Frei Betto: Vamos viver um novo ciclo democrático popular

Frei Betto foi dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica em 1962 e foi preso 2 durante a ditadura militar

Frei Betto: Vamos viver um novo ciclo democrático popular

Vamos viver um novo ciclo democrático popular

UMA ENTREVISTA COM

FREI BETTO

Conversamos com escritor e frade dominicano Frei Betto, que enfrentou a ditadura e participou do governo Lula, para entender onde abrimos o flanco para o surgimento do neofascismo e resgatar o histórico da luta anti-imperialista desde a antiga Palestina com Jesus até o século XXI na América Latina. Para ele, com as eleições na Colombia e Brasil ano que vem, temos um "Luiz no fim do túnel".

UMA ENTREVISTA DE

Caue Ameni e Nathália Urban

Neste final de ano, conversamos com o jornalista, escritor e frade dominicano Frei Betto para tratar da resistência que Jesus articulava junto com os zelotes contra o império romano na antiga palestina, a importância da Teologia da Libertação nas lutas da América Latina e o papel dos dominicanos na guerrilha ao lado de Marighella.

Frei Betto foi dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica em 1962 e foi preso 2 durante a ditadura militar. A primeira vez, logo após o golpe de 1964, ficou 15 dias preso. Na segunda vez, em 1969, passou 4 anos na prisão. Após esse período assessorou vários governos socialista, em especial o de Cuba, e foi assessor especial do primeiro governo Lula. Ele é autor de vários livros, entre eles “Batismo de Sangue”, que virou um clássico do cinema e ganhou o Jabuti em 1983. Suas obras podem ser compradas em sua livraria virtual.

Essa entrevista foi editada para ter melhor compreensão na leitura. Ela pode ser vista em formato de vídeo aqui ou ouvida em todos os tocadores de podcast.


NU

Na historiografia parece que há dois Jesus, um de Nazaré que convivia com os Zelotas, que enfrentava o imperialismo romano e outro, de Cristo, santificado pela igreja católica, qual dessas versões seria mais fidedigna na sua opinião?

FB

Na verdade não há na cabeça de nós, cristãos, duas versões de Jesus. Há muitas versões de Jesus, depende da ótica ideológica, inclusive no próprio livro sagrado para os cristãos que são os evangelhos. Não há um único evangelho, há 4 evangelhos, o de Marcos, o de Lucas, o de Matheus e o de João. São quatro diferentes visões de Jesus. A igreja católica absorve as diferentes visões inclusive essa do Jesus militante. O Jesus que lutou contra o império romano. 

Algo que nenhuma das versões pode negar é que Jesus morreu como um militante político. Não morreu nem de hepatite na cama, nem de desastre de camelo numa esquina de Jerusalém, ele foi perseguido, preso, foi julgado e torturado por dois poderes políticos: o judaico e o romano representado pela figura de Pilatos e mereceu a pena de morte dos romanos que era a crucificação. Então, a questão é essa, por que Jesus que na versão de alguns é uma pessoa tão amorosa, tão bondosa, tão maravilhosa, foi cruelmente assassinado na cruz? Ora, por uma razão muito simples, quando a gente abre os quatro evangelhos, a expressão “igreja” aparece apenas duas vezes. Assim mesmo, num único evangelho de Matheus e na boca Jesus aparece 122 vezes “Reino de Deus”. Então, na nossa cabeça hoje do século XXI a igreja parece que colocou Reino De Deus como algo que ficaria além desta vida, já na cabeça de Jesus não, o Reino de Deus é no projeto político que ele trouxe, por isso ele foi cruelmente assassinado porque ousou dentro de um reino de César anunciar um outro reino possível: o de Deus. 

É como falar em socialismo dentro do capitalismo e em democracia dentro de uma ditadura. Essa é a razão pela qual ele foi cruelmente assassinado, então, todos nós cristãos, querendo ou não, somos discípulos de um militante político altamente revolucionário.        

CSA

Gostaria saber um pouco sobre esse grupo, os “zelotas” que andava com Jesus. No livro do iraniano Reza Aslan, me parece que era um grupo muito interessante, um grupo político, que fazia uma militância mais ferrenha na antiga Palestina. Gostaria que você contasse um pouco como esse grupo atuava, quais as ligações históricas deles, como que se desdobrou e qual era a relação desse grupo com Jesus. 

