Thiago de Mello, o último dos Oito do Glória

Nenhum golpista admite que deu golpe. Todo ditador quer ser visto como democrata. A regra foi seguida à risca pelo marechal Castello Branco. Ele assumiu a Presidência em abril de 1964, depois da quartelada que derrubou João Goulart.

Thiago de Mello, o último dos Oito do Glória

Thiago de Mello, o último dos Oito do Glória

Por Bernardo Mello Franco

 

O poeta Thiago de Mello visita o teatro que leva seu nome, no Recreio

 

 

Nenhum golpista admite que deu golpe. Todo ditador quer ser visto como democrata. A regra foi seguida à risca pelo marechal Castello Branco. Ele assumiu a Presidência em abril de 1964, depois da quartelada que derrubou João Goulart.

Os conspiradores exigiam ser chamados de revolucionários. Diziam defender a liberdade, desde que ninguém ousasse criticá-los. Prometiam restaurar a ordem e devolver o poder aos civis. Mas logo extinguiram os partidos políticos e cancelaram as eleições.

Em novembro de 1965, o Rio sediou uma conferência da Organização dos Estados Americanos. O encontro atraiu delegações de todo o continente ao Hotel Glória. Ao descer do Rolls Royce presidencial, Castello foi surpreendido por uma vaia.

O protesto reunia um pequeno grupo de artistas e intelectuais. Eles abriram faixas com dizeres como “Abaixo a ditadura” e “Viva a liberdade”. A polícia não achou graça e levou oito manifestantes em cana, no episódio que ficaria conhecido como os Oito do Glória.

Foram presos Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Márcio Moreira Alves, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro, Flávio Rangel e Jayme de Azevedo Rodrigues. O nono elemento da trupe era o poeta Thiago de Mello. Ele conseguiu fugir, mas depois se entregou ao Exército.

Sua passagem pelo cárcere teve lances tragicômicos. Ouvido em Inquérito Policial Militar, Mello disse sentir uma “ternura humana muito grande” pelos companheiros de cela. O coronel Andrada Serpa achou a expressão muito poética. Mandou o escrivão trocá-la por “relações fraternais”.

Ao deixar a cadeia, o amazonense reafirmou suas convicções políticas. Tempos depois, a barra pesou e ele precisou sair do país. Refugiou-se no Chile, onde colaborou com o governo de Salvador Allende antes de enfrentar mais um golpe.

O regime via Mello como um perigoso subversivo. Em 1971, o SNI anotou que ele promovia “a desmoralização da Revolução de 31 de Março”. O dossiê registra, em tom de reprovação, que o poeta tinha “vocação boêmia” e “grande penetração no meio universitário”.

Mello foi autorizado a voltar ao Brasil no fim de 1977, mas continuou na mira da repressão. Convocado ao DOI-Codi, disse aos militares que acreditava na “conscientização da massa” por meio da “poesia revolucionária”. Inconformados, os arapongas o classificaram como “delinquente confesso”.

A rebeldia inspirou algumas de suas obras mais celebradas. Em 1964, o poeta debochou do autoritarismo em “Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)”. O texto começava assim: “Artigo 1. Fica decretado que agora vale a verdade/ Agora vale a vida/ E de mãos dadas/ Marcharemos todos pela vida verdadeira”. Em “Madrugada Camponesa” (1965), ele escreveu: “Faz escuro mas eu canto/ Porque a manhã vai chegar”. Os versos seriam gravados por Nara Leão no disco “Manhã de Liberdade”.

Quando a utopia socialista ruiu, Mello abraçou a causa ecológica. Voltou a viver na Amazônia, empenhou sua voz na defesa dos rios e da floresta. O poeta era o último remanescente dos Oito (ou nove) do Glória. Morreu na sexta-feira, aos 95 anos.