Mandados de segurança paralisam reforma agrária em Mato Grosso

Mandados de segurança paralisam reforma agrária em Mato Grosso

CONFLITOS NO CAMPO

Mandados de segurança paralisam reforma agrária em Mato Grosso

Instrumento jurídico, segundo o MPF, deveria ser julgado em no máximo 30 dias. Entretanto, em Mato Grosso, há casos de mandados de segurança sem decisão há mais de quatro anos. A falta de decisão impacta famílias acampadas há 20 anos, vítimas de conflitos recorrentes devido à falta de regularização fundiária

Elvis Marques

 

Mandados de segurança, que deveriam ser julgados em até 30 dias, estão demorando até quatro anos para serem apreciados no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). A situação de paralisação da reforma agrária no estado do Mato Grosso é denunciada por organizações que acompanham a pauta camponesa.

A demora do judiciário acarreta mais insegurança para as famílias que aguardam para ter o direito à terra efetivado. Em 2022, foram 165 ocorrências de conflitos no campo no estado, com 40.971 pessoas envolvidas diretamente, segundo dados da publicação Conflitos no Campo Brasil 2022, produzida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).  Houve 2.608 casos de invasões; 1.329 casos de grilagem de terras; 153 roças das famílias foram destruídas; 57 casas destruídas e 5.107 casos de desmatamento ilegal nos territórios dessas famílias. Apenas no ano passado foram mais de 250 ações de pistolagem contra os povos do campo no estado. De acordo com a CPT, a morosidade no tratamento desses processos contribui para que Mato Grosso continue liderando, no Centro-Oeste, os conflitos no campo. Quanto mais a Justiça protela um desfecho para as ações que viabilizarão o assentamento das famílias, mais elas ficam suscetíveis a conflitos agrários.

Série de eventos da 3ª Semana de Resistência Camponesa de Mato Grosso ocorreram na Superintendência Regional do Incra. (Júlia Barbosa/CPT Nacional)
Série de eventos da 3ª Semana de Resistência Camponesa de Mato Grosso ocorreram na Superintendência Regional do Incra. (Júlia Barbosa/CPT Nacional)

Ministério Público Federal (MPF) explica que o mandado de segurança é uma medida judicial que procura assegurar, com rapidez, um direito considerado “líquido e certo”, ou seja, um direito facilmente demonstrável, garantido por lei ou expresso em regulamento ou norma, que esteja sendo violado. “É chamado de remédio jurídico por ser um mecanismo mais rápido para se obter a garantia pretendida e admitir decisão liminar, possibilitando que o juiz determine que o direito seja garantido, antes de julgar em definitivo o mérito do pedido. Os mandados de segurança normalmente são julgados em prazo inferior a 30 dias, mesmo sem pedido de liminar”, aponta o órgão. 

Em recomendação enviada ao TRF1 no dia 15 de setembro de 2023, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Mato Grosso (CEDH) orientam à Justiça o julgamento imediato dos diversos mandados de segurança e apelações referentes às áreas Fazenda Cinco Estrelas – Gleba Nhandú, no município de Novo Mundo (MT), cujo processo está parado há três anos; Gleba Mestre I, no município de Jaciara (MT); e a Gleba Gama, no município de Nova Guarita (MT), com área que pode assentar 95 famílias. 

No documento, os conselhos argumentam que a União e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estão sendo impedidos de obter a posse das áreas de terra por conta das decisões do Tribunal. E isso está afetando a eficácia da política pública de reforma agrária em Mato Grosso e violando os direitos fundamentais das famílias que deveriam ser beneficiadas por essa política. “Existem mandados de segurança que, após a decisão liminar, encontram-se conclusos sem nenhuma decisão, há 4 anos”, manifestam os conselhos.  

Além das terras mencionadas na recomendação, há também o restante da área da Fazenda Recanto, também localizada na Gleba Nhandú, com mais de 7 mil hectares, que aguarda o julgamento de quatro apelações sob as relatorias da Des. Daniele Maranhão Costa e Des. Rosana Noya Alves Weibel Kaufmann. 

