“Não vai ter golpe". Já ouvimos essa frase duas vezes antes na história. E deu no que deu

Em 1964 e 2015-16 os líderes políticos institucionais garantiram que era impossível haver golpe. Agora, de novo eles afirmam isso

“Não vai ter golpe

“Não vai ter golpe". Já ouvimos essa frase duas vezes antes na história. E deu no que deu

Mauro Lopes

Em 1964 e 2015-16 os líderes políticos institucionais garantiram que era impossível haver golpe. Agora, de novo eles afirmam isso

Bolsonaro e o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio.Créditos: Ag. Brasil

Mauro Lopes

Escrito en OPINIÃO

O primeiro golpe

Em 1964, a liderança político-institucional democrática do país, especialmente  parlamentares e integrantes do governo João Goulart, garantiam: não vai ter golpe.

Não testemunhei, era uma criança de apenas 4 anos, os livros de história ensinam que a esquerda e os integrantes do governo Jango tinham total confiança no “dispositivo militar” do general Assis Brasil, chefe do Gabinete Militar da Presidência. 

Consigo até escutar os líderes políticos da época garantindo aos sindicalistas, militantes dos movimentos estudantis e das organizações de esquerda, entre complacentes e impacientes: “não vai ter golpe”.

O “dispositivo militar” de Assis Brasil era imbatível, diziam. Tinha como sua principal estaca o ministro da Guerra e chefe do II Exército (São Paulo e Mato Grosso) general Amaury Kruel e outros comandantes militares. Tudo caiu como um castelo de cartas, depois da traição de Kruel que, além dos postos que ocupava, era considerado um fiel amigo de Jango. 

Apesar do “não vai ter golpe”, houve o golpe.

 

O segundo golpe

Em 2015-16, toda a liderança político-institucional do país, especialmente parlamentares e integrantes do governo Dilma Rousseff, garantiam: “não vai ter golpe”.

Eu mesmo escutei, assim como outros jornalistas, ativistas e líderes de movimentos sociais dos líderes do governo Dilma, entre complacentes e impacientes: “não vai ter golpe”; A certeza era tanta que a frase virou um slogan.

Não me recordo de nenhum parlamentar da base de sustentação do governo Dilma ou de algum de seus ministros ter lançado um alerta sobre a possibilidade de golpe -mas não posso assegurar, sob risco de cometer injustiça. Mas, como é de conhecimento público, vários desses parlamentares e ministros participaram das articulações do golpe, a começar do então vice-presidente, Michel Temer.

Garantia-se que o “profissionalismo” das Forças Armadas era um seguro contra o golpe. Mas, da mesma maneira que Kruel em 1964, o comandante do Exército, general Villas Boas, nomeado para o cargo em janeiro de 2015, teria papel decisivo no golpe de Estado e, depois, na prisão de Lula e garantia de que o processo eleitoral de 2018 estaria sob controle dos golpistas.

Apesar do “não vai ter golpe”, houve o golpe.

 

O golpe em marcha

Agora, a situação é diferente. Não se trata de um presidente ou presidenta democrata no cargo, Jango ou Dilma, mas de um fascista, Bolsonaro.

Ele articula o golpe à luz do dia. Um golpe não contra o governo, mas contra o processo eleitoral. Bolsonaro sabe que, nas urnas, está derrotado, e está no comando de uma operação para impedir que as urnas falem ou, depois do pleito, “melar” o jogo. 

Para isso, conta com o apoio de seu dispositivo militar e de ninguém menos que o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, com apoio dos comandantes das Forças Armadas.  

Mais uma vez, ouvimos: “não vai ter golpe”. Os falantes agora não estão no governo, claro. Mas, mesmo na oposição, garantem, entre complacentes e impacientes, que golpe não haverá.

A tese tem dois eixos argumentativos:

1. As Forças Armadas não apoiarão o golpe. Ou por outra: os “militares profissionais” impedirão o golpe. Perguntas impertinentes aos complacentes impacientes. As Forças Armadas negaram a Bolsonaro alguma coisa  desde a sua posse? Não são por acaso as Forças Armadas o aríete de Bolsonaro contra o TSE e as urnas eletrônicas? E os “militares profissionais”? Onde estão eles? Quem tiver visto algum militar profissional passando na rua ou pronunciando-se nos quartéis ou fora deles poderia fazer a gentileza de indicá-los. Depois de 1964 e 2015-16 há quem considere que ainda se deve confiar nos militares?

2. A correlação de forças é ruim para Bolsonaro, ele está isolado e não tem força para o golpe. É verdade. Mas quem disse que os golpes são ações realizadas apenas por aqueles que têm a hegemonia ou pelo menos uma situação de dominância na correlação de forças? Em conversa com o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares no Fórum Café desta terça-feira (19), pontuamos que os golpes podem ser iniciativas ousadas exatamente para mudar uma correlação de forças dada. 

Se alguém considera que Bolsonaro não tem ousadia para tentar o golpe levante a mão na assembleia, por favor. Ele é tão ousado que está preparando o golpe à luz do dia, à vista de toda a sociedade.  

Isso quer dizer que um golpe será obrigatoriamente vitorioso? Não. Vimos o que aconteceu na Venezuela em 2002, quando a reação popular e militar levou Hugo Chávez de volta ao poder, depois de aprisionado pelos golpistas por dois dias. Mas o sucesso incerto não é garantia de que golpistas ficarão de braços cruzados.

Bolsonaro e seus militares e apoiadores civis  golpistas não estão, definitivamente, de braços cruzados. Mantêm o controle do governo e da Câmara dos Deputados e ainda têm apoio em largas fatias do Judiciário; disseminam o terror fascista nas ruas nesta largada de campanha eleitoral; e organizam outro Sete de Setembro contra a democracia.

Do outro lado, o lado dos democratas, o cenário beira o desolador.

O exemplo mais eloquente foi a cena do presidente do TSE, Edson Fachin, na tarde desta segunda (18). Uma imagem emblemática: sozinho, com um maço de papéis nas mãos, meio que trêmulo, com um discurso escrito às pressas, buscou confrontar Bolsonaro e sua ameaça de golpe diante do mundo -os embaixadores reunidos por ele e seu comando militar no Palácio da Alvorada.

Fachin, ele sim isolado, solitário, falando a advogados, apelou à sociedade para reagir à articulação golpista. O TSE não tem forças para reagir a Bolsonaro sem apoio político e social -foi essa, ao fim e ao cabo a confissão do ministro: “A sociedade civil, além da Justiça Eleitoral, precisa fazer a sua parte na garantia de que a democracia seja preservada”. 

Sem pronunciar o nome de Bolsonaro ou a palavra golpe, o presidente da corte responsável pelas eleições disse, em tom alarmado, que as ações do ocupante da Presidência e seu grupo “violam as bases históricas do contrato social da comunicação, assim como premissas manifestas da legalidade constitucional”. Parece-me uma advertência cristalina contra o golpe -se alguém tiver outra interpretação para essa frase, pronuncie-se.

No entanto, o mundo político democrático ignorou. Parece não ter ouvido o discurso de Fachin e segue ignorando as manobras golpistas.

“Não vai ter golpe”.