos de órgãos repressivos da ditadura, as primeiras menções ao termo “revanchismo” começaram a aparecer em meados da década de 1970. À medida que a mobilização social por uma anistia “ampla, geral e irrestrita” avançou, cresceu a repercussão das histórias de tortura e dos casos de mortos e desaparecidos políticos. Com isso, as referências ao termo pelos órgãos de informação da ditadura também se multiplicaram.

A ditadura militar mobilizou todos seus recursos políticos e repressivos para aprovar a Lei da Anistia, em agosto de 1979. O texto dos generais, aprovado por um Congresso ainda marcado pelas intervenções do regime, foi o oposto da anistia demandada pela sociedade civil. A lei garantia a base jurídica para a impunidade dos militares. Mas a imposição do esquecimento seria garantida como resultado de uma operação levada adiante ao longo dos anos seguintes.

Uma operação militar, é claro. Mas que não poderia ter sido bem-sucedida se não tivesse contado com a ampla complacência das elites políticas civis e da imprensa. Um amplo conjunto de sujeitos e grupos, que não tinham interesse algum em remexer o passado, se engajaram fortemente para vetar qualquer tentativa de que a transição para a democracia passasse pelo reconhecimento e pela reparação das violências da ditadura.  

 

 

Em fevereiro de 1981, a ex-guerrilheira Inês Etienne Romeu veio a público relatar a existência de um centro clandestino de tortura e desaparecimento forçado operado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) em Petrópolis, Rio de Janeiro. Como única sobrevivente do local conhecido como Casa da Morte, Inês guardou ao longo dos anos em que esteve presa informações que a permitiram, mais tarde, rastrear o local exato da casa.

Libertada da prisão pela Lei da Anistia, em fevereiro de 1981 ela foi até Petrópolis, acompanhada de militantes, políticos, advogados e da imprensa, para reconhecer o imóvel e ajuizar uma ação contra seu dono, um alemão que havia cedido a casa para o CIE. A denúncia pública de Inês foi o primeiro episódio pós-anistia em que o termo “revanchismo” esteve no centro do debate público.

A caserna reagiu com força à denúncia de Inês. Os três ministros militares soltaram notas públicas repudiando sua ação. Dirigentes e representantes civis do regime também se manifestaram. “Acho que o pessoal anda esquecido de que se fez anistia para conciliar a família brasileira. O caso da moça sensibiliza a todos nós. Mas a mensagem da anistia, da conciliação e do esquecimento deve pairar acima de tudo”, afirmou em entrevista ao jornal O Globo o líder do Partido Democrático Social (PDS) – o partido governista, sucessor da Aliança Renovadora Nacional (Arena) – na Câmara dos Deputados, Nelson Marchezan.

A fala de Marchezan sintetiza de maneira bastante clara o tom que as lideranças do regime adotariam ao falar das denúncias de Inês Etienne. Mas o discurso do deputado ainda fazia algum tipo de concessão acerca da gravidade das denúncias. A mesma sensibilidade não apareceu no pronunciamento do então ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Matos. “Em verdade”, disse o militar na ocasião, “o que se pretende agora, exumando supostas vítimas do passado, é tumultuar um presente de paz e tranquilidade que não interessava e continua não interessando aos que se venderam ao credo do quanto pior, melhor”.

Em sua manifestação, o militar não apenas não se mostrava sensibilizado pelo “caso da moça”, como trazia à tona dois pontos fundamentais dos discursos sobre o “revanchismo”. O primeiro era a ideia de que a Lei da Anistia representava uma ruptura temporal que permitia sair de um passado marcado pelo conflito para um presente “de paz e tranquilidade”. O segundo dizia respeito às vítimas. Ao caracterizar Inês como uma “suposta vítima”, Jardim de Matos colocava em questão a legitimidade do relato de ex-presos políticosExpressava, com isso, um dos propósitos fundamentais do texto da Lei da Anistia: ao perdoar os torturadores, mas não os condenados pelos chamados “crimes de sangue”, os militares buscavam cristalizar a imagem dos militantes de esquerda presos, torturados e mortos como “subversivos” e “perigosos”, e não vítimas. Sua concepção reforçava, portanto, que a repressão da qual o Estado lançara mão fora necessária e legítima.

