Desdolarização: 95% do comércio entre China e Rússia já não passa pela moeda estadunidense

Desdolarização: 95% do comércio entre China e Rússia já não passa pela moeda estadunidense

Desdolarização: 95% do comércio entre China e Rússia já não passa pela moeda estadunidense

A Rússia se tornou o parceiro comercial da China, superando a meta de transações de US$200 bi antes de finalizar o ano

Mauro Ramos
Brasil de Fato | Pequim (China) |

O comércio entre Rússia e China bateu o recorde de mais de 200 bilhões de dólares, antecipando a meta estipulada para 2024 - Sergei Savostyanov/POOL-AFP
Em recente visita à China, o primeiro vice-primeiro-ministro russo, Andrei Belousov, afirmou que esse ano o uso do rublo russo e do yuan chinês no comércio entre os dois países já atingiu 95%. 


Ao mesmo tempo, de janeiro a outubro, 68% de todo o comércio russo foi feito nas moedas dos dois países, segundo o ministro russo do Desenvolvimento Econômico, Maksim Reshetnikov.


O yuan vem sendo utilizado pela Rússia nas transações comerciais também com a Mongólia, Filipinas, Malásia, Emirados Árabes Unidos, Tailândia, Japão, Tajiquistão e Singapura.

O debate sobre a necessidade de desdolarização das economias do Sul Global não é recente, mas 2023 entrará para a história como o ano em que esse processo se acelerou. 


Histórico das sanções

A Rússia já soma mais de 17 mil sanções desde o início da chamada Operação Militar Especial na região leste da Ucrânia em fevereiro de 2022, segundo informações divulgadas recentemente pelo ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov. 

O mapa do Norte Global é praticamente o dos países que têm sancionado a Rússia: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, União Europeia (e os candidatos para entrar no bloco), Suíça, Coreia do Sul, Austrália e Japão, e algumas exceções como Cingapura. 

As sanções atingiram níveis históricos nessa nova leva. Segundo o próprio presidente dos EUA Joe Biden, elas foram projetadas para ter impacto de longo prazo na Rússia e que "superam tudo o que já fizemos".

A primeira leva de sanções foi imposta em 2014, a partir da crise na Ucrânia que levou a um golpe de Estado contra o presidente Viktor Yanukovych, e que contou com o envolvimento dos Estados Unidos. 

As medidas contra a Rússia começaram a ser implementadas quando o país decidiu se reunificar com a Crimeia, cujos habitantes se negaram a reconhecer o novo governo resultante do golpe. 

"De 2014 a 2022, a Rússia prosseguiu simultaneamente a desdolarização e a euroização. Durante este período, a União Europeia se tornou o principal parceiro comercial da Rússia, levando a uma mudança na principal moeda de transação do dólar americano para o euro", explica Xu Poling, o diretor do Departamento de Economia Russa da Academia Chinesa de Ciências Sociais.

Com a União Europeia intensificando as sanções em 2022, proibindo qualquer transação com o Banco Central russo, assim como a venda, fornecimento, transferência e exportação de notas denominadas em euros para a Rússia, mais da metade das reservas russas foram capturadas, o que equivale a cerca de 300 bilhões de dólares. O Ocidente inclusive começou a discutir abertamente o roubo definitivo desse montante.

Em seu relatório de 2022, o Banco Central da Rússia afirmou que "após a promulgação das sanções por Estados hostis, as suas moedas tornaram-se ‘tóxicas’ para os agentes económicos russos". "Um aumento nos acordos com países amigos nas moedas nacionais tornou-se crítico para garantir e desenvolver o comércio exterior", concluiu o informe da instituição.

Segundo Xu Poling, de 2022 até agora o comércio entre Rússia e Europa teve uma queda de 70% e da Rússia com a Ásia um aumento de 70%.

As importações da Ásia, especialmente da China continental e de Hong Kong, constituem agora 40% do total das importações russas. Aproximadamente 60% do fundo soberano da Rússia está em ativos em RMB, e 40% das suas reservas cambiais também são ativos em RMB.

A participação da Rússia nas importações da União Europeia, até setembro deste ano, caiu para 2%, segundo o Eurostat, o serviço de estatística do bloco. Em fevereiro de 2022, a cifra era quase cinco vezes maior, 9,5%.

Confira a reportagem em vídeo:

Efeito bumerangue das sanções

"A primeira vez que ouvi um debate sério sobre desdolarização, sobre a necessidade de colocá-la em um nível muito alto de importância geopolítica foi em 2014. Alguns altos funcionários na China descreveram a desdolarização como uma das lições geopolíticas mais importantes, principalmente por conta do Irã", conta Zhang Xin, vice-diretor do Centro de Estudos da Rússia da Universidade Normal do Leste da China (UNLC), 

Após as sanções à Rússia, continua Xin, muitos países em desenvolvimento ficaram preocupados com que os seus próprios ativos e sua estabilidade financeira começassem a ficar sujeitos a esta utilização excessiva do dólar como arma financeira geopolítica.

