Opinião: A Europa, os Estados Unidos e a Venezuela — quem era mesmo Juan Guaidó?

Título de 'interlocutor privilegiado' que a União Europeia passou a adotar para o oposicionista traz implicitamente a ideia de que a tática de Trump para a derrubada de Maduro não deu os resultados esperados e, assim, Guaidó não é mais visto como líder de processo nenhum em seu país.

Opinião: A Europa, os Estados Unidos e a Venezuela — quem era mesmo Juan Guaidó?

Opinião: A Europa, os Estados Unidos e a Venezuela — quem era mesmo Juan Guaidó?

Título de 'interlocutor privilegiado' que a União Europeia passou a adotar para o oposicionista traz implicitamente a ideia de que a tática de Trump para a derrubada de Maduro não deu os resultados esperados e, assim, Guaidó não é mais visto como líder de processo nenhum em seu país.

Por Elizabeth Carvalho, TV Globo e GloboNews — Paris

 


 Guaidó fala a jornalistas durante entrevista coletiva em Caracas, em 2019 — Foto: Federico Parra/AFP

Guaidó fala a jornalistas durante entrevista coletiva em Caracas, em 2019 — Foto: Federico Parra/AFP

O político venezuelano Juan Guaidó deixou de ser reconhecido como “presidente interino” da Venezuela pela União Europeia. Passou a ser apenas “interlocutor privilegiado”, de acordo com a resolução adotada pelo Conselho de Ministros reunido em Bruxelas em 25 de janeiro, a propósito do resultado das eleições legislativas de dezembro passado, que deram maioria ao partido de Nicolás Maduro.

É verdade que a oposição se recusou mais uma vez a votar e o índice de abstenção foi de quase 70%, mas fato é que o Partido Socialista Único da Venezuela (PSUV) e seus aliados detém agora 256 das 277 cadeiras da Assembleia Nacional.

Assuntos latino-americanos geralmente não fazem parte das prioridades da política externa europeia. E como a linguagem da diplomacia no Velho Mundo é cheia de reticências, é preciso ler as entrelinhas das resoluções e entender de que lado sopram os ventos das potências aliadas dos Estados Unidos, sobretudo em tempos de reconfiguração política como os atuais. O título de “presidente interino” conferido a Guaidó significava apoio incondicional à sua hipotética liderança sobre as forças que tentam há anos derrubar o bolivarianismo na Venezuela. Já o título de “Interlocutor privilegiado” traz implicitamente a ideia de que a tática da administração Trump para a derrubada do governo de Nicolás Maduro não deu os resultados esperados por Washington e, assim, Guaidó não é mais visto como líder de processo nenhum em seu país.

 

A chegada de Donald Trump ao poder em 2017 empurrou a Europa a um posicionamento inédito em relação a seus vizinhos do Ocidente profundo. Como parte da estratégia ostensiva de “regime change” movida contra a Venezuela pelo governo americano visando quebrar o país internamente, a União Europeia aderiu, pela primeira vez em sua história, a sanções comerciais contra um país sul-americano.

Usando a retórica da “preocupação” com que os europeus observavam o caos venezuelano, o Conselho aprovou o embargo da venda de “armas e “outros materiais relacionados”, suscetíveis de serem usados para fins de repressão interna”, além da interdição de circulação de representantes oficiais do governo no espaço Schengen e o congelamento dos ativos financeiros da Venezuela na Europa.

Montagem coloca Maduro e Guaidó lado a lado em imagens de arquivo — Foto: STF / AFP

Montagem coloca Maduro e Guaidó lado a lado em imagens de arquivo — Foto: STF / AFP

Juan Guaidó entrou oficialmente na história do conflito venezuelano em janeiro de 2019. Personagem de pouca projeção política, ligado ao partido Vontade Popular, ala radical da oposição a Maduro acusada de implicação direta na escalada que castigava duramente as ruas de Caracas, Guaidó foi catapultado para o cenário internacional depois de um telefonema do vice-presidente Mike Pence, em episódio fartamente divulgado pela mídia internacional, prometendo suporte americano se ele declarasse ilegítimo o governo de Maduro e assumisse o controle da Assembleia Nacional para o qual havia sido eleito.

