Celso Amorim: Allende foi adepto do socialismo e democrata convicto

‘Eleição no Chile em 1970 foi um sinal luminoso de que a redenção da América Latina era um sonho possível’, escreve o autor

Celso Amorim: Allende foi adepto do socialismo e democrata convicto

ARTIGO, Carta Capital

Celso Amorim: Allende foi adepto do socialismo e democrata convicto

Foto: Arquivo AFP

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‘Eleição no Chile em 1970 foi um sinal luminoso de que a redenção da América Latina era um sonho possível’, escreve o autor


Em 2003, três décadas após o golpe militar que levou à trágica morte de Salvador Allende, o embaixador do Chile na Organização dos Estados Americanos (OEA), Esteban Tomic, citou o artigo 1º da Carta Democrática da Organização, hoje em dia tão menosprezada. Lembrou que, naquele 11 de setembro, “um homem tão somente assumiu a tarefa de defender, pagando o preço com sua vida”, o direito dos povos à democracia.

Há 50 anos, quando Salvador Allende era democraticamente eleito presidente do Chile, à frente da Unidade Popular, eu era um jovem diplomata brasileiro que morava em Londres e dividia meu tempo entre tarefas burocráticas na embaixada e aulas, palestras e leituras na biblioteca da London School of Economics (LSE). Meu supervisor era um cientista político marxista, Ralph Miliband, cujos filhos, décadas depois, teriam papéis importantes nos governos trabalhistas. Um deles, David, foi chanceler com Gordon Brown. O mais jovem, Ed, foi ministro do Meio Ambiente do mesmo governo e posteriormente líder do partido.

Digo isso para que se entenda a contradição existencial que eu, como muitos brasileiros da minha geração, vivi naqueles anos de tensão, em meio à Guerra Fria. Outros naturalmente não tiveram a mesma sorte e perderam a vida ou se refugiaram em diferentes países, muitos no Chile.

O golpe de estado civil-militar de 1964 no Brasil cortou minha esperança de uma carreira a serviço de meus ideais. Por outro lado, com uma família para sustentar e nenhuma outra qualificação profissional, tive de continuar meu trabalho (a meu ver) em um governo com o qual não tinha afinidade.

Foram tempos difíceis para a esquerda em todo o mundo em desenvolvimento. Alguns anos antes, e quase na mesma época, João Goulart no Brasil, Sukarno na Indonésia e Kwane Nkrumah em Gana foram vítimas de golpes militares. Aqueles que usurparam o poder nesses países eram militares de direita, estrategicamente orientados por Washington. O significado geopolítico dessas “mudanças de regime” era mais do que óbvio.

Para um jovem diplomata latino-americano com uma visão progressista, não havia um modelo claro para se olhar. Cuba era uma realidade muito especial, fruto de uma revolução que, de alguma forma, surpreendeu os governantes norte-americanos. A morte de Che Guevara na Bolívia foi uma prova de que o caminho revolucionário, independentemente dos julgamentos de valor, não era uma opção realista. Ao mesmo tempo, a dura repressão soviética às tentativas de “socialismo com rosto humano”, a Primavera de Praga, deixou um gosto amargo aos poucos que ainda viam em Moscou um farol que poderia iluminar o caminho da esquerda.

Nesse contexto de dureza e perplexidade, a eleição de Salvador Allende no Chile gerou esperanças. Claramente um adepto do socialismo e um democrata convicto, Allende foi para muitos de nós o sinal luminoso de que a redenção social e política da América Latina não era um sonho irrealizável.

Lembro-me muito bem das conversas apaixonadas que tive com meu orientador e com colegas alunos da nossa região, nos corredores e refeitórios da London School. Alguns deles mostraram um ceticismo que eu, desiludido com meu próprio país, me recusei a admitir.

O Chile, com sua tradição democrática, seu passado de lutas desde o presidente José Manuel Balmaceda no século XIX, não permitiria – pensei – que um governo observador das leis e do pluralismo, nascido do voto popular, pudesse ser vítima de um golpe de estado violento.