No final do ano passado, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), sob a liderança da Arábia Saudita, decidiu realizar o maior corte na oferta desde 2020, em cerca de 2 milhões de barris. O governo Biden ameaçou a Arábia Saudita pela decisão, afirmando que haveria "consequências" para o país.

A Índia usou rúpias, pela primeira vez na história, para comprar um milhão de barris de petróleo dos Emirados Árabes Unidos, em agosto deste ano. Tanto sauditas como emiradenses passarão a fazer parte do BRICS+ em janeiro de 2024. 

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Em novembro, a Comissão Europeia apresentou o décimo segundo pacote de sanções contra a Rússia e espera que seus países membros o aprovem em meados de dezembro.

A agência russa Ria Novosti, com base em dados do Eurostat, mostrou recentemente que desde fevereiro de 2022 até setembro deste ano, a União Europeia passou a pagar, em média, o dobro do que pagava antes pelo gás natural liquefeito dos EUA. 

Segundo o cálculo, o bloco teria pago mais de 52 bilhões de euros a mais pelo combustível, em comparação com o preço que os EUA cobravam em 2021.

Recorde comercial China-Rússia em 2023

O comércio entre Rússia e China acaba de bater o recorde de mais de 200 bilhões de dólares, antecipando uma meta que havia sido estipulada para ser atingida em 2024. 

A cifra de janeiro a novembro foi superior ao equivalente a 218 bilhões de dólares, o que representa um aumento de 26,7% em comparação com o mesmo período de 2022. O resultado anual ainda deve superar o objetivo de US$ 220 bi previsto pela Rússia alguns meses atrás.  

O crescimento na relação comercial bilateral trouxe uma mudança na composição das transações, com empresas chinesas ocupando o espaço deixado por europeias e japonesas.

Para Zhan Xin, é importante salientar não só o volume total, mas também o conteúdo, a estrutura do comércio. "Se você observar os dados segregados do comércio, a China exporta cada vez mais equipamentos de hardware, eletrônica, maquinaria e caminhões pesados, assim como também automóveis para a Rússia. Isso é algo que nunca fez parte do padrão comercial histórico entre os dois países", explica.

O economista Xu Poling, considera que essa reestruturação artificial das cadeias industriais e de abastecimento globais incorre em custos importantes e que o processo de recuperação pode demorar muito tempo, pelo menos cinco anos, e potencialmente até dez anos. 

"Durante este período, a maioria dos países poderá ter dificuldades em alcançar o crescimento e, em vez disso, [terá que] suportar os custos da reconstrução de cadeias industriais seguras. Acho que todo este processo é lamentável para todos os países envolvidos", expressa Poling.

Evolução do Brics pode favorecer movimento desdolarizador

Tanto em sua visita de Estado à China em abril deste ano quanto na XV Cúpula dos Brics em agosto na África do Sul, o presidente Lula defendeu a utilização de um sistema de pagamento com base nas moedas locais sem necessidade de utilização do dólar. 

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Na próxima cúpula dos Brics, que deve acontecer em outubro do ano que vem em Kazan, sob a presidência da Rússia, os ministros de Economia e presidentes dos bancos centrais deverão entregar um relatório sobre a viabilidade da iniciativa.

"A combinação de grandes economias industriais, a China em particular, um setor dos principais países ricos em energia e os principais países do mundo em desenvolvimento, pode mudar a dinâmica que esteve na base econômica e política do poder do dólar estadunidense, o chamado petrodólar, desde 1970", diz Zhang Xin.

Na cúpula do Brics em Joanesburgo, o presidente russo foi o primeiro e único a usar a palavra "desdolarização". "Um processo equilibrado e irreversível de desdolarização dos nossos laços econômicos vem ganhando força, com esforços empreendidos para desenvolver mecanismos eficientes de pagamentos mútuos, bem como de controle monetário e financeiro", disse Vladimir Putin. 


A desdolarização não será concluída rapidamente, considera Poling. "Por um lado, devem surgir novas opções e, por outro lado, o fato de os EUA poderem chegar a acordos com outros países, proporcionando mais facilidades e garantias, também vai ter impacto no processo de desdolarização". 

Porém o especialista afirma que com a politização do dólar e sua utilização como arma, o processo de desdolarização é uma tendência inevitável.
 

Edição: Rodrigo Gomes