A ação de Inês Etienne, pouco menos de dois anos após a promulgação da lei, recolocava essa discussão em cena. Isso porque Etienne reivindicava, mesmo como ex-integrante da luta armada, o reconhecimento público de que a violência a que fora submetida em um centro clandestino de prisão e tortura era ilegítima e deveria ser condenada – se não pela Justiça, ao menos pela opinião pública. Por sua vez, a declaração de Jardim de Matos apontava para a forma como os militares responderiam a esse tipo de reivindicação: não seria aceitável mexer nos termos cristalizados pela Lei da Anistia sobre as vítimas do passado, em nome da “paz e tranquilidade” do presente.

 

Asegunda vez em que o debate sobre o “revanchismo” ganhou as primeiras páginas dos jornais foram as eleições gerais de 1982. Tratava-se de eleições grandes, para vários cargos. O bipartidarismo havia acabado, e inúmeros políticos cassados pela ditadura puderam participar do pleito. Numa tentativa de manter o processo sob controle, o regime baixou um pacote eleitoral em novembro de 1981, proibindo as coligações eleitorais e introduzindo a exigência do voto vinculado.

Sem a possibilidade de coligações, o Partido Popular (PP) de Tancredo Neves ficou em situação de fragilidade e decidiu se incorporar ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), herdeiro do MDB, a oposição consentida da ditadura. Na prática, com isso, as eleições reproduziriam o velho bipartidarismo do regime, agora com PMDB e PDS.

Em um cenário de crise econômica e de enorme desgaste do governo, a perspectiva era desanimadora para os militares. Nessa conjuntura, foi intensa a exploração do tema do “revanchismo” por parte do regime.

Durante a disputa eleitoral, alguns candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT), do Partido Democrático Trabalhista (PDT) ou mesmo do PMDB utilizavam como ativo eleitoral o fato de terem sido perseguidos pela ditadura. A esse tipo de propaganda, o já citado ministro Délio Jardim de Matos responderia com o discurso do “revanchismo”. “A anistia foi mais ampla do que a oposição pedia”, disse em entrevista ao jornal O Globo. “Eu defendia a anistia com uma única preocupação, pois ela significa o perdão, o esquecimento bilateral. Quando vejo propagandas como ‘Fui cassado, fui exilado’, fico assustado. E não é de hoje que falo em revanchismo, eu falo isso desde antes do governo Figueiredo. Quando vejo um candidato se apresentar dizendo ‘Eu montei um grupo que assaltou banco, eu fui preso’, vejo que eles não esqueceram. Mas anistia é perdão”, completou o ministro.

Criando um cenário de medo e de ameaças perenes, o regime promovia o discurso de repúdio ao “revanchismo”. Essa bandeira era encampada também pela imprensa, o que forçava as oposições a se comprometerem com a “conciliação” e o “esquecimento”.

Parcela significativa das lideranças das oposições, notadamente no PMDB, mas também nos partidos mais à esquerda, vinha a público negar intenções “revanchistas”. Ao fim das eleições de 1982, o PMDB saiu vitorioso em nove estados – São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Pará, Amazonas, Goiás, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Acre – e o PDT ganhou com Brizola no Rio de Janeiro. O novo cenário reconfigurava a correlação de forças e colocava desafios para o regime dar seguimento à abertura política em seus termos.

 

Opróximo momento-chave do processo seria a sucessão do general-ditador João Baptista Figueiredo. O que o regime não esperava era o surgimento de uma ampla mobilização popular cuja demanda central era o retorno às eleições diretas para a presidência da República. Capitaneada por lideranças da oposição, a campanha das “Diretas Já!” representou o ápice da participação popular na tentativa de alterar os rumos previstos pelo regime para a abertura. E o tema do “revanchismo” ocupou enorme espaço no debate público.

A campanha das diretas foi para as ruas em junho de 1983, em Goiás, em um pequeno comício organizado pelo PMDB. Em novembro, em São Paulo, ocorreu o primeiro grande ato público da campanha, que aos poucos passou a reunir lideranças de entidades da sociedade civil: Igreja Católica, Ordem dos Advogados do Brasil, sindicatos, Associação Brasileira de Imprensa e artistas. De forma inédita, um jornal da grande imprensa, a Folha de S.Paulo, assumiu a bandeira das eleições diretas para si. Em abril de 1984, comícios gigantescos, os maiores da história do país até então, ocorreram no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Essa mobilização, contudo, não logrou se sobrepor às pressões do regime sobre um Congresso Nacional ainda controlado pelo partido do governo, o PDS. A emenda que buscava restabelecer eleições diretas para presidente ainda em 1984 foi ao plenário da Câmara em 25 de abril daquele ano. Após 16 horas de sessão, acabou derrotada.

