A grande transformação no século 21

O mundo vive a grande transformação no século 21, com o esgotamento da hegemonia ocidental.

A grande transformação no século 21

A grande transformação no século 21

 

Por Marcio Pochmann

 

(Reprodução/The Economist)

Créditos da foto: (Reprodução/The Economist)


“EUA estão em decadência porque são a nação
que mais promove guerras na história.”

J. Carter, 2020

O mundo vive a grande transformação no século 21, com o esgotamento da hegemonia ocidental. Nos últimos 250 anos, a hierarquiado sistema-mundo se fundamentou no tripé da revolução industrial e tecnológica, do padrão monetário libra/dólar e do poder das armas.

Até o início do século 20, o império britânico respondia pela centralidade mundial, sendo substituído pelos Estados Unidos, após as duas guerras mundiais que impuseram derrotas ao Japão e à Alemanha que disputavam o mesmo destino no sistema hierárquico capitalista. Com o encerramento da Guerra Fria (1947-1991), o filósofo nipo-estadunidense F. Fukuyama, baseado na teoria do fim da história do filósofo alemão G. Hegel, advogouque o marco civilizatório da economia capitalista e do sistema político liberal seria intransponível (O fim da história e o último homem, 1992).

Isso porque o mundo estaria sendo dirigido pelo Consenso de Washington (1989), ungido pela queda da primeira experiência de socialismo real constituída pela exitosa Revolução Russa (1917) e pela ascensão da globalização neoliberal movida pelo unilateralismo estadunidense[1]. Menos de duas décadas depois, a grande recessão mundial que decorreu da crise financeira de 2008 revelaria as incongruências do capitalismo sem peias estatais, sobretudo nos EUA.

Do final do segundo mandato presidencial de Bush Filho (2005-2009) à atualidade do governo Biden, o Estado foi recuperado por gigantescas operações financeiras diversas voltadas ao soerguimento - sem êxito - da economia em crescente frangalhos e do sistema político liberal cada vez mais desacreditado. Para tanto, os EUA abusaram dos mecanismos da guerra, enquanto componente intrínseco do desenvolvimento capitalista, da ascendência militar na política e princípio fundante da hegemonia ocidental[2].

Na época do domínio mundial inglês, por exemplo, foram registradas, em média, uma guerra realizada a cada três anos, ao passo que durante a experiência do unilateralismo dos EUAdesde 1991 ocorreram 72 intervenções militares e mais de 100 mil bombardeios. Apesar disso, os insucessos foram crescentes, acumulando sucessivas derrotas militares (Iraque, Síria, Líbia, Afeganistão, entre outras), seguidosda perdade posições relativas no desempenho econômico, tecnológico e monetário.

Diferentemente do modelo soviético de socialismo, a China tem avançado na globalização neoliberal, liderando a grande transformação no século 21. Por mais de sete décadas, a experiência fundada pela Revolução Russa buscou construir um mundo oposto ao capitalismo, fechado a ele e em disputa permanente, fortemente dependente do complexo industrial-militar herdado da segunda Guerra Mundial, tal qual os EUA[3].

Ao operar no vácuo da decadência dos EUA, a China vem aperfeiçoando o seu modelo próprio de desenvolvimento socialista aprofundado pelas reformas de Deng Xiaoping e animado pelo Consenso de Pequimestabelecido em2004[4]. Percorrendo as vias abertas pelo próprio desenvolvimento capitalista, o modelo chinês eliminou a pobreza absoluta sob a liderança do planejamento estatal a consolidar uma economia poderosa e competitiva, cada vez mais avançada tecnologicamente.

Inspirada na reconstrução da Europa no segundo após guerra mundial pelo Plano Marshall comandado pelos EUA, a China lidera desde 2013 a reinterligação do Oriente ao Ocidente (Eurásia) através de um grandioso projeto multicultural, econômico e político denominado Nova Rota da Seda (One Belt, One Road - OBOR). Desapegada do complexo industrial-militar, a China ultrapassou a quantia de dois trilhões de dólares (mais de 14 vezes o total dos recursos do Plano Marshall) em investimentos voltados ao desenvolvimento estrutural nos cinco continentes do planeta.

O renascimento em novas bases da Eurásia demarca o deslocamento atual do centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente. Com mais de cinco bilhões de habitantes, a Eurásia renasce enquanto possível modernidade do século 21, indicando quanto os últimos dois séculos de domínio ocidental, podem se convertido em mero interregno histórico da centralidade oriental.

Em sendo assim, a perspectiva eurocentrista fundada no marco civilizatório da economia capitalista e do sistema político liberal que sustentava a hegemonia ocidental está em xeque. O tripé da hierarquia do sistema mundo vem sendo ocupado pela versão chinesa de socialismo que desarmada do complexo industrial-militar fundamenta-se no êxito obtido em pleno domínio da competição dos mercados.

Ao ultrapassar a economia dos Estados Unidos, a China avança na superação tecnológica, introduzindo a moeda digital como padrão monetário alternativo ao dólar e os investimentos em infraestrutura a integrar os continentes em cooperação multicultural. Como outro modelo de digitalização, a Eurásia renasce, superando a experiência da hegemonia ocidental.

Marcio Pochmann é professor e pesquisador do Cesit/Unicamp e da Ufabc

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[1].O Consenso de Washington pode ser sintetizado nas suas dez regras: (1) Disciplina fiscal; (2) Reforma tributária; (3) Focalização dos gastos públicos; (4) Privatização de empresas estatais; (5) Defesa da propriedade intelectual; (6) Eliminação de restrições ao capital externo; (7) Liberalização financeira; (8) Liberalização do comércio exterior; (9) Taxa de câmbio competitiva; e (10) Desregulação das relações trabalhistas.

[2]. Sobre isso, ver: Sombart, W. Guerra y Capitalismo, 1943; Mills, C. A elite do poder, 1962.

[3]. Mais detalhes, em: Castoriadis, C. Diante da Guerra, 1982; Rodrigues, R. O colapso da URSS, 2006.

[4].O consenso de Pequim compreende: (1)Apoio as decisões políticas com estratégias de projeção nacional; (2) Fomento econômico com a ação estatal fundante; (3) Reformas do mercado sem o enfraquecimento das instituições políticas e culturais nacionais; (4) Políticas de promoção das exportações com defesa da produção doméstica, sobretudo dos setores estratégicos nacionais; (5) Estímulo competitivo, gestão cambial e desestimulo à especulação financeira.