“Nós temos um processo que já foi sentenciado, com a antecipação de tutela de dois mil hectares, mas há um mandado de segurança emitido por desembargador do TRF1, que impede o Incra de assentar as famílias. Já tem mais de dois anos e meio que tem esse mandado, e por isso fomos até a capital do estado do Mato Grosso para reivindicar as nossas pautas porque não aguentamos mais sofrer debaixo da lona, e a gente cobra e as autoridades nada fazem”, argumenta um trabalhador do acampamento União Recanto Cinco Estrelas, que prefere não se identificar por segurança devido aos conflitos na região. A área citada pelo camponês conta com mais de 80 famílias à espera do assentamento. 

Jair Soares, do acampamento Renascer, do município de Nova Guarita (MT), declara que o povo dessas comunidades quer apenas defender os seus direitos, garantidos na Constituição Federal, mas que é abandonado e humilhado em suas lutas. “Quero denunciar os abusos de parte do agronegócio e de grileiros, que grilam as nossas terras. Também temos tido problema com veneno, fazendeiros jogando agrotóxicos em nossas crianças. Pensem se fosse os seus filhos passando por essas situações no acampamento e sofrendo com esses conflitos.” 

20 ANOS DE ESPERA E DE CONFLITOS

No dia 10 de outubro deste ano, uma ação truculenta da Patrulha Rural da Polícia Militar (PM) do Mato Grosso resultou em 10 pessoas feridas no Acampamento Renascer, Gleba Mestre I, no município de Jaciara, segundo denúncia do Fórum de Direitos Humanos e da Terra (FDHT) e da Comissão Pastoral da Terra Regional Mato Grosso (CPT-MT). 

O ato de violência ocorreu quando as famílias realizavam uma colheita no roçado, e foram surpreendidas pelos policiais que, sem ordem judicial, destruíram a cerca de um morador, que ocupa a área há mais de 10 anos. “Questionados pela ação, os policiais responderam disparando tiros de balas de borracha nas costas dos trabalhadores, além de agressões com chutes e socos. Um dos trabalhadores ficou gravemente ferido e teve que passar por cirurgia. Segundo os trabalhadores, os policiais estavam acompanhados de grileiros ligados à Usina Porto Seguro e Pantanal/Grupo Naoum”, informa o documento divulgado pelo FDHT e pela CPT-MT. 

Acampamento Renascer, no município de Nova Guarita - MT (Arquivo CPT)
Acampamento Renascer, no município de Nova Guarita – MT (Arquivo CPT)

Mas esse não foi o primeiro conflito enfrentado pelas famílias da Gleba Mestre I. Em janeiro de 2021, conforme nota publicada pela CPT e pelo FDHT, a PM, mesmo sem determinação judicial, destruiu casas e bens das famílias. “Outro episódio de violência ocorreu em setembro deste ano, quando o carro de um dos acampados foi alvejado por tiros disparados por agentes da empresa de segurança Minatto, ao passar em frente às instalações da usina”, denuncia a nota das organizações sociais.  

Desde 2004, tramita na Justiça Federal uma Ação Reivindicatória da Gleba Mestre I, primeiramente movida pelo Incra, e, posteriormente, pela União, na 1ª Vara Justiça Federal de Rondonópolis (MT) – processos que reconheceram a propriedade da área como sendo da União, além de antecipar a tutela para que a União fosse imitida na posse da área.  

Depois, nas Ações Reivindicatórias, diante do deslocamento dos títulos apresentados pelas pessoas que reivindicavam área, a União propôs uma Ação Civil Pública que tramita na 1ª Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Rondonópolis (MT), a qual requer a anulação das matrículas, resultando em uma liminar para o bloqueio imediato das mesmas.  

De acordo com a recomendação do CNDH e do CEDH, entretanto, até o momento não houve a concretização destas decisões, pois elas foram suspensas com os mandados de segurança, sob a relatoria da Des. do TRF1 Maria do Carmo Cardoso, que, após proferir as decisões liminares, mantem os processos conclusos por anos, sem nenhum andamento – o que impede o assentamento das famílias. 