Para os militares e as elites políticas dirigentes do regime, uma das razões para manter sob estrito controle a sucessão de Figueiredo e impedir eleições diretas era o temor do “revanchismo”. O governo e seus apoiadores argumentavam que não era a hora de permitir eleições diretas, pois isso atropelaria a dimensão “lenta, gradual e segura” prevista pelos militares para a abertura, abrindo caminho para uma suposta radicalização.

“O pior que pode acontecer nesta altura do processo sucessório”, argumentava um editorial do jornal O Globo de fevereiro de 1984, “é a radicalização das posições em torno do dilema diretas-indiretas. A radicalização envenena o ambiente político e engendra indesejáveis concepções de tratamento anormal da crise, aquelas que implicam retrocesso da abertura.” A ideia defendida no editorial era a de que o tempo certo das eleições diretas chegaria, mas era preciso aguardar, sem “radicalismos”, o momento oportuno.

O texto sintetiza um dos aspectos fundamentais de todo o discurso do “revanchismo”. Na leitura dos dirigentes e dos apoiadores do regime, a “radicalização” – no caso, a demanda por eleições diretas – seria uma forma de impedir a “abertura”, a qual só poderia ocorrer nos termos previstos e desejados por esses mesmos atores. Quaisquer outras propostas sobre o caminho para uma democracia eram apresentadas como “radicais”, portanto inviáveis.

 

Odiscurso do “revanchismo” daria o tom não apenas do debate sobre as eleições diretas, mas também de todo o processo sucessório após a derrota da emenda Dante de Oliveira [que estabelecia as eleições diretas]. Aliás, mesmo antes da votação, as lideranças da ala mais conservadora do PMDB já não acreditavam na possibilidade de aprovação da proposta e passaram a se articular para o Colégio Eleitoral, instituição que seria responsável pela eleição indireta do sucessor de Figueiredo.

A mobilização social desencadeada durante a campanha pelas “Diretas Já!”, bem como o resultado da votação da emenda no Congresso, que registrou um número alto de dissidências no partido do governo, abriram caminho para a possibilidade de uma recomposição de forças políticas capaz de retirar do regime a condução do processo. Não havia, no entanto, possibilidade concreta de vitória de uma força efetivamente oposicionista, à esquerda, no Colégio Eleitoral. O espaço foi ocupado, então, por uma candidatura que podia se apresentar como conciliadora, que era bem-vista por grande parte dos militares e que poderia conduzir a sucessão sem apresentar riscos aos ocupantes do poder. O nome que reunia essas características era o de Tancredo Neves, então governador de Minas Gerais.

Para se viabilizar como possível sucessor, Tancredo se aproveitou de um racha interno ao PDS, ocorrido no processo de escolha do nome do partido para a sucessão. O presidente do partido, José Sarney, foi derrotado em sua proposta de realizar prévias, e o escolhido para representar a legenda governista no Colégio Eleitoral foi Paulo Maluf. Com isso, surgiu uma dissidência interna no PDS: a Frente Liberal, que logo começou a se aproximar com o PMDB. 

A união da Frente Liberal com o PMDB foi chamada de Aliança Democrática. Essa convergência de setores selaria o destino da sucessão presidencial. 

Um dos principais fatores que permitiram a formação da Aliança Democrática foi a convergência na crítica ao “revanchismo”. De fato, dentre todos os aspectos que as elites políticas e militares aprovavam no nome de Tancredo Neves, um dos mais importantes era a garantia de que seu governo não se voltaria para um exame dos crimes da ditadura.

Em julho de 1984, o jornal O Globo trouxe uma matéria explicitando os pontos do protocolo de entendimentos que a Frente Liberal submeteu ao PMDB para formar a Aliança Democrática. A primeira exigência do documento era “a implantação de um governo de conciliação nacional, com a presença de segmentos políticos ligados à consolidação democrática”.

