O ESTÁDIO BRASILEIRO USADO COMO ‘CAMPO DE CONCENTRAÇÃO’ NA DITADURA

Localizado no Rio de Janeiro, o estádio Caio Martins foi palco para prisões e torturas — exportadas mais tarde para outros países do Cone Sul

O ESTÁDIO BRASILEIRO USADO COMO ‘CAMPO DE CONCENTRAÇÃO’ NA DITADURA

PODCAST AH / DITADURA MILITAR BRASILEIRA

O ESTÁDIO BRASILEIRO USADO COMO ‘CAMPO DE CONCENTRAÇÃO’ NA DITADURA

Localizado no Rio de Janeiro, o estádio Caio Martins foi palco para prisões e torturas — exportadas mais tarde para outros países do Cone Sul

Fabio Previdelli

POR FABIO PREVIDELLI

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Manifestação contra o golpe de 64 - Arquivo Nacional
Manifestação contra o golpe de 64 - Arquivo Nacional

Após o Golpe Militar que depôs o presidente João Goulart, em 31 de março de 1964, não demorou muito para que os agentes da Ditadura passassem a perseguir opositores ou pessoas vistas como subversivas e inimigas do novo regime

Embora muito associem a implementação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), em 1968 — que completou 54 anos no último dia 13 de dezembro —, como um decreto que mergulhou o Brasil nas profundezas da barbárie, é importante ressaltar que torturas e maus-tratos a presos políticos já vinham sendo praticados muito antes. 

O Rio de Janeiro, por exemplo, foi um desses grandes centros onde as perseguições eram mais numerosas. Para se ter uma ideia, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 10 de dezembro de 2014, as prisões por lá ficaram tão abarrotadas que navios, clubes e até mesmo estádios de futebol se tornaram antros para os perseguidos. 

 

Tanque circulando em Brasília durante a ditadura/ Crédito: Arquivo Nacional

 

Um desses espaços fica em uma esquina da rua Presidente Backer com a avenida Roberto Silveira: o estádio Caio Martins, que na época pertencia ao governo do estado. O centro esportivo foi o primeiro da América Latina a ser transformado para tal tipo de prática, o que mais tarde ganhou uma escala maior com o Estádio Nacional de Santiago, durante a ditadura sangrenta de Augusto Pinochet. Algo que será explicado mais adiante. 

Dados da tortura

Segundo o relatório final da CNV, 339 prisões oficiais foram feitas no Caio Martins. O número, porém, pode ser muito maior, já que presos que passaram por lá apontam que o estádio pode ter abrigado cerca de 1.800 prisioneiros — muitos deles bancários, operários navais, ferroviários e trabalhadores rurais; nem sempre ligados à movimentos de esquerda. 

Como recorda matéria do O Globo, o advogado Manoel Martins, que era presidente do Partido Socialista de Niterói, ficou enclausurado no Caio Martins durante o início do regime militar. 

Vista interna do estádio Caio Martins em 2015/ Crédito: Zambrone via Wikimedia Commons

 

Ele recorda que o estádio não era usado como ponto de interrogatório, mas que, ainda assim, presos sofriam torturas ali, principalmente psicológicas. Manoel Martins também afirma que todos os dias caminhões com dezenas de pessoas chegavam por lá. Apontando que os presos viviam em “condições desumanas”.

Não só um palco pra abuso. Mas um palco onde muitas pessoas estiveram confinadas, presas, sofreram abusos físicos e psicológicos, e torturas”, diz o professor de História Cláudio Márcio Prado, em entrevista exclusiva à equipe do site do Aventuras na História, em parceria com o portal SportBuzz.

“Mas o Caio Martins vai ser usado por quê? Você tem uma estrutura grande, relativamente perto; porque, naquele momento, você tem no Rio de Janeiro, que é o estado da Guanabara — já não era mais a capital federal —, a proximidade, os carros”, contextualiza o doecente. 

Professor Cláudio também aponta que, na época, a ponte Rio-Niterói ainda não existia, só sendo inaugurada 1974. “A travessia ainda era de balsa, por carros. Então, ainda era fácil, pois muitos dos presos ficavam entre a Barra da Tijuca e a Vila Isabel, no Quartel da Polícia do Exército. Próximo ao Maracanã, inclusive.”

À CNV, Modesto da Silveira, defensor de presos políticos na Ditadura, falecido em 2016, recordou que após o Golpe de 64, além do estádio Caio Martins, quatro navios e todas as cadeias estavam cheias de presos políticos. "O Rio de Janeiro tinha sete auditorias militares devido ao grande desdobramento de prisões no Estado, que teve o maior número de presos do país".

Manifestação contra a ditadura no Rio de Janeiro, em 1968/ Crédito: Memorial da Democracia

 

Uma edição do jornal carioca A Tribuna, datado de 20 de abril de 2021, quando o Caio Martins completou oitenta anos, recordou uma entrevista com Coronel Hugo Sá Campelo, que era chefe de polícia na ocasião.  

Sá Campelo declarou que as prisões eram divididas entre a Polícia Militar, o Ginásio Caio Martins e o Centro de Armamento da Marinha, “além dos que aguardam interrogatório na própria Secretaria de Segurança Pública”.

“Os presos estão tendo assistência de todos os médicos do Estado, tomam banhos diários e recebem uma alimentação sadia”, garantiu. Mas a realidade era muito mais assustadora.