O Ministério Público Federal (MPF) formulou, junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), um pedido de Suspensão de Segurança, no qual relata a situação jurídica da Gleba Mestre I, bem como as violações e violências sofridas pelas famílias que aguardam há 20 anos para serem assentadas, onde requer a suspensão da decisão liminar do Mandado de Segurança.  

Segundo a Nota da CPT e do FDHT, por pertencer à União, a área da Gleba Mestre I possui, desde 2004, um projeto de assentamento criado pelo Incra, com capacidade de atender 198 famílias, e a concretização do assentamento das famílias ainda não ocorreu por a área estar grilada. “Mesmo com decisões da Justiça Federal, em primeiro grau e pelo colegiado do Tribunal Regional Federal-TRF1, para imissão imediata da União/Incra na área, a desembargadora Maria do Carmo, com decisões liminares em Mandados de Segurança, interpostos pelos ocupantes ilegais da área, tem impedido o assentamento das famílias”, explicam as entidades.  

PROBLEMÁTICA QUE SE ARRASTA  

Ao tratar da questão agrária, a Constituição Federal de 1988 prevê a função social da terra. Conforme a Carta Magna, é assegurado a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social. Contudo, o estado de Mato Grosso não cumpre o que está previsto na lei: em apenas duas áreas públicas localizadas na região norte do estado, pertencente à União, a Gleba Nhandú e a Gleba Gama, o Estado brasileiro propôs 38 Ações Reivindicatórias1Todas essas ações foram julgadas procedentes, então, reconhecendo que as áreas pertencem à União, sendo muitas delas com antecipação de tutela para que a União ou o Incra imitidos imediatamente na posse da terra. 

“O estado de Mato Grosso possui uma dimensão continental e existe, infelizmente, muita terra pública grilada que não cumpre sua função social.  As terras públicas deveriam, como dispõe a constituição e a legislação ser destinadas prioritariamente para a reforma agrária. Existem diversas ações judiciais em que já foram proferidas sentenças declarando se tratar de terra pública que deveriam ser destinadas para reforma agrária, mas infelizmente, no âmbito do TRF1 esses processos não são julgados, o que acaba por paralisar a reforma agrária no estado de Mato Grosso”, analisa Renan Sotto Mayor, defensor público federal e vice-presidente do CEDH. 

Renan ainda destaca que a Defensoria Pública da União (DPU) tem atuado na defesa de famílias acampadas que aguardam há vários anos a efetivação da reforma Agrária e que estão em situação de extrema vulnerabilidade. 

A diretora-executiva administrativa, financeira e de fiscalização da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e ex-deputada federal pelo Mato Grosso, Rosa Neide (PT), declara que a “Justiça, especialmente o TRF 1, tem, há anos, dificultado a finalização dos processos e impedindo a reforma agrária no estado. Já foram inúmeras audiências, todas feitas após as votações na turma, reconhecendo que são terras públicas.” 

Rosa Neide analisa que os estados amazônicos são os que possuem o maior número de terras públicas, como também a maior quantidade de grileiros que judicializa a tentativa de posse das áreas, mesmo após o término dos julgamentos. “Nesse momento, o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar] está acompanhando os processos juntamente com a AGU [Advocacia-Geral da União], no TRF1, e fazendo todos os esforços para que o processo legal seja garantido e a reforma agrária seja efetivada, especialmente para inúmeras famílias que há anos aguardam debaixo de lona o seu direito à terra.” 

De acordo com a diretora da Conab, o MDA já agendou reuniões nos estados, especialmente no Pará e Mato Grosso, para levantar todos os processos em curso e acompanhá-los, além da realização de audiências no TRF1. “O diálogo também foi reaberto com as entidades para retomar o processo de assentamentos”, afirma. 

RESPOSTA 

A presidência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) foi contactada por e-mail sobre o tempo para julgar os mandados de segurança e em relação à recomendação do CNDH e CEDH, mas não se manifestou até o fechamento desta matéria. 

Elvis Marques é jornalista e especialista em Assessoria de Imprensa na Comunicação Digital. Há cerca de dez anos atua em organizações do terceiro setor, pastorais e movimentos populares, assim como em diversos coletivos de comunicação no Brasil e na América Latina.