Assim O Globo noticiava o sexto e último ponto do texto. “A conclusão do protocolo, apesar de aparentemente não abordar questões concretas, é apontada como peça fundamental da aliança: estabelece que o entendimento se dará voltado para o futuro, na busca da paz e tranquilidade da Nação. Sem mencionar, afasta os temores de que a ida de um oposicionista para o Poder possa significar um reexame do passado, retaliações ou revanchismo.”

O assunto era tão sensível que o jornal publicou um editorial, na mesma página, intitulado “No centro, o núcleo da transição”. “A transição democrática”, diz o texto, “é um processo tão complicado e difícil que só pode ser levado a termo por uma aliança amplíssima de forças políticas. O eixo desse acordo só pode ser, consequentemente, um núcleo de forças centristas.” Caracterizando a Aliança Liberal como o “centro”, o jornal apontava o movimento como a “configuração necessária do sistema de alianças para o aprimoramento do regime”. E concluía: “Na medida que transição, acordo e centrismo são termos indissociáveis da equação que rege o momento crucial da vida política, os extremos – tudo que não pode ser assimilado pelo centro – ficam desorientados.”   

Poucos dias depois, Tancredo seria novamente elogiado em novo editorial do jornal, que recebia o sugestivo título de “A bússola da moderação”. O texto trazia elogios à postura “realista” e “racional” de Tancredo em relação à impossibilidade de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, à não realização das eleições diretas, ao relacionamento com o Fundo Monetário Internacional (FMI), à manutenção da Lei de Segurança Nacional, dentre outros aspectos.

“A moderação e o antirevanchismo”, concluía o editorial, “constituem ingredientes fundamentais para a transição democrática que queremos pacífica e irreversível. Adepto dessa receita já antes de surgir como candidato à Presidência da República, hoje o governador de Minas está tendo a oportunidade de pregá-la à luz de compromissos solenemente assumidos perante a Nação.”

Em agosto de 1984, após Maluf ser escolhido como candidato do PDS para o Colégio Eleitoral, os movimentos políticos que vinham sendo costurados foram efetivamente concretizados. Sarney migrou de vez para o PMDB, levando com ele a Frente Liberal e sendo indicado para compor a chapa presidencial como vice de Tancredo.

O pacto entre Frente Liberal e PMDB, organizado sob o nome de Aliança Democrática e expresso na chapa Tancredo-Sarney, foi assinado em 7 de agosto, e no dia 12 do mesmo mês ocorreu a convenção do PMDB que sacramentou a decisão do partido de lançar o governador de Minas como candidato no Colégio Eleitoral. Na convenção, Tancredo encerrou seu discurso reafirmando: “O nosso pacto social, assim, afasta desânimos e ressentimentos, covardias e represálias, acomodações e revanchismo, para abrir o país a uma nova estação da história”.

Apesar do compromisso obtido já na formação da Aliança Democrática, a tentativa de gerar um pânico em torno da questão do “revanchismo” permeou todo o processo do Colégio Eleitoral. E, em um movimento de retroalimentação, Tancredo assim confirmava sua viabilidade junto aos dirigentes e apoiadores do regime exatamente na medida em que reforçava a dimensão conciliatória, não radical e não revanchista de sua candidatura.

“A minha candidatura não tem nem poderia ter qualquer sentido revanchista”, afirmou Tancredo em entrevista em setembro de 1984. “Não é antirrevolução, mas pós-revolução. A grande maioria dos brasileiros é de jovens cujo interesse não é o exame do passado, mas a construção do futuro, com a solução dos graves problemas que afligem o país, enfim, com o destino do Brasil, que nos cabe assegurar.”

A fala mereceu mais um editorial elogioso de O Globo. Cada vez mais se afirmava que só haveria democracia se o passado fosse deixado para trás.

 

Assim como os comandantes das Forças Armadas de 2023 parecem estar dispostos a entregar algumas cabeças para o abate, diante da impossibilidade de negar a participação dos militares nos atos do 8 de Janeiro, também na redemocratização foi necessário fazer ajustes na base para assegurar o topo.

Em meio à abertura “lenta, gradual e segura”, conflitos intramilitares também ficaram evidentes. O avanço da transição, como se sabe, foi acompanhado do crescimento de uma extrema direita fardada que passou a adotar táticas de terrorismo para tentar interromper a abertura democrática. Inúmeros atentados a bomba foram realizados, sempre com o objetivo de construir um clima de medo e ameaça, bem como de incriminar as esquerdas por essas ações.