FB

No tempo de Jesus, na Palestina do século I, havia vários grupos que lutavam contra a ocupação romana, o imperialismo romano, e um deles eram os zelotas. Os Zelotas defendiam um enfrentamento aos romanos com a luta armada, e não era a perspectiva de Jesus, até há suspeita – isso é muito discutido pelos especialistas em Bíblia que Judas Iscariotes teria sido um Zelote, justamente aquele que no fim acabou traindo Jesus porque ele esperava de Jesus, talvez, que esse reino de Deus fosse implantado imediatamente e ele teria um cargo proeminente nesse novo governo. 

A perspectiva de Jesus vai numa outra direção: ele veio implantar as sementes de um novo projeto político e portanto ele não tinha essa perspectiva, vamos dizer, “leninista”, de primeiro tomar o poder para depois implantar uma nova sociedade. Não, ao inverso, como faz o MST hoje, ele já começou a implantar a nova sociedade pela sua prática militante. Todas as suas atividades durante os três anos de militância foram atividades para criar as sementes de um novo projeto de sociedade que se baseava em dois pilares: nas relações pessoais do amor e nas relações sociais da partilha dos bens. Então, Jesus não foi adepto dos zelotes e nem os zelotas foram adeptos de Jesus. Mas, eles constituíram um dos grupos entre outros tantos que enfrentaram o imperialismo romano durante aquele período de ocupação, e essa ocupação romana na Palestina durou de 63 A.C até o ano 70 D.C, quando Jerusalém foi totalmente destruída pelos romanos. Ou melhor, quer dizer, a destruição nos anos 70 durou nos primeiros quatro séculos da nossa era.

NU

Você foi adepto da Teologia da Libertação e é militante de movimentos sociais na América Latina. Como você vê a importância da teologia da libertação nesses movimentos? Porque ela foi muito importante em movimentos de resistência, como por exemplo na Nicarágua com o sandinismo. Como você vê o desenvolvimento da Teologia da Libertação no continente nessas últimas décadas, diminuiu ou aumentou? 

FB

Não fui adepto, eu sou adepto à Teologia da Libertação. A Teologia da Libertação está vivíssima! E se ela foi enterrada, se ela morreu, não me convidaram para o velório, não estou sabendo. Ela está viva muito atuante. Acontece que a Teologia da Libertação parte do lugar social e epistêmico dos pobres, ou seja, é a fé vista a partir da prioridade dada por Jesus que foi lutar pelo direito dos pobres. 

Em nenhum dos livros de toda a Bíblia há um só versículo que diga que a pobreza é abençoada aos olhos de Deus. Pelo contrário: a pobreza resulta da injustiça, a pobreza é um mal. Por isso, em Jesus se coloca ao lado dos pobres e essa é a perspectiva que a Teologia da Libertação abraça. É uma reflexão da fé a partir do mundo do sofrimento da exclusão dos mais pobres. Por isso ela é muito perseguida e criticada pelas forças de direita e ela hoje continua muito atuante.

Até na revolução cubana, a Teologia da Libertação ainda não tinha despontado. Ela despontou na América Latina nos anos 60, principalmente a partir das conferências dos bispos em Medellín, em 1968. O primeiro livro da Teologia da Libertação é do Gustavo Gutiérrez, que é um teólogo dominicano como eu, mas de origem peruana, foi publicado em 1971. Então aí que ela começou a se propagar por toda a América Latina e os cristãos revolucionários a abraçaram, tanto nas guerrilhas da Colômbia, onde se destacou o padre Camilo Torres, como nas lutas da Nicarágua e El Salvador e também em outras lutas sociais como no Brasil. A Teologia da Libertação aqui bebeu na grande rede das comunidades eclesiais de base que fluíram durante os pontificados conservadores de João de Paulo II e Bento XVI. Hoje, com Papa Francisco elas se reavivam e a Teologia da Libertação continua muito atual. Os teólogos estão produzindo muitas obras, mas sobretudo essas comunidades de base, essas comunidades formadas por pessoas excluídas, marginalizadas, elas vem se fortalecendo agora no pontificado de Francisco, felizmente. 