 

No dia seguinte ele se autoproclamava presidente interino da Venezuela, imediatamente reconhecido pelos governos do recém-fundado Grupo de Lima (Canadá, Brasil, Argentina, Chile, Colombia, Mexico, Peru, Costa Rica, Guatemala, Honduras e Panamá), criado com pretensões de solucionar a severa crise do país.

Na sequência, no último dia de janeiro de 2020, o parlamento de Estrasburgo também fazia as honras a esse jovem venezuelano de biografia duvidosa, agora transformado, na semântica europeia, no “único presidente interino legítimo da Venezuela à espera de novas eleições presidenciais livres, transparentes e credíveis que possam ser convocadas para estabelecer a democracia”.

Juan Guaidó tenta entrar na Assembleia Nacional venezuelana em janeiro de 2020 — Foto: AP Photo/Matias Delacroix

Juan Guaidó tenta entrar na Assembleia Nacional venezuelana em janeiro de 2020 — Foto: AP Photo/Matias Delacroix

vie en rose de Juan Guaidó começou na véspera da pandemia de 2020, depois de tentar sem sucesso escalar as grades da Assembleia Nacional e ser levado a se reunir com seus seguidores na redação de um jornal da oposição na capital venezuelana. A seguir, cumprindo imposições de uma rígida agenda, atravessou clandestinamente a fronteira para se encontrar em Bogotá com o presidente colombiano Iván Duque e o Secretário de Estado americano Mike Pompeo, e de lá voou para uma turnê europeia. Foi calorosamente acolhido em Bruxelas, em Londres, em Madri e em Davos, com direito à cereja do bolo - ser recebido no Palácio do Eliseu em Paris por Emmanuel Macron.

Na visão do governo Maduro, o Brasil, mais fiel aliado à política externa americana dos anos Trump, já estaria envolvido em operações explícitas de treinamento para uma eventual invasão à Venezuela, como no caso da “Operação Amazonia”, realizada entre os dias 4 e 23 de setembro de 2020, mobilizando três mil homens das forças armadas brasileiras de cinco comandos diferentes.

Segundo o governo Bolsonaro, tratava-se apenas de um “exercício regular militar”. Ao final do exercício, Mike Pompeo foi recebido na base aérea de Boa Vista, em Roraima, pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, na fronteira sudeste da Venezuela. O encontro foi anunciado como uma visita à “Operação Acolhida” de refugiados venezuelanos em território nacional. Era o ponto final de um périplo de Pompeo pelo Suriname e a Guiana, onde negociou permissão para pouso de aviões americanos -- na fronteira leste da Venezuela.

 

Muita água rolou debaixo da ponte entre o “exercício regular” dos militares brasileiros na Amazônia e o rebaixamento de Guaidó pelo Conselho da União Europeia. A começar por um novo governo no principal país interessado no conflito, os Estados Unidos. Joe Biden já anunciou sua disposição de “negociar” com o presidente “de fato” Nicolás Maduro um fim para a crise política e econômica em seu país. A renúncia de Maduro, ele afirmou, não é uma “pré-condição” para flexibilizar as sanções americanas.

Ainda que a resolução europeia seja categórica em não reconhecer a lisura das eleições legislativas da Venezuela, está claro que os países europeus se reposicionam diante de um novo cenário.

Além do mais, o ano começou mal para Guaidó. Perdeu a imunidade parlamentar, e em breve, terá que enfrentar a justiça. Pesam sobre ele acusações de “traição à pátria”, por supostamente ter negociado a entrega do território de Essequibo, disputado com a Guiana há mais de um século, em troca de apoio político. Há também indícios cada vez mais evidentes de seu envolvimento com o desvio de fundos de apoio para a migração venezuelana em solo colombiano. E há ainda a lebre levantada em reportagem investigativa do jornal "Washington Post" em 6 de dezembro sobre supostas negociatas para controlar recursos do governo venezuelano no exterior. A história é implacável: dentro de pouco tempo, Guaidó não será mais “interlocutor privilegiado”. E provavelmente nem mesmo interlocutor.