Atentados às sedes da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já haviam sido promovidos respectivamente em 1976 e 1980 – este último deixando um morto. Mas o episódio do Riocentro, no Primeiro de Maio de 1981, pela ousadia e pelo erro crasso dos militares – que acabaram deixando a bomba explodir dentro do carro em que estavam, matando um dos agentes e ferindo o outro – ganhou enorme repercussão.

A existência de uma extrema direita militar era muito conveniente para a cúpula das Forças Armadas e para os dirigentes do regime que buscavam se apresentar como o caminho do meio, da moderação. Esses ataques permitiam aos condutores da abertura atualizar o discurso de que havia “dois lados”, igualmente “radicais”. Nos primeiros anos da década de 1970, quando corria o auge da repressão, as torturas e os crimes ficaram tão evidentes que seria impossível simplesmente negar sua existência. Naquele momento, a saída dos militares foi reconhecer a existência de “excessos individuais”.

Já em meados dos anos 1980, a ideia de “dois lados” passou a permitir uma falsa equivalência entre terroristas militares de extrema direita que explodiam bombas em shows, de um lado, e vozes dissonantes que reivindicavam memória, verdade, reparação e justiça para as vítimas da ditadura, de outro.

Em ambos os esforços de criar essa falsa equivalência havia um objetivo comum. Assegurar a imagem de que as Forças Armadas, enquanto instituição, não tinham relação nem com os “excessos individuais” dos torturadores nem com os ataques terroristas. Essa era, talvez, a principal função de todo o discurso em torno do medo do “revanchismo”.

Em novembro de 1984, O Globo publicou uma matéria intitulada “Revanchismo não. É o pacto da Aliança”. O país estava já no auge da campanha eleitoral, e o texto cumpria o papel de reafirmar o compromisso da Aliança Democrática de não tratar das violências da ditadura. O candidato a vice da chapa, José Sarney, declarou ao jornal: “No Brasil a Revolução foi feita em nome dos valores democráticos, e nunca as Forças Armadas se levantaram, por cesarismo ou caudilhismo, de modo a tomar o poder e dele se apossar.” Na opinião de José Sarney, “no Brasil as Forças Armadas nada têm a dever à Nação, e se existiram alguns excessos, estes se realizaram por pessoas e bolsões agindo por conta própria, facilmente identificáveis”.

Ao mesmo tempo em que desresponsabilizava as Forças Armadas pelo golpe de 1964 e pelos crimes da ditadura, o discurso sobre o “revanchismo” servia para valorizar o papel da instituição durante a abertura política. Voltemos ao discurso de Tancredo na convenção do PMDB, em 12 de agosto de 1984. “O Brasil muito deve às nossas Forças Armadas”, afirmou o então candidato. “Desde quando se organizaram, ainda nas origens da nacionalidade, elas passaram a se constituir em vínculo de unidade nacional, na sustentação de nossas instituições livres, na projeção de nosso orgulho nacional, em instrumento da consolidação de nossa democracia. Emanadas do povo, a serviço do povo, elas bem merecem o respeito e o reconhecimento nacional que as envolvem”, afirmou.

Com base nessa leitura da história da presença militar na vida do país, o que se buscava era apresentar as Forças Armadas como representantes da “moderação”e, portanto, como um ator que, ao lado das elites políticas – também “moderadas”, como o seriam Tancredo e Sarney – garantiria o caminho da redemocratização. 

Mas mesmo as constantes sinalizações para as Forças Armadas não eram capazes de impedir que as ameaças da caserna se fizessem sentir no curso daquele processo. Em um comício de Tancredo em Goiânia, em setembro de 1984, militantes levaram bandeiras vermelhas. Foi o suficiente para ensejar a convocação de uma reunião do Alto Comando do Exército em Brasília, cujo objetivo era o de analisar a “conjuntura político-eleitoral”.

Em nota, o ministro do Exército apontava que haviam sido analisados, nessa reunião, aspectos como “a crescente e preocupante radicalização política, com o apoio ostensivo das organizações clandestinas de esquerda” e a “a evidência dos riscos que a radicalização pode representar para a estabilidade do processo sucessório e para o próprio êxito do projeto de abertura política do governo”. O texto se encerrava com o Exército assegurando que se manteria “totalmente isento” em relação às atividades político-partidárias.