A voz das vítimas

Em relato à Comissão Nacional da Verdade em 2012, Manoel Martins, então com 88 anos, preso no Caio Martins por também ser um dos defensores das reformas de base propostas por Jango, classificou o tratamento aos presos como o mesmo dado nos "campos de concentração".

Durante 18 dias, o Caio Martins foi o terror implantado. Para ir ao banheiro, íamos acompanhados por um soldado com metralhadora", recordou. 

"Éramos professores, operários e camponeses, muitos evangélicos das Testemunhas de Jeová. As pessoas chegavam em caminhões", explicou Manoel. "Eu vi tanta coisa e continuei vendo e precisava registrar isso. O que aconteceu com essa cidade, com Niterói, esse foco de resistência".

O advogado também foi um dos entrevistados pelo jornalista Anderson Madeira de Carvalho, autor do livro 'Niterói na Época da Ditadura' (Gramma Editora), lançado em 2019.

Repreensão militar em tempos de ditadura/ Crédito: Reprodução

 

Um dos relatos que mais lhe surpreendeu foi quando o ex-preso de Caio Martins contou que as pessoas eram proibidas de tomarem banho de sol. Quando os militares liberaram que eles pudessem ver a luz do dia, muitos saíram rolaram no gramado. 

O ginásio foi transformado em um campo de concentração, onde havia maus-tratos aos presos. Não tínhamos direito a banho de sol nem caminhar nem receber visitas. Apenas no final", depôs Martins ao jornalista. 

"Nos serviam uma sopa azeda que era suspeita de estar envenenada. Uma das imagens mais marcantes foi o dia em que abriram os portões do gramado para tomarmos sol. A cena daquelas pessoas rolando na grama nunca saiu de minha cabeça", disse o preso político, falecido em 2016, aos 92 anos. 

Lygia Martins, filha de Manoel Martins, também recordou algumas histórias de seu pai ao A Tribuna, revelando que os militares não só faziam torturas psicológicas com os presos, mas também com seus familiares. 

"Quando meu pai foi pra o Caio Martins, ele já estava preso no quartel da PM ao lado da Rodoviária de Niterói, uns 2 meses antes. No Caio Martins todos eram vigiados pelo Exército. A tortura ali era mais psicológica. Lembro-me das visitas, um soldado de metralhadora ficava entre o preso e sua família. Eu tinha 15 anos, chorava apavorada." 

A pressão psicológica era tamanha que, em entrevista ao portal Trivela, o advogado relatou que houve várias tentativas de suicídio no período em que o Caio Martins serviu como prisão. 

"Não podíamos fechar o banheiro. Tínhamos de ocupar o vaso sanitário de porta aberta, com o soldado de fuzil apontado para a nossa cabeça", apontou à CNV Benedito Joaquim dos Santoslíder sindical que também foi detido no complexo esportivo

A exportação da torura

De acordo com Gabriel Cerqueira, historiador e pesquisador da Comissão da Verdade de Niterói, o uso do Caio Martins como 'campo de concentração' durou até setembro de 1964, aponta matéria do O Globo. 

Mesmo assim, as práticas usadas por lá foram exportadas para outras ditaduras dos países do chamado Cone Sul. "O Brasil que vai exportar essa 'tecnologia' [de tortura em estádios]. Como é o Brasil que vai exportar a 'tecnologia' do pau de arara", recorda o professor Cláudio Márcio Prado à equipe do Aventuras. 

Então você tem no Brasil, voltando especificamente pro Caio Martins, todo o início. Infelizmente, nossos militares, eles vão ser os pioneiros, eles vão exportar know-how, vão fazer workshop de torturas para as outras ditaduras na América Latina. Dos anos 60 e 70. Como a chilena”, continua. 

O docente se refere ao sangrento governo do ditador Augusto Pinochet, que em 1973 afastou o presidente eleito Salvador Allende. Desta forma, o Estádio Nacional de Santiago também foi usado para a mesma finalidade do Caio Martins. 

Augusto Pinochet, ex-ditador chileno/ Crédito: Biblioteca del Congreso Nacional via Wikimedia Commons

 

A partir de 12 de setembro de 1973, o complexo esportivo foi usado como 'prisão improvisada' por cerca de dois meses. Neste período, recorda o jornalista e historiador Maurício Brum, autor de 'La cancha infame: a história da prisão política no Estádio Nacional do Chile', 40 mil presos passaram pelo local. Estima-se que 400 pessoas morreram por lá. 

Golpe de Pinochet aconteceu no meio da campanha de qualificação para a Copa do Mundo de 1974, disputada na Alemanha Ocidental. No dia 21 de novembro de 1973, Chile e União Soviética tinham uma partida marcada, valendo vaga no mundial, para ocorrer no Estádio Nacional. 

Entretanto, os soviéticos se recusaram a jogar, visto que na época já haviam resquícios de que o palco da partida era usado para práticas de tortura. Vale ressaltar, porém, conforme recorda matéria do portal português Público, que a FIFA chegou a dar garantias aos soviéticos de que não havia nada de errado por lá.

 

 

Mesmo assim, a seleção europeia não subiu ao gramado. Os chilenos, após uma relaxada troca de passes entre quatro jogadores, marcou um gol em uma das traves sem goleiro e assegurou sua vaga no mundial. O jogo foi encerrado imediatamente após o tento.