NU

Durante um tempo nos pontificados, como você falou, dos papas anteriores, a Teologia da Libertação não só foi criticada mas muitos dos seus adeptos foram perseguidos dentro do Vaticano, devido esse reavivamento, essas perseguições diminuíram ou está tendo um apoio? O que o Vaticano está fazendo em relação a isso agora? As correntes que os perseguiam pararam de atuar?

FB

Cessou inteiramente. Essa suspeita em relação a Teologia da Libertação acabou com o Papa Francisco que é um adepto da dela. Basta ler a encíclica dele “louvado seja” que é uma encíclica profundamente revolucionária e crítica ao capitalismo. Embora ele, inteligentemente, não chega a utilizar essa palavra, mas toda a análise estrutural que ele faz do atual sistema econômico predominante no planeta, esse sistema hegemônico globalizante, é uma forte crítica. Então hoje a Teologia da Libertação vem sendo reforçada e o Papa Francisco, inclusive, já convocou no vaticano quatro encontros de líderes de movimentos populares do mundo inteiro e aqui do Brasil. Participaram lideranças indígenas, o João Pedro Stédile que é um dos dirigentes do MST e tantos outros. São pessoas afinadas e identificadas com a Teologia da Libertação. Então, aquela suspeita e perseguição que ocorreram durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI não existe mais, felizmente.

Hoje, o que acontece é o inverso, muitas pessoas conservadoras da igreja se sentem muito incomodadas pelo fato do papa nos apoiar e receber no vaticano o teólogo o Gustavo Gutierrez. Eu também fui recebido por ele no dia 9 de abril de 2014. Então, isso realmente mostra uma virada no Papa. Agora, não é fácil mudar a igreja, porque a igreja é um elefante muito pesado. Eu diria até mesmo que hoje nós temos uma instituição com cabeça progressista e um corpo ainda conservador. Não é fácil fazer uma mudança para o progressismo numa estrutura depois de 34 anos de pontificados conservadores. Mas, de qualquer forma, é uma benção de Deus nós termos hoje um papa como Francisco, sem dúvida nenhuma o mais respeitável chefe de Estado do mundo. Aquele que tem uma voz muito autorizada e no entanto toma uma postura muito crítica aos que criticam o ambientalismo, aos que defendem a atuação do capital e que tomou medidas muito rigorosas para erradicar a pedofilia da igreja católica. Eu tenho só que aplaudir as iniciativas do papa Francisco, mas sobretudo é bom ler as encíclicas, os documentos que ele tem emitido porque são documentos muito avançados e eles nos ajudam a entender melhor a conjuntura internacional. 

CSA

Além disso, foi muito importante o papel do Vaticano nesses últimos anos na questão das FARCS na Colômbia e também na negociação no último período do governo Obama na questão de Cuba para terminar os bloqueios. Agora tem surgido nas pesquisas em primeiro lugar na intenção de voto na Colombia um militante de esquerda que tem ligações com as guerrilhas e com a Teologia da Libertação, o candidato Gustavo Petro.

Após esse movimento que tivemos esse ano com três meses de insurreição, como você vê isso e o cenário da América Latina em relação ao Chile e o que aconteceu no Peru. Você que acompanha a política na América Latina nos últimos 40 anos, como você vê as placas tectônicas se mexendo, mas, sobretudo também com essas chances reais de vitórias da esquerda e com essa relação da Teologia da Libertação e o continente que é um dos mais católicos do mundo.

FB

Nos últimos 60 anos, a América Latina enfrentou vários ciclos políticos, o primeiro deles foi a disseminação das ditaduras militares. Todas elas foram patrocinadas pelo governo dos EUA e por isso há até uma piada em que diz: “nos EUA nunca houve golpe militar, porque lá não tem embaixada dos EUA”. Mas, os nossos países têm e elas articularam os golpes militares disseminados no continente desde os anos 60. Esse foi o primeiro ciclo. Em seguida, veio o ciclo de democratização, como ocorreu no Brasil sedimentado pela nossa Constituição cidadã de 1988 e um ciclo conservador e liberal. Um grande respiro porque era uma volta de uma democracia burguesa e delegativa que ainda predomina no Brasil, não uma democracia participativa como nós sonhamos, mas de qualquer forma muito melhor do que viver num período de ditadura. 

