Racismo e violência letal do Estado: um olhar a partir da Baixada Fluminense

Habitada por cerca de 3,9 milhões de pessoas e reunindo treze cidades, a Baixada Fluminense[1] carrega em si a memória de um espaço social forjado na luta do povo contra opressões, violências e desigualdades de toda espécie.

Racismo e violência letal do Estado: um olhar a partir da Baixada Fluminense

Racismo e violência letal do Estado: um olhar a partir da Baixada Fluminense

Acervo Online | Rio de janeiro

por Adriano Moreira de Araujo

 

Quem nasceu na Baixada e vive nesta terra, sabe que a violência, além de ser um gravíssimo problema social, se articula a outros setores da vida, influenciando-os: a violência é um elemento configurador das sociabilidades, das disputas eleitorais, dos locais de moradia e trabalho e do acesso à transporte, educação e saúde

Habitada por cerca de 3,9 milhões de pessoas e reunindo treze cidades, a Baixada Fluminense[1] carrega em si a memória de um espaço social forjado na luta do povo contra opressões, violências e desigualdades de toda espécie.

Foi nas décadas da ditadura civil-militar (1964-1985) que a região experimentou algumas das referências de luta e de resistência que até hoje alimentam o repertório de ativistas sociais e lideranças comunitárias.

O movimento de amigos de bairro (MAB), os pré-vestibulares para negros e pobres, os movimentos contra a carestia, as denúncias públicas sobre a violência de Estado, nada disso esteve ausente desse território formado por migrantes nordestinos e da região Sudeste do Brasil e também moradores da cidade do Rio, expulsos pela grande especulação imobiliária na Cidade Maravilhosa.

Acrescente-se ainda a esse histórico a riqueza das assembleias comunitárias em prol da saúde básica da população, a luta por saneamento e acesso à água, e as exibições audiovisuais em praça pública como da TV Maxambomba, inspiradora de diversos cineclubes e produtores de cultura na região.

Passado e presente agora parecem se entrelaçar, mesmo que trazendo “novos” elementos. Nós, moradores da Baixada, conhecemos há décadas as práticas brutais dos grupos de extermínio e dos esquadrões da morte. Hoje, a atuação das milícias, as disputas pelo território e a violência policial que dizima pobres e negros atualizam a violência de Estado num cenário mais grave, porque ocorre sob a égide do abstrato estado democrático de direito.

 

Direito e democracia para quem?

A dinâmica da violência de Estado na Baixada Fluminense remonta de modo mais específico às décadas de 1960, 1970 e 1980, com a atuação dos grupos de extermínio. Conforme apontado pelo sociólogo José Claudio Souza Alves, em seu livro Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense,[2] essa violência letal conhece um ponto de inflexão, na passagem dos grupos de extermínio para matadores civis e no aparecimento das milícias, na reestruturação “produtiva” do tráfico em toda a Baixada em resposta às mudanças provocadas pela ocupação de muitas áreas pelas Unidades de Polícia Pacificadora na capital e nas conexões entre empreendimentos ilegais “legalizados” sob proteção ou mesmo patrocínio de políticos e outros agentes públicos.

Apesar dessa violência letal ir se complexificando e se espraiando cada vez mais, continuamos a ver entre suas vítimas letais os mesmos corpos, as mesmas vidas negras, pobres e das periferias.

As mortes das crianças Emily Victória Silva dos Santos, de 4 anos, e Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos, de 7 anos, em Duque de Caxias em dezembro de 2020 durante uma operação policial ou ainda da designer de interiores, Katlen de Oliveira, de 24 anos, grávida – que morreu com um tiro de fuzil durante uma incursão da polícia – são registros que gritam por justiça e que denunciam a necropolítica brasileira. Em ambos episódios, a acusação de moradores locais recai sobre policiais que realizavam operações nos locais, embora a polícia negue a responsabilidade e tais mortes não venham a integrar os dados oficiais de mortes provocadas por agentes do Estado.

O fato é que, dentre os quatro crimes que compõem o indicador de letalidade violenta apresentado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), a morte por intervenção de agente do Estado só é inferior a dos homicídios dolosos, e superior a dos latrocínios (roubos seguidos de morte) e das lesões corporais seguidas de morte no Estado do Rio no período de janeiro a dezembro de 2020. Foram 4907 vítimas fatais, sendo 3544 por homicídio doloso (72,22%), 1245 mortes por intervenção de agente do Estado (25,37% do total), 87 por latrocínio e 31 por lesão corporal seguida de morte.

Do total de 1245 mortos pela polícia em 2020, cerca de 32,44% (404) eram da Baixada Fluminense e 33% (415) da capital, sendo que nesta a população é quase duas vezes maior.

Do total de 404 mortos pela polícia na Baixada Fluminense, 98,3% eram do sexo masculino, 73% pretos ou pardos, 10,6% brancos e 16,3% sem informação. Desse total, acrescente-se ainda que 4,2% das vítimas mortas diretamente pela ação do Estado tinham entre 12 e 17 anos, 23,8% entre 18 a 29 anos, 5,2% entre 30 e 59 anos e 66,08% sem informação.

