O texto oculto de Ulysses

O texto oculto de Ulysses
Há um momento na história desse personagem que não deixou provas, textos, documentos, apenas testemunhos e um reconhecimento indireto dele próprio
Ulysses Guimarães ficou conhecido como um dos maiores adversários da ditadura militar. Desde quando fez um discurso marcante em defesa do deputado Márcio Moreira Alves, pouco antes da decretação do AI-5 ; quando, em 1973, lançou sua anticandidatura, tendo como vice o ex-presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho; quando comparou o ditador Geisel ao brutamontes Idi Amin Dada; quando, na promulgação da Constituinte de 88, disse que tinha “ódio e nojo da ditadura” e chamou os membros da Junta Militar de “três patetas“; quando, na sua última cruzada, juntou forças para o impeachment do falso caçador de marajás, o corruptíssimo Collor de Melo.
Ao longo de todo esse tempo, Ulysses usou as palavras como um esgrimista experiente e ousado, arriscando estocadas sem abrir mão de recuos estratégicos. Leão, para enfrentar os lobos, raposa, para escapar das armadilhas, como vaticinou Maquiavel sobre o Príncipe. Ulysses era o Príncipe do Parlamento, onze vezes eleito deputado federal, presidente da Casa por três vez , sendo a última, entre 1987 e 1988, presidente da Assembleia Constituinte. Isso sem falar de seu momento mais marcante, como o Sr. Diretas, entre 1983 e 1984, quando liderou a emergência do desejo nacional por retomar o controle da escolha dos dirigentes máximos do país.
Mas há um momento na história desse personagem que não deixou provas, textos, documentos, apenas testemunhos e um reconhecimento indireto dele próprio. Foi quando, logo após a queda de João Goulart, Ulysses e mais seis das principais lideranças do PSD e UDN reuniram-se com o presidente em exercício, Ranieri Mazzili, e propuseram uma série de medidas contra os políticos ligados a Jango, como cassações e prisões, com o propósito de tirar das mãos do Exército o protagonismo da repressão e manter, dentro do possível, o controle da política nas mãos dos políticos. O texto com as ideias do grupo nunca veio a público, embora vários dos participantes tenham corroborado a sua existência. Ulysses teria dito que sobre qualquer coisa que tenha sido dita naquela reunião, ele foi responsável por apenas 1/8 dela.
Ulysses votou em Castello Branco na “eleição” de abril de 1964, ao contrário de Tancredo, que teria lhe dito: você, que não tem motivos para votar nele, votará; eu, que gostaria de votar nele, não votarei, já que fui ministro de Jango. Ulysses também havia sido.
Fato é que, após esse episódio inicial, no qual o maior defensor do Parlamento negociou a cassação de colegas, Ulysses assumiu, primeiro, um papel de distanciamento do governo militar, e, depois do AI-2 – que fechou os partidos políticos, tornou a eleição para presidente indireta e reiniciou o ciclo de prisões e cassações – entrou no MDB, como vice-presidente da legenda de oposição. Tancredo também.
Nos anos seguintes, Ulysses assume a face da resistência legal ao regime, enquanto Tancredo submerge em um silêncio mineiro, hibernando durante o inverno dos anos de chumbo. Ulysses desafia e se arrisca. Sai maior que Tancredo do período da ditadura. A realpolitik, porém, prefere a moderação de Tancredo aos arroubos de Ulysses e reconstrói a volta ao governo civil por meio dele. Fina ironia. Os militares não confiavam em Ulysses e não perdoavam os seus arroubos. Aquele texto oculto , perdido em alguma gaveta ou devidamente destruído, dizia o contrário. Mas eram outros tempos e era, certamente, outro Ulysses.
Em 1989, acreditando ser um direito adquirido pelos anos de resistência, Ulysses sai candidato na primeira eleição direta para presidente em 29 anos. Perde fragorosamente. Os tempos, de fato, haviam mudado. Como ele próprio mudou, de aliado da conspiração contra Jango e seus seguidores a mais importante figura política da redemocratização. Para ensinar que nem sempre os pecados de domingo são pagos na segunda-feira.
Sobre o/a autor/a
Rogerio Galindo
Rogerio Galindo é jornalista.