Em seguida, vieram os governos neoliberais, messiânicos, com Collor no Brasil, Caldera na Venezuela, Fujimori no Peru e depois esses governos fracassaram. Foram todos eleitos democraticamente e fracassaram e veio um novo ciclo, que é o ciclo democrático popular, com Lula, Mujica, Chávez, Rafael Correa e Evo Morales. Nós tivemos uma ascensão desse ciclo democrático popular que não se preparou suficientemente para impedir que a direita se rearticulasse e voltasse com toda força autoritária e neofascista como é o caso dos vários governos de extrema direita que hoje ocupam países da América Latina. Onde é que nós falhamos? Na minha opinião falhamos na falta de uma educação política do povo, embora a gente tenha aberto grandes programas para melhorar a vida da população, principalmente dos mais pobres e excluídos, mas não houve um trabalho de educação política. Ou seja, a fome de pão não foi complementada pela fome de beleza que é o sentido que nós damos as nossas opções e com isso nós estamos vivendo agora um ciclo autoritário que começa felizmente a desmoronar.

Tudo indica que nós vamos enfrentar um novo ciclo democrático popular a partir de agora, daí a possibilidade da eleição do Gustavo na Colômbia e eu digo que no Brasil felizmente agora temos um Luiz no fim do túnel: Luiz Inácio Lula da Silva. O governo do Maduro na Venezuela está consolidado e já não há mais grupos de oposição significativos ou apoiados por países estrangeiros. Então realmente estou muito otimista em relação ao futuro próximo da América Latina. 

 

Você foi um dos sobreviventes da operação Condor na América Latina. Alguns líderes no continente, como Evo Morales e Rafael Correa, que foram vítimas dessa segunda onda de golpes, dizem que nós estamos vivendo uma segunda Operação Condor no momento. Você diz que nós temos um “Luiz no fim do túnel”, mas se a gente está passando por uma segunda onda de golpes como podemos evitar que isso se repita dessa vez, com essa onda progressista voltando – que possamos ter uma terceira -, o que o senhor acha que deve ser feito por esses governantes para que não soframos novamente? 

FB

Vamos guardar o pessimismo para dias melhores. Ou seja, os governantes atuais são com raras exceções predominantemente neoliberais e como no caso do Brasil, um governo fascista, opressor, um governo que aposta na morte das pessoas, um governo que valoriza mais a posse de armas do que a posse da vacina. Agora não há dúvida de que os EUA jamais vão vacilar em relação à América Latina, eles adotam a doutrina Monroe que diz: “A América para os americanos”. Isto significa que todo o continente americano deve ser e estar sob tutela da Casa Branca e nós, de maneira alguma, podemos aceitar isso. Nós temos que seguir o exemplo de Cuba, Nicarágua, Venezuela que conseguiram se libertar das botas do Tio Sam e por isso eles ficam temerosos com a volta do Lula, com a volta de Evo Morales e com a eleição do Gustavo na Colômbia.

A vitória de um companheiro de esquerda no Chile, tudo isso preocupa o sistema. E o sistema tem suas contradições porque, durante um período bastante significativo como os 13 anos dos governos do PT, não conseguiram realmente minar e impedir que Lula fosse reeleito e que Dilma fosse eleita duas vezes. Mas, a gente tem que avaliar onde é que nós abrimos o flanco permitindo que uma figura execrável como Bolsonaro fosse eleito. Na minha opinião, nós abrimos o flanco principalmente na questão da educação política do povo e também nessa nova trincheira de luta que são as redes digitais que eu continuo a me negar em chamar de “redes sociais”, porque em geral não criam sociabilidade e criam até muita hostilidade. Então eu uso o nome técnico, “redes digitais” e ano que vem é muito importante no processo eleitoral nós nos capacitarmos para isso. Saber usá-las, com inteligência, com estratégia e com capacidade para poder enfrentar uma ofensiva que virá muito forte das forças de direita. 

CSA

Você falou também dos EUA e eu me lembrei que o Joe Biden, que é em tese um quadro progressista deve ser o segundo presidente católico dos EUA e mesmo assim ele não consegue ou não tem força suficiente para lidar com o establishment, com a máquina do Estado ou a política imperialista – ou ele também faz parte disso. Mas ele não deveria ter uma relação com as diretrizes do Vaticano?