 

Violência e letalidade policial: origens e contexto atual

A Polícia Militar do Rio de Janeiro é uma das mais antigas instituições brasileiras. É sintomático que seja anterior a própria constituição do ideário republicano. Sua origem remonta a 1809, portanto, sob contexto da fuga da família Real, um ano antes, em decorrência da invasão de Portugal pelas tropas francesas durante o período napoleônico.

Dom João cria no Brasil uma estrutura similar à Guarda Real de Polícia de Lisboa. Sinaliza, portanto, aos olhos do poder político português, a necessidade estratégica diante de uma colônia forjada a partir da exploração das riquezas naturais e do trabalho escravo e diante de um contexto social conturbado, no qual a Revolução Haitiana, cinco anos antes, havia abalado as estruturas de uma sociedade dominante branca, proprietária e escravocrata.

Fazer frente a prováveis conflitos e insubordinações, garantir a estrutura socioeconômica escravocrata e proteger os bens e interesses da corte portuguesa eram o propósito fundamental da Guarda Real de Polícia da Corte, origem da Polícia Militar.

Até hoje a Polícia Militar do estado do Rio traz em seu brasão os ícones dessa origem, como o ramo de café e da cana de açúcar, produtos de exportação da Colônia, reforçadas pela imagem da Coroa, representando o poder ao qual encontrava-se subordinada, e as armas douradas, numa inequívoca mensagem da força letal com a qual a instituição permanentemente é vinculada até os dias de hoje.

Alimentada pelos interesses da origem colonial e, em novas adaptações feitas durante o Estado Novo e principalmente durante a ditadura civil-militar, a Polícia Militar foi se moldando cada vez mais como um dos principais braços armados do Estado, disposta e pronta a ser acionada a todo momento em que os interesses patrimoniais e de manutenção do status quo viessem a ser arranhados.

Guerreiros ou heróis combatendo o inimigo, aniquiladores do mal, evitando assim que a sociedade do bem seja corrompida e destruída… passou a ser a imagética construída socialmente como salvo conduto para operações acima das leis e dos direitos dos pobres e dos negros.

Tal construção foi potencializada durante o período militar. Hoje, com governos belicistas e de ideologia conservadora e militarizada, como as dos atuais governos federal e estadual, observamos uma polícia cada vez mais letal e, ao mesmo tempo, sem qualquer freio ou limite. Infiltrar, sequestrar, capturar, fazer uso de técnicas de tortura e ainda “matar atirando na cabecinha” e desaparecer com os corpos, fizeram e fazem escola até hoje e orientaram muitos dos grupos criminosos que atuam com o apoio ou o consentimento velado de gestores e mesmo órgãos públicos.

baixada
Operação da polícia militar em comunidade na Baixada Fluminense, em 2016 (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Com o passar do tempo, a ação da polícia nem mesmo depende mais de acionamento externo. Funciona incessantemente, a partir de sua lógica organizacional higienista e racista, e em consonância com interesses políticos e governamentais.

A prática de invasão de casas e destruição de objetos e bens de família; coação e agressão de testemunhas que se dispõem a publicar nas redes sociais as práticas ilegais; tortura, execução e desaparecimento de corpos como do caso Amarildo e adulterações de locais de crimes que possam gerar provas de ilegalidade da ação policial, infelizmente vêm sendo cada vez mais atribuídos a essa instituição.

Tal repertório, mesmo repetido à exaustão, continua sendo defendido por governantes e outros setores interessados na segurança pública, mesmo que não haja qualquer correlação possível entre tais práticas e a pretensa redução da violência, do combate ao comércio ilegal de drogas ou de qualquer outra invenção que se pretenda justificar tais práticas. É o racismo estrutural e institucionalizado, é a perspectiva de que determinadas vidas valem menos que outras ou que determinados sujeitos não podem ter o “privilégio” da garantia dos direitos, aliado à complacência por parte da sociedade e dos poderes que acabam por autorizar tais crimes.

A evidência, conforme os dados da própria polícia do Rio explicitam, é que são sempre os mesmos mortos, os matáveis que sequer têm seus nomes reconhecidos pela mídia e que comumente são tratados como suspeitos a priori. Dessa forma, os corpos negros somem na burocracia do Estado, nas estatísticas frias e no senso comum, ao mesmo tempo que muitos casos envolvendo mortes por policiais no Brasil foram arquivados sem ao menos serem julgados ou resultarem em denúncias penais, como aponta relatório da Human Right Watch.

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a violência letal da polícia no Brasil entre 2013 e 2020 só cresceu, passando de 2212 para 6416 mortes. Nesses oito anos, 37.029 pessoas foram mortas por agentes públicos de segurança no país.

Nesse mesmo período, no estado do Rio, a polícia matou 8290 pessoas, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública, 22,38% do total nacional. Em 2021, de janeiro a outubro, já são 1215 pessoas mortas.