 

Era ao mesmo tempo adepto do socialismo e democrata convicto

 

Dois anos depois, como secretário da Missão do Brasil junto à OEA, tive a oportunidade de admirar como o embaixador do Chile ocupou cargos independentes e defendeu Cuba, sob constante ameaça da ação armada dos Estados Unidos.

Em uma conferência sobre Ciência e Tecnologia em Brasília, observei com admiração e saudável inveja jovens embaixadores do governo da Unidade Popular a expor sua visão de modelos de desenvolvimento independentes do grande capital internacional e com foco na integração latino-americana. Ao mesmo tempo, conhecia o papel que o Chile de Allende desempenhou no cenário internacional, sua defesa do princípio da autodeterminação, do multilateralismo e da cooperação entre iguais, muito bem exposto em artigo recente de meu amigo Juan Somavia. Estava ciente de seu compromisso pioneiro, demonstrado na III Unctad, realizada em Santiago, para a construção de uma nova ordem econômica internacional.

O golpe militar perpetrado por meio do comprovado apoio norte-americano foi um grande choque. Causou enorme sofrimento ao povo chileno, com mortes, desaparecimentos, torturas. O filme Missing, de Costa Gavras, retratou-o para o mundo.

O sacrifício heróico de Salvador Allende e sua substituição pela ditadura de Pinochet, com forte apoio da direita mundial, mesmo em meu país, pareciam mostrar que não apenas revoluções como a cubana eram proibidas na região. Da mesma forma, a busca da justiça social com soberania, ainda que por meios totalmente pacíficos e legais, não seria tolerada pelas elites reacionárias e seus apoiadores internacionais.

Visitar o Palácio de la Moneda e relembrar os últimos momentos de Allende me causaram uma forte emoção, que pude vivenciar mais de uma vez em minhas viagens oficiais a Santiago como ministro das Relações Exteriores e, posteriormente, da Defesa do Brasil, durante os governos Lula e Dilma Rousseff. Mais do que uma reminiscência histórica, a visita me fez refletir sobre as vicissitudes a que está sujeita a democracia na América Latina (ou, mais especificamente, na América do Sul).

O heroísmo de Allende é pouco comparável, mas o destino político de outros governantes progressistas não foi muito diferente. Por meio de mecanismos como o lawfare, denunciado, entre outros, pelo papa Francisco, vários governos progressistas foram ilegalmente destituídos do poder. Líderes políticos como Lula, Evo Morales e Rafael Correa foram proibidos e impedidos de concorrer às eleições, quando não simplesmente jogados na prisão.

Nesta parte do mundo, que os políticos e diplomatas norte-americanos costumam chamar de “Hemisfério Ocidental” (sempre me pergunto até onde vai o Hemisfério Oriental), elegemos legitimamente governantes progressistas em alguns de nossos países. Também estamos cientes das dificuldades da batalha e estamos mais unidos em nossos propósitos. Temos instituições onde nossos representantes podem se expressar, como o Parlamento do Mercosul, e fóruns que podem ampliar nossas vozes, como o Grupo de Puebla.

 

Atualmente, o lawfare é a arma para derrubar governos progressistas

 

A defesa de governos legítimos de tentativas de golpe é principalmente uma tarefa dos povos de cada país. Mas também é, e cada vez mais, uma missão coletiva dos progressistas latino-americanos e caribenhos.

Mais que palavras de elogio, a homenagem que se pode prestar ao grande estadista latino-americano Salvador Allende é continuar a lutar por seus ideais – que são os nossos – na defesa da democracia, da justiça social, das relações de respeito e da independência de nossos países. Uma independência que só alcançaremos com uma verdadeira integração de nossos povos. Sem hegemonias ou imposições.

Esta é a melhor forma de homenagear Salvador Allende e mostrar que o seu sacrifício não foi em vão.

Celso Amorim foi chanceler e ministro da Defesa