FB

O Biden infelizmente nos causa muita decepção porque sequer ele adota a política flexibilizada de Obama principalmente no segundo mandato, em relação à Cuba. Ele não só assumiu as 243 novas medidas que o Trump adotou para garrotear ainda mais o bloqueio à Cuba, o criminoso bloqueio que os EUA impõe àquela pequena ilha há mais de 60 anos, como ele agora decidiu punir todos os bancos, incluindo os chineses, de negociarem em dólar com Cuba. Os bancos podem negociar em euro mas não em dólar e isso está trazendo muitas dificuldades para esse pequeno e heroico país.

Eu creio que o Biden ainda está fazendo muitas concessões aos republicanos que ainda não aceitam a vitória dele. Negam a vitória dele como negam a vacina. Os EUA já chegou em 800 mil mortes e só nos últimos quatro meses – vi esta notícia hoje – morreram 100 mil pessoas. Porque o negacionismo em relação à ciência e à vacina é muito grande naquele país.  

NU

Você é obviamente um homem religioso que é politizado e esteve fazendo parte de alguns governos. Como você se sente ao ver o fascista do Bolsonaro – como você bem disse – usando justamente da religião como desculpa para os desmandos deles, como por exemplo, na nomeação de um ministro terrivelmente evangélico no STF. Além disso, Bolsonaro usa as agendas das igrejas neopentescostais para influenciar na política externa do Brasil vide as relações com a Palestina, que mudaram, por conta justamente desse lobby sionista que é tão difundido dentro das igrejas neopentescostais.

FB

O grande conflito de Jesus não foi com ateus e agnósticos, que nem existiam ainda naquela época, foi justamente com os fundamentalistas religiosos. Se você abre o capítulo 23 do evangelho de Matheus, é uma paulera danada entre Jesus e os saduceus, os fariseus e os membros do sinédrio, que acabaram por condená-lo à morte. Diga-se de passagem, eram todos muito religiosos. Mas, entre os 10 mandamentos de Deus, há um, que é não tomar o seu santo nome em vão e o que o governo Bolsonaro faz é cometer este pecado, tomando o santo nome de Deus em vão. Sempre, os governos autoritários e ditatoriais usaram e abusaram do nome de Deus, porquê? Porque sabem que a população, especialmente o segmento mais pobre, é muito religioso. Se você perguntar a uma doméstica, a um porteiro de prédio, a um lavrador “qual é a sua visão de mundo e como nasceu o universo e o que acontecerá após a sua morte?”, seguramente, essas pessoas lhe darão uma resposta tecida em categorias religiosas. Então, eles usam e abusam do nome de Deus e nós precisamos nos contrapor a isso, mostrar que esse Deus que o Bolsonaro crê eu não creio, esse não é o Deus de Jesus.

Eu sempre afirmo que o mais importante do que ter fé em Jesus é ter a fé de Jesus e Bolsonaro não tem a fé de Jesus, nem André Mendonça, nem os seus asseclas. Eles se apropriaram do nome de Deus e criaram um Deus à sua imagem e semelhança, ou melhor, a imagem e semelhança dos seus interesses. Qual o maior dom de Deus? É a vida. E qual a maior preocupação de Bolsonaro e de sua família? É justamente o extermínio dos seus inimigos, tanto que ele defendeu publicamente que a ditadura deveria ter matado 30 mil pessoas, que matou poucos e ainda, o que é mais grave, promoveu esse genocídio que já atinge quase 620 mil brasileiros e os cientistas dizem que se o governo federal tivessem tomado medidas urgentes, 2/3 dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Então, essa é a questão que precisa ser elucidada principalmente na campanha política de 2022, como se usou e abusou do nome de Deus, mas é preciso lembrar de que, Hitler, Mussolini, todos eles usaram o nome de Deus. Com exceção de Stálin, que era declaradamente ateu, apesar de ter sido ex-seminarista, mas ele se erigiu em Deus no povo soviético. Então isso tem que ser profundamente denunciado. 

CSA

Vi uma estatística sobre o Brasil na The Economist e segundo os estudos que estavam sendo apresentados, nós estamos caminhando para uma queda de número de católicos e um aumento no número de evangélicos, que estão em 40 milhões, enquanto os católicos estão em 60 milhões e caindo. Teremos em breve mais evangélicos no Brasil que é um dos países mais católicos do mundo. O evangélico não é necessariamente reacionário, mas, às vezes tem uma forte pulsão neste sentido em pautas morais e no pensamento capitalista de usufruir riquezas na terra. Como você vê isso no Brasil e no mundo e como que o Vaticano vê isso e o reflexo disso na política?