 

O papel do Fórum Grita Baixada

Resultado de um processo de articulação e mobilização social, o Fórum Grita Baixada nasceu em 2012 com um propósito claro: gritar e chamar a atenção das autoridades públicas sobre a grande calamidade que se abate sobre a região, em especial as recorrentes chacinas, violência policial e atuação de grupos criminosos. O Fórum não cerra os ouvidos para outros e diversos problemas históricos da Baixada, como o saneamento, a mobilidade ou mesmo a ausência de equipamentos públicos de esporte, lazer e cultura. Mas, quem nasceu na Baixada e vive nesta terra, sabe que a violência, além de ser um gravíssimo problema social, se articula a outros setores da vida, influenciando-os: a violência é um elemento configurador das sociabilidades, das disputas eleitorais, dos locais de moradia e trabalho e do acesso à transporte, educação e saúde. Até na manifestação das religiosidades ou nas afirmações identitárias de gênero e de raça, a violência muitas vezes se impõe como discurso ou como ameaça concreta.

Assim, após mais uma chacina ocorrida na Baixada, no bairro da Chatuba, em Mesquita,[3] surge o Fórum Grita Baixada como um espaço de diálogo, articulação, mobilização e incidência política na luta por direitos e políticas públicas que contribuam para uma efetiva melhoria das condições de vida da população, especialmente da população negra e dos mais pobres.

O Fórum Grita Baixada entende que o enfrentamento ao racismo estrutural e institucional é essencial nessa luta por direitos humanos e políticas públicas. Todos os dados relativos a vulnerabilidades sociais e não acesso a direitos básicos atingem sobremaneira a população negra. São os pretos e pardos as maiores vítimas do Estado brasileiro e, sem essa percepção, qualquer medida de enfretamento da violência carece de sentido.

Assim, assumimos o compromisso de buscar incidir em políticas públicas que venham a contribuir para a redução de desigualdades históricas, denunciando a violência de Estado e articulando pessoas e organizações que fortaleçam essa luta tão necessária.

Um pequeno e recente exemplo de nosso trabalho pode ser ilustrado pelo compromisso, junto com as Mães e Familiares de Vítimas de Violência de Estado da Baixada Fluminense, em demandar e contribuir na construção do Primeiro Plano Municipal de Direitos Humanos de Nova Iguaçu (publicado em novembro de 2021), onde conseguimos garantir a inclusão do primeiro atendimento público municipal psicossocial para mães e familiares de vítimas de violência de Estado e de desaparecimentos forçados. Essa iniciativa já se encontra, aliás, em fase de formação dos profissionais que atenderão as famílias a partir da inauguração do serviço neste mês de dezembro. Um aspecto vital do plano e dos próprios atendimentos é a compreensão que a cidade de Nova Iguaçu é majoritariamente negra e feminina e que a violência de Estado atinge, além dos homens, suas famílias, especialmente mães, esposas, filhas, avós. Há um processo de adoecimento e de morte em vida que é negligenciado pelo Estado. Daí a importância dessa ação, mesmo que acompanhada de diversos desafios.

 

Considerações finais

Ao longo deste artigo buscamos mostrar como as perspectivas formais sobre democracia, direitos sociais, cidadania, segurança e proteção diferem de acordo com a cor da pele, do CEP, do nível de renda. Vimos como a violência letal assume uma conotação profundamente racista e segregacionista, que remonta as origens de nosso processo de colonização, defesa da propriedade e domínio de uma elite branca. Não é por outro motivo que a Baixada Fluminense, assim como outros territórios, é vista como um espaço deficitário de infraestrutura adequada e de políticas públicas que busquem contribuir para a redução de desigualdades.

Do mesmo modo, a violência letal praticada por agentes públicos integra o modus operandi do braço armado do Estado em territórios como o da Baixada Fluminense, naturalizando e perpetuando a violência como se fosse uma característica imanente ao território ou a seu povo.

Ter direito à cidade neste contexto, defender a democracia ou promover a garantia de direitos é subverter essa lógica e essa história, é enfrentar a segregação e o racismo, lutar contra as desigualdades e contra a necropolítica, numa construção permanente de sujeitos sociais, campo que o Fórum Grita Baixada, as Mães e Familiares de Vítimas de Violência de Estado e tantos outros assumem diariamente, a despeito das dificuldades, resistências e ameaças.

 

Adriano Moreira de Araujo é mestre em Sociologia e coordenador executivo do Fórum Grita Baixada.

 

[1] A região é composta por treze municípios (Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São João de Meriti e Seropédica), que somam 3.908.510 pessoas, de acordo com projeção do IBGE (2020).

[2] 2 ed. Revista e Atualizada. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2020.

[3] Foram executados nesta chacina os jovens Christian de França Vieira, de 19 anos, Douglas Ribeiro da Silva, de 17, Glauber Siqueira Eugênio, de 17, Josias Searles, de 17, Patrick Machado de Carvalho, de 16, e Victor Hugo da Costa, de 16. Os jovens foram sequestrados e mortos com marcas de tortura e encontrados dois dias depois, num terreno baldio às margens da Rodovia Presidente Dutra, no Bairro São José, em Nova Iguaçu, município vizinho de Mesquita, embora tenham sido mortos num terreno ocupado pelo Exército em Mesquita.