MINHA COLUNA COMEÇA PELO FIM

Estamos no Rio de Janeiro e o ano é 1956. Encontrar-se no Rio nesse momento, significa estar na capital federal de um país redemocratizado, depois de 15 anos sob a chamada Era Vargas. Aliás, Getúlio havia se suicidado há apenas 2 anos.

MINHA COLUNA COMEÇA PELO FIM

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Marcelo Amorim  

     

Não, não é do fim da coluna que falo. Caso fosse, estaríamos diante de algo natimorto, o que não é (espero) o caso. Também não estou sugerindo o meu próprio fim. Pelo menos no momento em que escrevo esse texto, não me ocorre nada muito evidente que me leve a crer que estou nas últimas. Talvez nas penúltimas. O fim a que me refiro é do bar onde nasceu uma das parcerias mais importantes da música popular brasileira no século XX. Brasileira não, mundial. Topa voltar um pouquinho comigo no tempo? Um pouquinho não, muito.

Estamos no Rio de Janeiro e o ano é 1956. Encontrar-se no Rio nesse momento, significa estar na capital federal de um país redemocratizado, depois de 15 anos sob a chamada Era Vargas. Aliás, Getúlio havia se suicidado há apenas 2 anos. Nosso atual presidente é o mineiro Juscelino Kubitschek, e seu vice o gaúcho João Goulart, que juntos promoviam um boom econômico e industrial no Brasil. Aliás(2), no mesmo pleito do ano anterior, em que a chapa JK-Jango foi vencedora, também concorreu à presidência a versão tupiniquim de Hitler, o integralista Plínio Salgado. A única capital brasileira em que Plínio recebeu mais votos do que todos os outros concorrentes foi Curitiba.

Qualquer brasileiro que ligasse o rádio em 1956, além de muitos chiados, provavelmente também ouviria “Conceição”, sucesso absoluto de Cauby Peixoto, “Maracangalha”, de Dorival Caymmi, ou mesmo “Rock Around The Clock”, da banda norte-americana Bill Haley & His Comets. Junto de outro jovem americano, Elvis Presley, Bill Haley introduzia por aqui um ritmo novo e bom para chacoalhar o corpo, o rock’n roll. Dos Estados Unidos também tinha chegado recentemente o diplomata e já respeitado poeta Vinicius de Moraes. Vinicius morou por alguns anos em Los Angeles, onde durante o dia carimbava passaportes como Vice-cônsul brasileiro e à noite frequentava os bastidores de Hollywood, tomando porres com um cara chamado Orson Wells e assistindo, em bares esfumaçados, a cantoras novatas, como uma tal de Billie Holiday e uma certa Sarah Vaughan.

Numa noite qualquer de meados daquele 1956, Vinicius foi a um bar no centro do Rio, onde encontrou-se com o jornalista, crítico e musicólogo Lúcio Rangel. O poeta tinha debaixo do braço (modo de dizer) o projeto ambicioso de levar aos palcos sua peça teatral Orfeu da Conceição, em que adaptava o mito grego de Orfeu e Eurídice para o ambiente dos morros cariocas. O texto já tinha sido premiado, faltava produzir e montar o espetáculo. E isso incluía achar um compositor que fizesse com Vinicius as músicas da peça e orquestrasse a porra toda. O respeitado poeta já tinha feito um ou outro samba, mas ainda não era nem sombra do letrista que depois veio a se tornar. A produção seria de alto nível, contava com cenários de Oscar Niemeyer e cartazes de Carlos Scliar. Quando ainda estava nos Estados Unidos, Vinicius encontrou Vadico, antigo parceiro de Noel Rosa, que na época morava lá, e o convidou para o projeto. Vadico não quis encarar a empreitada.

Naquela noite, Vinicius contou a Lucio Rangel sua dificuldade. Lucio pediu que ele esperasse e foi até outra mesa. Dois goles de uísque depois, Vinicius viu Rangel voltar com um jovem a tiracolo. Os dois haviam sido apresentados três anos atrás, em outro bar, mas seria a primeira vez em que conversariam. Àquela altura, Tom Jobim já era muito procurado por cantores, todos interessados em suas primeiras composições e no seu trabalho como arranjador. Vinicius fez o convite. Tem algum dinheirinho nisso?, perguntou Jobim a ele. Lucio Rangel imediatamente levou o jovem para um canto e lhe deu uma bronca. Tom Jobim, esse é o poeta e diplomata Vinicius de Moraes. Como você tem coragem de falar em dinheiro numa hora dessas, rapaz? Rangel não havia atinado para um detalhe. Naquele noite, todos ali no Villarino tomavam uísque. Menos Tom, que bebia uma humilde cervejinha, que já era cara para ele. Apesar de trabalhar feito um maluco e de já ter composições suas gravadas, uma inclusive em parceria com Dolores Duran, Tom Jobim contava os trocados para pagar o aluguel da casa da rua Nascimento e Silva, 107, onde morava com a mulher e dois filhos.

Tom e Vinicius começaram a trabalhar juntos no dia seguinte. Entre as canções que os dois compuseram para a peça Orfeu da Conceição está o clássico “Se todos fossem iguais a você”.

Voltemos a hoje, 2020, o ano da pandemia. A Casa Villarino, bar em que esse encontro que mudou a música brasileira ocorreu, não suportou a crise e fechou suas portas no começo desta semana. Foram 67 anos de muitas e grandes histórias. Essa, certamente, é a que ficará para sempre.

 

Assista:

“Se todos fossem iguais a você”, com Tom e Vinicius em vídeo de 1977. Vinte e um anos depois do encontro histórico, dá pra perceber que o Tom já tinha dinheiro mais do que suficiente para acompanhar o Vinicius nos uísques. Não sem alguma dificuldade, claro.

https://www.youtube.com/watch?v=Vd0k2bi7GGI