FB

Importante isso que você coloca. Primeiro, contrariando todas as previsões dos teóricos da modernidade e da pós-modernidade, o fenômeno religioso não só não desapareceu como está em acelerado crescimento em todo o mundo, vide por exemplo, a força da religião muçulmana, tanto para o bem quanto para o mal. Ou seja, há aqueles que realmente abraçam o Alcorão dentro dos seus princípios de criar um mundo de fraternidade, de paz e de justiça e os segmentos terroristas, que se valem, voltamos ao tema anterior, se valem do nome de Deus, do nome de Allah, para praticar crimes hediondos e isso acontece na América Latina.

A Latina ainda é hoje o continente mais católico do mundo, mas o catolicismo vem decrescendo e o evangelismo vem crescendo. É preciso termos muito cuidado para não colocarmos os evangélicos no mesmo saco dos fundamentalistas. Eu conheço muitos evangélicos progressistas, identificados com a Teologia da Libertação, revolucionários de esquerda e isso é preciso ser acentuado, embora as igrejas fundamentalistas e os segmentos mais reacionários seja, evidentemente, por estarmos nesse sistema capitalista, onde contam com mais recursos e mais dinheiro. Inclusive com redes de comunicação, redes de TV e isso favorece que o pensamento deles seja mais propagado do que o pensamento daqueles que são progressistas, mas, existem muitos pastores e pastoras evangélicos profunda e convictamente progressistas. De fato, há um decaimento no números de católicos que era 90% da população brasileira no início do século XX e, como você disse, baixou para 60% enquanto os evangélicos em geral estão em ascensão e isso se deve a quê? Se deve, ao meu ver, a uma culpa da igreja católica.

De um lado eu não estou preocupado com este decaimento, sou absolutamente contra a qualquer postura competitiva em relação a outras confissões religiosas e discutir quem tem o maior número de adeptos para mim é bobagem. Mas devo dizer que, a igreja católica, enquanto ela não mudar sua estrutura patriarcal, machista, ela vai continuar caindo, porque nós estamos em um mundo de emancipação da mulher e não faz sentido uma instituição onde todos os cargos, todas as funções de autoridade são ocupadas exclusivamente por homens, inclusive isso não condiz com o evangelho, porque no evangelho Jesus era acompanhado por mulheres. A primeira apóstola foi a samaritana de Jacó e as primeiras testemunhas da ressurreição foram mulheres, mas o machismo predominante nos primeiros séculos fez com que isso se entranhasse na igreja e até hoje nós temos essa aberração de não termos mulheres sacerdotisas, bispos, cardeais e até papas. Então, isso precisa ser radicalmente mudado.

Por outro lado, o papa Francisco tem denunciado com muita frequência o chamado clericalismo, se você vai num culto evangélico – se não foi é bom ir – porque vale a pena conhecer e ouvir, pois ele é muito atrativo de modo geral. Você passa ali, 2 a 3 horas sem se cansar. Mas se você vai numa missa católica você percebe que ela é muito chata, está tudo centrado no celebrante lá no altar, somente ele que fala, somente ele que faz e o povo fica imóvel, calado assistindo e não há nenhum entrosamento entre os fiéis que estão ali presentes. Numa igreja evangélica, quando termina o culto, as pessoas vão comer um lanche, falam entre si, existe toda uma rede de ajuda se você está desempregado, se está te faltando uma cesta básica. Resultado: hoje você vai numa missa católica, você encontra os seus vizinhos de prédio, mas a sua cozinheira, a sua faxineira e o seu porteiro estão lá no culto evangélico. Essa é a realidade.

Enquanto a igreja não passar por mudanças estruturais muito sérias, inclusive acabando com o celibato obrigatório, pois, isso não se justifica nem à luz da Bíblia. Prova disso é que o primeiro capítulo do evangelho de Marcos que diz que Jesus curou a sogra de Pedro. Ora, se tem sogra, qual é a conclusão? Tem esposa, ou seja, Pedro era casado e nem por isso Jesus deixou de escolhê-lo como apóstolo e mais, fez dele o líder do grupo apostólico e possivelmente outros apóstolos também eram casados, mas os evangelhos não são nem um livro de história e nem um livro jornalístico, são um relato religioso da proposta de Jesus e, portanto, não entra nesses pormenores. Então, essa é a minha tese, enquanto a igreja não redimensionar as suas estruturas se livrando do clericalismo, do patriarcalismo, machismo e da misoginia, isso seguramente vai abrir campo para que outros segmentos religiosos estejam cada vez mais em ascendência, escanteando o número de católicos no Brasil. 