Nas falas e discursos de Tancredo, o Exército aparecia como “instrumento da consolidação da democracia”, que era valorizado por supostamente não interferir no processo de sucessão. Mas esse mesmo Exército mantinha sua presença pública ostensiva, colocando-se como ator que poderia entrar em cena a qualquer momento, caso julgasse necessário.

Um tortuoso exercício de retórica – que demandava como contrapartida outro exercício de deliberada cegueira política – permitia que, no auge da intervenção no processo sucessório, com claras ameaças aos setores à esquerda do espectro político, a instituição afirmasse que se mantinha “totalmente isenta” das atividades político-partidárias.

 

Em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral se reuniu. Dos 686 presentes, 480 deram seu voto à chapa da Aliança Democrática. Com isso, sagrou-se vitoriosa a articulação de setores moderados do antigo MDB com dissidentes da antiga Arena para conduzir a sucessão e o primeiro governo civil após duas décadas.

Representando um pacto de elites políticas que tinha como um dos eixos fundamentais a garantia do não ”revanchismo”, Tancredo foi eleito indiretamente para a presidência da República tendo ao seu lado inúmeras figuras que haviam desempenhado papel central no regime ditatorial – a mais célebre delas, o próprio vice-presidente, José Sarney, que até 1984 era presidente do partido de sustentação do governo. No fim daquele mesmo mês, a Frente Liberal tornou-se definitivamente um partido, o Partido da Frente Liberal (PFL).

Em seu discurso da vitória, em determinado momento, Tancredo fez um agradecimento à contribuição de diversos atores para o processo de transição. Após agradecer aos poderes Legislativo e Judiciário e à Igreja, ao povo, às famílias, e às organizações da sociedade civil, sobrou um espaço para agradecer às Forças Armadas e ao próprio Figueiredo, apresentado no discurso como protagonista do processo de abertura. A ditadura chegava ao fim, mas não sem receber loas e agradecimentos do presidente eleito.

Mesmo após eleito, Tancredo fez questão de reafirmar seu compromisso com a “conciliação” e contra o “revanchismo”. Em um ato carregado de simbolismo, foi visitar a Espanha. O país europeu havia superado a ditadura de Francisco Franco em 1976, tendo como marco de sua redemocratização o Pacto de Moncloa, um acordo que envolvera variadas forças políticas e sociais para viabilizar uma transição pactuada para uma nova ordem.

Nesse processo, uma anistia geral garantiu a não responsabilização de agentes do franquismo e nenhuma medida de acerto de contas com o passado ditatorial do país foi adotada. Tancredo visitou o primeiro-ministro Felipe González e saiu do encontro com uma cópia física dos acordos que embasaram o referido pacto. À imprensa, afirmou categoricamente: “Não há dúvidas de que o Pacto de Moncloa é um modelo para nós.”

Tancredo não chegou a exercer a Presidência. No dia 14 de março de 1985, véspera de sua posse, foi internado, e Sarney assumiu o cargo em seu lugar. Em 21 de abril, Tancredo morreu sem nunca ter sido empossado. Sarney ficou no posto até o final do mandato, em 1990, de modo que o primeiro presidente civil, após 21 anos de ditadura militar, foi um quadro dirigente do regime que se encerrava.

Mas o papel desempenhado por Tancredo e sua costura política em torno de uma candidatura capaz de levar adiante o penúltimo capítulo da abertura “lenta, gradual e segura” – o último estava por vir, na forma da Assembleia Nacional Constituinte – sem que qualquer risco se apresentasse para os militares, continuou sendo louvado pela imprensa. Em editorial de agosto de 1985, já celebrando o papel desempenhado por Tancredo, O Globo fazia uma vinculação explícita entre a Nova República e o repúdio ao revanchismo. “A anistia está na lógica e na base da Nova República”, afirmava o texto. “E nunca será demais lembrar que a Nova República não nasceu de uma demonstração de força – revolução, deposição, golpe etc. – contra os expoentes e representantes do regime anterior. Nasceu precisamente do espírito de conciliação e dos compromissos de transigência que serviram de ponte à transição institucional e nos fizeram chegar, serenamente, à realidade da alternância de poder.”

A anistia está na lógica e na base da Nova República. Agora, depois do 8 de Janeiro, cabe nos perguntarmos: devemos seguir assim?