NU

O filme do Marighella, que foi lançado recentemente, mostra bastante o papel dos frades dominicanos. Você conheceu essa realidade de perto e eu queria saber o que achou do filme e o que pensa de vermos hoje até a própria Rede Globo fazendo propaganda do Marighella e falando das atrocidades que foram cometidas na ditadura. Também sobre o papel revolucionário que os frades tiveram, que a igreja teve na luta armada no Brasil. 

FB

Acho um filme importante e é importante que a Rede Globo fale, cite e propague o nome do Marighella, pois o Marighella é um herói nacional, é um libertador e é uma pessoa icônica na história do Brasil, pela sua coragem e pelo seu altruísmo e dedicação radical em libertar o país da opressão, do jugo do imperialismo norte-americano. Agora, no filme, no qual de certa forma eu participei, porque o Wagner Moura me convidou para fazer uma palestra para o elenco e creio que é um filme muito importante porque, como você diz, trouxe às telas uma figura que era abominada pela direita no Brasil, pela elite brasileira. Esse nome era impronunciável, o nome Carlos Marighella e agora ele está sendo propagado e muitos jovens estão despertando.

O único comentário negativo em relação ao filme é o final que, infelizmente, não condiz com o livro no qual o Wagner se baseou para fazer o filme, que é o livro do Mário Magalhães Marighella o guerrilheiro que incendiou o mundo. Esse livro coloca muito bem, dentro de todo um contexto, a participação dos frades dominicanos na morte do Marighella, enquanto no filme do Wagner, infelizmente, deixa a entender que os frades foram responsáveis pela morte dele. Por isso, eu aconselho a todos que viram esse filme que vejam também o filme Batismo de Sangue de Helvécio Ratton, baseado no meu livro. Esse filme está disponível na internet porque o Helvécio contextualizou muito bem a questão do envolvimento dos frades na morte de Marighella, mas sobretudo o Helvécio relata com muito mais propriedade a participação dos frades no processo revolucionário da guerrilha urbana. 

CSA

Gostaria que você indicasse três livros e três filmes que versam sobre como podemos compreender melhor o nosso cenário político atual e também sobre como a gente pode compreender melhor qual foi o papel histórico de Jesus não só no cristianismo Ocidental, mas na mudança do mundo todo após sua morte.

FB

Aproveitando essa época de natal, vou recomendar o livro que escrevi sobre a vida de Jesus, intitulado Um homem chamado Jesus, da editora Rocco, em que faço uma releitura dos 4 evangelhos à luz da Teologia da Libertação, contextualizando todo o processo da vida de Jesus na cultura do seu tempo. Eu fui à Palestina e Israel, para cada um dos lugares pelos quais Jesus passou e fiz uma exaustiva pesquisa à respeito da vida dele, das palavras e dos textos evangélicos e resultou nesse livro, que já está traduzido em vários idiomas. Agora, nesse contexto que estamos vivendo eu quero também recomendar o livro do Fernando Moraes: a biografia do Lula, é o primeiro tomo, mas é muito importante para nós entendermos o que significou o governo do PT e o que significa a figura dessa liderança política surpreendente pela origem que teve que é o companheiro Lula. É muito importante que as pessoas, diante de todas as acusações infundadas da Lava Jato de tudo que ele sofreu ao ponto de ficar mais de 580 dias preso. E o filme eu recomendo, sempre, os grande diretores: dois brasileiros e dois estrangeiros. Dos brasileiros eu recomendo toda a filmografia de Glauber Rocha e do Nelson Pereira dos Santos e dos estrangeiros eu recomendo toda a filmografia do Costa Gravas e do Oliver Stone. 

Sobre os autores

um frade dominicano, jornalista graduado e escritor. Adepto da Teologia da Libertação, é militante de movimentos pastorais e sociais, tendo ocupado a função de assessor especial do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária e um dos organizadores da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI).

é uma jornalista independente e comentarista política, anti-imperialista. Nascida no Brasil mas radicada na Escócia.